O VALOR SIMBÓLICO DAS FÉRIAS (8)
29 de Julho de 2009
Crónicas do Professor Ferrão
Ericeira, 27 de Agosto de 2008
“O valor simbólico das Férias”(8)[1]
Quando as férias caminham para o fim, ou mesmo terminam, paira em nós uma sensação de nostalgia pelo sumiço desse tempo de intensa felicidade. É, pois, um sabor amargo que nos paira na alma, mas, na verdade, foi um tempo útil para “recarregar energias” para o novo ano laboral que se aproxima de um exigente e extenuante dia-a-dia profissional, como é timbre das actuais sociedades, tecnocráticas, do mundo de hoje.
Só uma prolongada estadia num local verdadeiramente repousante, como foi o caso das férias do Verão de 2008 na Ericeira com a família, pode alhear-nos um pouco do mundo para fruirmos com descontracção dos lazeres que nos dão prazer e para de novo podermos enfrentar com renovado ânimo os constrangimentos das nossas obrigações laborais. Deste modo, é esta percepção do significado simbólico das férias que nos faz compreender a multidimensionadidade do ser humano e a essência existencial[2] de cada pessoa, uma vez que a profundidade do sentido da vida vem à tona durante as férias estivais que constituem um espaço de genuína liberdade pessoal.
Constatamos, assim, que as possibilidades de escolha que nos são oferecidas durante as férias estivais nos permitem romper com as rotinas diárias do trabalho, que nos impelem a um conjunto de obrigações inumeráveis sem tempo para descansar e dormir tranquilamente, sem que alguma insónia se interponha a meio do nosso sono, em que os famigerados viciados do trabalho[3], e o sistema de trabalho neoliberal nos procuram submergir.
Neste fim de férias, que balanço faço delas? Em primeiro lugar, penso que se solidificaram os afectos com os entes queridos e com alguns amigos mais presentes. Neste sentido, a Ericeira revelou-se, também nesta perspectiva, além das expectativas, porque nos permitiu exercitar a liberdade no contexto da interacção com os outros levando-nos a encontrar afinidades ou descobrindo e conhecendo a alteridade com admiração e respeito.
Ao mesmo tempo, de forma paradoxal sinto uma sensação de insatisfação ao analisar os objectivos prévios que ficaram aquém das expectativas, visto que não fiz, praticamente, nenhum exercício físico e pouco tempo dediquei à oração. Tanto mais quanto se sabe que, embora Deus não se esquece de nós[4], é importante alimentar a fé e fazer alguma ginástica, porque como diz o clássico provérbio popular o ideal é “corpo são em mente sã”.
Todavia, o sentimento geral é manifestamente satisfatório, dado que descansei, dei espaço à minha livre e espontânea vontade de desfrutar dos meus lazeres favoritos e de conhecer e amar mais profundamente os meus entes queridos.
Em boa verdade, nestas sociedades em que vivemos, de carácter enraizadamente quantitativista, este tipo de balanço em função de objectivos prévios afigura-se-me muito limitativo, porque na realidade não se atinge o âmago qualitativo da questão avaliativa. Desta forma, não importa tanto quantas viagens fizemos nas férias, uma vez que não somos contabilistas, nem demógrafos, mas sobretudo importa saber o que aprendemos numa só viagem mediante, por exemplo, uma apreciação mais substantiva num relato mais intimista, ou subjectivo, através da escrita dum livro de viagens ou dum pequeno diário.
A título de exemplo, tive durante estas férias o inexcedível prazer de participar numa excursão à Tapada Nacional de Mafra que valeu, simultaneamente, pelo convívio com a família e com os amigos e pela possibilidade, que tivemos, de contemplar os prodígios da flora e da fauna locais.
Com efeito, percebemos que estes sítios naturais, como a Tapada “Real” nos seus oitocentos hectares de floresta, onde a natureza ainda não está devassada pela mão devastadora do Homem, são inspiradores dum espírito lírico, vincadamente, motivador que possibilitam ao Homem Moderno abstrair-se dos complexos problemas que tolhem as sociedades mais desenvolvidas.
Por conseguinte, mesmo quando as férias chegam ao fim, apesar do sentimento nostálgico que nos assola, permanece em nós o seu valor simbólico que nos enche a alma de alegria, constituindo-se este simbolismo como uma reserva anímica necessária à “reentré” profissional. Desta maneira, as boas recordações (dos banhos revitalizantes, dos passeios encantadores, dos convívios salutares, das leituras estimulantes, das jantaradas gostosas, das noitadas divertidas, etc.) fazem-nos reviver no nosso espírito, ao longo do ano, aquilo que vivenciámos nesse recente passado memorável, normalmente saudoso, que designamos por férias.
De facto, são, normalmente, estes sonhos vividos e saudosos, desse tempo de suspensão do trabalho, que nos motivam nos momentos mais áridos, de crise pessoal ou profissional, e em particular nas ocasiões em que estamos assoberbados de trabalho.
Enfim, convém assinalar que para as pessoas de personalidade mais racionalista, mais calculista, as férias são, também, úteis para se proceder a um balanço crítico da vivência do ano profissional ou pessoal que passou. Creio, pois, que só as pessoas mais sombrias, do ponto de vista da inteligência emocional, sobrevalorizam esta potencialidade utilitária das férias.
Em conclusão, é legítimo afirmar que a riqueza das férias advém da possibilidade que nos é oferecida de realizar uma ruptura afectiva[5] e vivencial com a rotina quotidiana do mundo do trabalho, no sentido de nos libertar do grande fardo técnico e científico que molda o dia-a-dia dos homens contemporâneos.
Nuno Sotto Mayor Ferrão
[1] Crónica escrita a 27 de Agosto de 2008, mas actualizada e publicada em 29 Julho de 2009.
[2] Passe o pleonasmo metafísico desta expressão, pois na verdade os existencialistas contestam a possibilidade de se identificar o núcleo ontológico dos indivíduos.
[3] Aquilo a que invertendo o provérbio popular ficaria: ”não trabalho para viver, pois vivo para trabalhar”.
[4] Por meio das nossas convicções e da nossa fé.
[5] Ruptura afectiva em termos de intensidade quantitativa dos afectos trocados com os nossos entes queridos.