ALEXANDRE HERCULANO (1810-2010) – BREVES CONSIDERAÇÕES HISTÓRICO-CULTURAIS NO ANO DO BICENTENÁRIO DO SEU NASCIMENTO
Alexandre Herculano de Carvalho Araújo ( 1810-1877 ), de seu nome completo, foi um dos mais importantes intelectuais do século XIX em Portugal. Teve um génio cultural plurifacetado que se manifestou nas variadíssimas funções públicas que exerceu como bibliotecário (da Biblioteca do Porto, das Bibliotecas Reais das Necessidades e da Ajuda), jornalista, romancista, contista, poeta, político e, fundamentalmente, como historiador.
A vivência e a ideologia que sustentou são marcadas pelo contexto revolucionário liberal em que cresceu. Foi um denodado partidário de D. Pedro IV e foi um dos militares que desembarcou na praia do Mindelo a 8 de Julho de 1832, ajudando o país a libertar-se do regime Miguelista.
As suas ideias políticas foram a génese intelectual de futuros movimentos doutrinários que se manifestaram na sociedade portuguesa no século XX. De facto, a sua concepção de um poder justo passava pelo reforço dos mecanismos decisórios dos Municípios, pois acreditava que estes garantiriam menos abusos dos poderosos por, eventualmente, serem melhor controlados pelas bases sociais[1]. Esta ideia de descentralização da administração pública defendida por Herculano, no jornal O Panorama, foi certamente o fundamento do estandarte ideológico dos Republicanos que defenderam este princípio, tal como terá sido o fundamento remoto da ideia da Regionalização que, por vezes, surge no actual regime democrático.
Alexandre Herculano pugnou por um liberalismo moderado, assumindo-se como um Cartista, que não alinhava nem nas ideias “socializantes”, nem nas ideias propulsoras dum capitalismo desenfreado[2]. Foi, neste contexto, de discussão do modelo de desenvolvimento socioeconómico para o país que se torna deputado Cartista às Cortes na legislatura 1840. Mais tarde, ainda exerceu a Presidência da Câmara de Belém em 1854-1855, mas terá percebido, então, que essa não era a sua verdadeira vocação.
No entanto, as suas ideias políticas, sociais, literárias e científicas exerceram sobre o país um magistério intelectual e moral que influenciaram várias gerações. Uma das suas ideias peregrinas evocava a necessidade de consolidar uma classe média forte e culta como forma de travar a nefasta corrupção que grassava no país. Algumas das suas polémicas, no contexto da implantação do Liberalismo, feriram a imagem da Igreja Católica ao contestar o “Milagre de Ourique”, na sua História de Portugal[3], e ao relembrar o papel do Tribunal do Santo Ofício na obra História da Origem e Estabelecimento da Inquisição em Portugal. Por outro lado, já na conjuntura da “Regeneração”, no terceiro quartel do século XIX, foi um dos grandes críticos da política Fontista dos melhoramentos materiais[4].
A mentalidade do Romantismo perpassa toda a sua vida e obra, em particular na idealização da Idade Média como um idílico refúgio para a hedionda modernidade industrial numa típica manifestação da atitude deste movimento de conceder a primazia ao sentimento.
O jornalismo de Alexandre Herculano emerge, a partir de 1837, na redacção e na direcção da publicação periódica de intervenção cívica e cultural intitulada “O Panorama”, que tratava de temas artísticos, literários e científicos.
Herculano foi, também, devido ao seu génio criativo e à sua vasta erudição relativa à Idade Média nacional o introdutor da Literatura Histórica em Portugal ( romances e contos ) ao inspirar-se nas notáveis obras literárias de Walter Scott e de Vítor Hugo. Destas suas criações literárias merecem especial destaque o romance Eurico, o presbítero e Lendas e Narrativas. Um dos seus textos mais memoráveis é, para mim, a lenda “A Abóboda (1401)” em que o nosso literato nos conta com enlevado sentido poético o desabar da abóbada da Sala do Capítulo do Mosteiro de Santa Maria da Vitória ( Batalha ). Ouçamos as palavras de mestre Herculano:
“(…) As portas haviam estoirado nos seus grossíssimos gonzos e muito cimento solto e pedras quebradas tinham rolado pelo portal fora, (…) Olhando para o interior daquela imensa quadra (…) a Lua, que passava tranquila nos ceús, reflectia o seu clarão pálido sobre este montão de ruínas (…) e por cima daquele temeroso silêncio passava o frio leste da noite e vinha bater nas faces turbadas dos que, apinhados na sacristia, contemplavam este lastimoso espectáculo. (…)”[5]
Este pujante intelectual teve, ainda, um relevante papel na modernização da Historiografia Portuguesa no século XIX ao introduzir, como pioneiro, uma matriz institucionalista nos estudos históricos, dando, ao mesmo tempo, ênfase à sua predilecção pelo período medieval. Com efeito, as suas obras historiográficas, já supramencionadas, foram a génese da historiografia científica. Neste campo de trabalho, sobressaiu o seu labor na recolha de documentos dos cartórios conventuais que foram compilados na volumosa obra “Portugaliae Monumenta Histórica”, feita nos anos de 1853-1854, a pedido da Academia das Ciências de Lisboa.
Há uma frase sua do prefácio da 3ª edição da História de Portugal, em 1863, que o consagrou como intelectual, que nos ajuda a explicar o exílio rural a que se submeteu na sua Quinta de Vale de Lobos, no distrito de Santarém, quando se encontrava já profundamente desiludido com a vida pública portuguesa: “(…) Pobres homens práticos! Pobres estadistas!”[6]. Este exílio de mundanidade a que se submeteu na sua bucólica e romântica Quinta decorreu da força da sua autoridade moral que o fizeram permanecer fiel a valores e a ideais para não se deixar corromper nos meandros da vida pública. Num dos seus últimos textos, o escritor e jornalista Francisco José Viegas traça, numa bela síntese, o paralelismo entre esta sensação de Herculano e a que paira nos nossos prezados concidadãos ( www.fjv-cronicas.blogspot.com ).
Nuno Sotto Mayor Ferrão
[1] Foi, certamente, sugestiva a palestra intitulada “Alexandre Herculano, Patrono do Municipalismo e dos Centros Históricos Portugueses” proferida pelo Professor Doutor Pedro Gomes Barbosa (Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa – Instituto Alexandre Herculano de Estudos Regionais e do Municipalismo), na Sala do Arquivo dos Paços do Concelho com que arrancou a 28 de Março de 2010 o Programa das Comemorações do Bicentenário do Nascimento de Alexandre Herculano (1810-2010).
[2] Maria de Lourdes Lima dos Santos, “Alexandre Herculano”, in Dicionário Enciclopédico da História de Portugal, Vol. 1, Coordenador José Costa Pereira, Lisboa, Publicações Alfa, 1990, p. 310.
[3] Há uma interessante edição mais recente desta obra de A. Herculano ( História de Portugal em 8 volumes, Lisboa, Edição Ulmeiro, 1980 ).
[4] “(…) Para Herculano, o Progresso só poderia ser concretizado se existissem governantes probos, capazes de não se deixarem enredar nas malhas da corrupção que os negócios inevitavelmente acarretam. (…)” in Maria Filomena Mónica, Fontes Pereira de Melo – uma biografia, Viseu, Alêtheia, 2009, p. 36.
[5] Alexandre Herculano, “A abóbada (1401), in Lendas e Narrativas, Lisboa, Publicações Europa-América, Colecção Livros de Bolso, s.d., p. 173.
[6] Alexandre Herculano, “Prefácio da Terceira Edição”, in História de Portugal, vol. 1, Lisboa, Edição Ulmeiro, 1980, p. 11.