“O GRANDE REBANHO” DE JEAN GIONO COMO UM ROMANCE IMPRESSIONISTA DA PRIMEIRA GUERRA MUNDIAL – CENTENÁRIO DA GRANDE GUERRA E DA BATALHA DE VERDUN (1916-2016)
“(...) Era preciso caminhar silenciosamente ao longo da trincheira (...) O talude tinha desabado por causa da chuva. Havia bocados de lençóis no meio da lama, misturados com ela. Uma espécie de respiradouro tinha-se aberto num dos lados da pedreira. Um braço de homem saíra do buraco e estava suspenso cá fora, com a mão, que parecia um gancho, toda preta por causa da pólvora. Aproximaram-se. Era uma enorme fossa de mortos. Parecia que estavam a chapinhar na água. (...) Olharam para cima da trincheira. Estavam a uma centena de metros. Corriam. Tinham sido surpreendidos pelo vento. Saíam do nevoeiro por um lado e entravam nele por outro lado. Desfilavam em pleno campo, acima da trincheira. Surpreendidos pelo vento, iam um pouco curvados, corriam com as espingardas como se elas fossem bengalas e, de vez em quando, no meio daquele rebanho de homens acossados, destaca-se um rosto pálido que olhava para o lado. (...)”
Jean Giono, O grande rebanho, Lisboa, Editorial Presença, 2014, pp. 165 e 178.
O lirismo de Jean Giono, escritor francês, faz contrastar a vida rústica da Provença com os horrores da Primeira Guerra Mundial na sua atroz violência. Sublinha o contraste entre a simplicidade silenciosa da natureza e o estrondo estripitante da guerra. Quanta diferença se desenha entre os militares que, no terreno de batalha, se tornam insensíveis e a singeleza poética das árvores.
De facto, à tranquilidade bucólica da vida do campo, o autor contraprôs o furor belicista das frentes de batalha. Esta visão dicotómica paira ao longo do livro, escrito em 1929, com o constante confronto entre a natureza simples e bela e o homem enredado no drama das suas perniciosas escolhas.
O romance centra-se na metáfora entre os rebanhos e as tropas mobilizadas para a guerra no campo de batalha. Esta proximidade simbólica entre os animais de pasto e os homens em situação de beligerância faz com que Olivier, um dos protagonistas do romance, sinta a guerra como uma interrupção da vida e lhe irrompa a sensação de que a vida em paz no campo era prodigiosa.
O ambiente retratado apresenta-nos uma tristeza que paira nos campos da Provença, pois nas localidades e quintas ficaram apenas as mulheres e os idosos, uma vez que os homens foram mobilizados para as frentes de batalha.
O essencial da mensagem deste romance histórico é o absurdo da guerra, em contraste com a energia panteísta da natureza inerente à visão humanista e pacifista de um escritor que vivenciou estes campos de batalha. Passados cem anos sobre a brutal batalha de Verdun (1916), nós, leitores, acompanhamos o escritor que nos descreve o conflito passado no campo, como infernal por oposição à serenidade oferecida pela Mãe-natureza.
Assim, o autor que participou no conflito bélico conseguiu retratar, com grande realismo, os cenários de guerra. Retrata, pois, com enorme fidelidade o resultado pestilento e antihigiénico da batalha nas trincheiras. As cenas apresentadas nos campos de batalha são, muitas vezes, pintadas com cores tenebrosas. A guerra é encarada como uma regresão histórica das atividades produtivas, significando mesmo um regresso a um primitivismo ancestral.
Ao mesmo tempo, realça o paradoxo entre as mortes e as justificações patrióticas que se davam às famílias dos soldados caídos nas frentes de batalha. A paz das famílias camponesas é, assim, interrompida pelas mobilizações forçadas de lavradores, pela requisição de alimentos aos produtores agrícolas da Provença e pelas notícias terríficas das mortes de lavradores em campos de batalha. Transmite-nos, deste modo, uma visão assustadora da guerra em que os camponeses se sentem espoliados da liberdade ou de bens agrícolas para abastecimento das frentes de batalha e com a tranquilidade bucólica dos ritmos campestres roubada.
Se a vida no campo é descrita de forma quase helenística, por contraposição o avanço lento das tropas nas linhas de trincheiras impelia a uma marcha em fila para as companhias evitarem muitas baixas em caso de serem atingidas por canhões ou por fogo inimigo. Horrível é, também, a descrição de uma avalanche de ratos a invadirem os campos de destroços. Esta guerra, embora mundial, decorreu sobretudo nos campos europeus que saíram devastados e com o seu trabalho rural completamente desorganizado.
Em suma, este romance, baseado numa intensa experiência de guerra do seu autor, deixa-nos um testemunho, talvez impressionista, do ambiente bélico que se passou no início do século XX, que o transformou num denodado pacifista, pois compreendeu quão medonha é a guerra na sua infindável desumanidade comparada com a sublime beleza do meio natural, que Deus nos legou. No Centenário da Grande Guerra e da mortífera batalha de Verdun (1916-2016), que agora evocamos mediante esta obra-prima, vale a pena ler este tocante romance que desnuda as globalizadas feridas históricas da Humanidade.
Nuno Sotto Mayor Ferrão