HISTÓRIA E CIDADANIA VERSUS HISTORIOGRAFIA E OBJECTIVIDADE
O professor e investigador Filipe Ribeiro de Meneses, autor do livro agora publicado em Portugal com o título Salazar – Biografia Política[1], afirmava ontem na televisão que o ofício de Historiador exige, deontologicamente, uma aproximação à objectividade. Na verdade, como nos disse, com sentido crítico, o testemunho hagiográfico de Franco Nogueira[2] sobre Salazar tem um valor indesmentível como testemunho memorialístico, no entanto como estudo histórico não tem a necessária distância ideológica e afectiva para se aproximar de uma visão mais imparcial. A vantagem deste estudo mais recente, como salientava no outro dia Francisco Seixas da Costa no seu blogue Duas ou três coisas no texto intitulado "Salazar", advém deste jovem investigador pertencer a uma outra geração com instrumentos metodológicos mais aperfeiçoados que lhe permitiu elaborar uma investigação mais insuspeita. Estou, pois, muito curioso em ler esta obra de grande fôlego.
Vem isto a propósito de um antigo artigo do Historiador Henrique Barrilaro Ruas sobre o regicídio e a República em que a sua visão se deixou cair num parcialismo que tem a ver com o facto de ter sido monárquico e de ter pertencido, na época em que escreveu o artigo “O Regicídio à luz da História Política” ao Partido Popular Monárquico, e inclusive ter sido deputado na Assembleia da República pela Aliança Democrática nos anos de 1979-1983. Deste modo, este autor sentencia a República, como uma das raízes do mal-estar da pátria portuguesa, quando nos diz: “(…) Monstruoso como crime, o Regicídio de 1 de Fevereiro de 1908 é a revelação de que um sistema político imposto ideologicamente por «iluminados» não pode perdurar sem conduzir à morte os homens singulares, e da própria comunidade política.(…)”[3].
Com efeito, a República, que dentro de poucos dias iremos celebrar como cidadãos orgulhosos da nossa pátria, tem de ser vista sem visões ideologicamente parciais, por parte dos Historiadores, para que cada cidadão no íntimo da sua consciência e das suas convicções possa fazer as suas escolhas com uma fundamentação realista, baseada numa sólida Cultura Histórica, e não manipulado por uma qualquer ordem de interesses. A República tem de ser perspectivada ora com os óculos do investigador, ora com os óculos do cidadão, uma vez que se quer que este seja participante de uma democracia autêntica. Nesta medida, a Exposição “Viva a República” patente na Cordoaria Nacional, em Lisboa, até, pelo menos, ao fim de Novembro de 2010 merece uma visita, para quem está interessado em conhecer melhor esse período histórico, por ter sido levada a cabo por prestigiados especialistas da temática.
Desta forma, há que separar o campo Historiográfico do campo da intervenção cívica. E, aliás, no campo da intervenção cívica devem ser declarados os interesses e as convicções que se estão defender por uma questão de honestidade e probidade intelectual. É legítimo sustentarem-se todos os argumentos com transparência, mas sem se ocultarem as reais motivações ideológicas, os interesses políticos ou económicos que estejam por detrás. O grande Historiador da Cultura, Joel Serrão, escrevendo sobre Antero e Herculano no Jornal das Letras[4], no início dos anos 80, enfatizou as preocupações éticas que moldaram as obras destes dois intelectuais. Em suma, só as preocupações metodológicas de rigor intelectual e a transparência ética podem garantir intervenções científicas e cívicas de insuspeitado valor.
Nuno Sotto Mayor Ferrão
[1] Filipe Ribeiro de Meneses, Salazar - Biografia Política, Lisboa, Edições Dom Quixote, 2010.
[2] Franco Nogueira, Salazar, 6 vols., Coimbra, Ed. Atlântida, 1977-1985.
[3] Henrique Barrilaro Ruas, “O Regicídio à luz da História Política”, in Ensaio – Folha de Cultura e Opinião, nº 2, Fevereiro-Março de 1981, p. 3.
[4] Joel Serrão, “Antero e Herculano”, in Jornal de Letras, Artes e Ideias, Director José Carlos Vasconcelos, Ano I, nº 10, 7 a 20 de Julho de 1981, pp. 6-7.