Crónicas que tratam temas da cultura, da literatura, da política, da sociedade portuguesa e das realidades actuais do mundo em que vivemos. Em outros textos mais curtos farei considerações sobre temas de grande actualidade.
Crónicas que tratam temas da cultura, da literatura, da política, da sociedade portuguesa e das realidades actuais do mundo em que vivemos. Em outros textos mais curtos farei considerações sobre temas de grande actualidade.
Armindo Rodrigues de Sttau Monteiro (1896-1955)[1], pai de Luís de Sttau Monteiro, foi um importante professor universitário, diplomata, empresário e político do Estado Novo. Foi ministro das colónias, ministro dos negócios estrangeiros e embaixador de Portugal em Londres durante a 2ª Guerra Mundial. Apoiou o golpe de Estado do 28 de Maio de 1926 que degolou o regime pluripartidário da 1ª República, porque fustigou criticamente o descalabro financeiro deste regime. Em 1921 tinha-se Doutorado, com uma tese intitulada “Orçamento Português”, na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa.
A sua intervenção pública começou a destacar-se com a sua integração na delegação que liquidou a dívida de guerra à Inglaterra em 1926-1927 e a sua posterior colaboração com António de Oliveira Salazar, desde 1928, até aos anos da 2ª Guerra Mundial. O seu relevante papel político encontra-se inscrito na contribuição que concedeu à redacção dos textos jurídicos fundamentais do Estado Novo e à criação da mítica colonial.
Na segunda metade dos anos 30, a sua intervenção como diplomata irá levá-lo a polemizar com Salazar, mas a sua anglofilia irá permitir-lhe ser agraciado pela Monarquia Britânica com a honorífica “Ordem do Banho” na presença de Winston Churchill e de Robert Anthony Eden. No início dos anos 40, no estrangeiro era visto como um possível substituto de Salazar, capaz de levar o país de regresso às lides democráticas.
Durante o início do Estado Novo, como ministro “das terras de além-mar”, considerou que a doutrina colonial portuguesa se deveria inspirar na experiência histórica do país, em vez de procurar imitar os modelos administrativos estrangeiros. Meditou na necessidade de haver uma estabilidade no rumo doutrinário da administração colonial enaltecendo a vantagem de se criar uma doutrina única que garantisse a coerência entre as opções do governo central e as emanadas dos decisores coloniais[2]. Assim, concebia que a harmonia administrativa nas colónias dependia duma doutrina colonial única que valesse, no longo prazo, para vários ministros e várias colónias, pois esta fórmula permitiria articular de forma habilidosa os interesses comuns e específicos, de cada colónia, sem conflitualidade institucional.
Frisou ter sido excessivo o grau de autonomia administrativa colonial consagrado na 1ª República, daí a sua rejeição de que os administradores coloniais devessem tomar, primeiro, em linha de conta as necessidades das colónias, porquanto do seu prisma a prioridade devia ser o interesse geral da nação, baseado num poder central forte, e numa intensa fiscalização e coordenação da máquina administrativa colonial que assegurasse uma eficácia e uma coerência governativa imperial[3].
Na verdade, a doutrina imperial de Armindo Monteiro resultou da percepção nacionalista de que os interesses coloniais do país seriam melhor defendidos perante as ameaças externas através dum sistema politicamente centralizado[4]. Esta concepção desdobra-se em quatro princípios coloniais fundamentais, a saber:
a centralização da administração colonial era a garantia da solidariedade nacional entre as várias partes do império português;
o equilíbrio das finanças de cada colónia deveria condicionar as suas capacidades de investimento;
havia a conveniência de conciliar a centralização política que salvaguardava os interesses comuns com a descentralização da administração colonial que proporcionaria a satisafação dos interesses locais;
as regras de funcionamento da administração colonial deviam ser uniformizadas em conformidade com a concepção imperial.
Armindo Monteiro concebia os autóctones africanos como racial e civilizacionalmente inferiores aos metropolitanos. Deste modo, meditava que a política indígena devia proteger os direitos dos nativos dos abusos de alguns empresários pouco escrupulosos e que, concomitantemente, lhes deveria impor o dever moral de trabalhar. Por outro lado, achava que o Estado e os colonos deveriam contribuir para o aperfeiçoamento civilizacional dos indígenas, enquadrando-os dentro de hábitos culturais europeus.
Nuno Sotto Mayor Ferrão
[1] Júlia Leitão de Barros, “Armindo Rodrigues de Sttau Monteiro”, in Dicionário de História do Estado Novo, coordenação Fernando Rosas e J.M. Brandão de Brito, vol. II, Lisboa, Editora Bertand, 2000, pp. 622-623.
[2] Armindo Monteiro, “Necessidade de uma doutrina colonial portuguesa”, in Antologia Colonial Portuguesa, vol. I, Lisboa, 1946, pp.-243-254
[3] Idem, “As grandes directrizes da governação ultramarina portuguesa no período que decorreu entre as duas guerras mundiais”, in História da Expansão Portuguesa no Mundo, dir. António Baião e Manuel Múrias, Lisboa, Editorial Ática, 1940, pp. 431-454. Na opinião de Armindo Monteiro não houve preocupação na gestão financeira colonial de 1921 a 1926, o que se reflectiu no descalabro económico de Angola proveniente dos elevados défices e dos constantes pedidos de empréstimos. Este cenário calamitoso aconteceu, a seu ver, devido à falta de uma gestão sustentável no desenvolvimento económico do Ultramar, que tinha de partir de uma aplicação moderada dos recursos nacionais. Por esta razão, criticou o facto da autonomia colonial ter possibiltado desmesurados investimentos em obras de fomento que quebraram os equílibrios financeiros das contas anuais, o que obrigou à paragem das obras públicas e a um endividamente exorbitante em Angola. Como reacção a esta tendência despesista ficou consagrado no Acto Colonial o princípio de que o ministro das colónias tinha a competência de fiscalizar os orçamentos coloniais, no sentido de evitar novas situações de ruptura financeira.
[4] Pedro Aires Oliveira, Armindo Monteiro – uma biografia política, Lisboa, Bertrand Editora, 2000, pp. 89-97.
A 28 de Maio de 1926, faz amanhã oitenta e cinco anos, surgiu o golpe de Estado, que Salazar cunhou de revolução nacional, potenciador da sua ascensão política. A conjuntura de crise social, política e económica da 1ª República tornou possível o emergir das opressivas ditaduras, militar e salazarista.
Como cidadão afirmo que, se não nos acautelamos dada a similitude circunstancial que a pátria portuguesa hoje vive, corremos o risco de nos deixarmos cair num caminho de estreitamento das liberdades se optarmos por um modelo de desenvolvimento centrado na produtividade económica e na capacidade da sociedade civil como nos propõe o PSD de Pedro Passos Coelho. Se o mundo já vive sob uma didatura financeira, como nos diz o lúcido Stéphane Hessel no seu Manifesto[1], corremos o risco de a legitimar completamente se alinhamos no radicalismo ideológico do PSD com o qual o Professor Marcelo Rebelo de Sousa, numa sensibilidade mais social-democrata, não se identifica plenamente por não ser um liberal.
Num registo historiográfico, saliento que António de Oliveira Salazar advogou de acordo com a doutrina inscrita no Acto Colonial que a política ultramarina devia ser orientada por uma matriz nacionalista. No seu pressuposto essencial a unidade política do Estado Português tinha absoluta correspondência com os limites fronteiriços da nação, os quais se estenderiam do Minho a Timor. A sua perspectiva ideológica encarava a acção colonizadora como a autêntica vocação do país. Não obstante, a clarificação e a propaganda intensa, moldada por outros matizes ideológicos, desta ideia só surge com a revisão Constitucional de 1951 que integra o Acto Colonial neste texto jurídico e altera o conjunto lexical usado pelo regime.
Salazar reputava como fundamental para reforçar esta estratégia política de unificação, advinda da realidade espiritual herdada de séculos anteriores, consolidar como meios de acção o incentivo ao intercâmbio económico entre a metrópole e as colónias e a promoção da cristianização dos povos autóctones coloniais[2]. Sustentou, também na fundação do Estado Novo, como ideia-chave a noção de que as diversas parcelas coloniais formariam uma unidade imperial, dando azo ao aparecimento do termo de “império colonial português” e impulsionando a formação de um espaço económico português de dimensão internacional, no sentido de estimular as transacções comerciais dentro do espaço imperial[3].
[2] António de Oliveira Salazar, “A Nação na política colonial”, in Ibidem, vol.I, Antologia Colonial Portuguesa, Lisboa, Agência Geral das Colónias, 1946, pp. 326-334.
[3] Ruy de Sá-Carneiro, A política colonial do Estado Novo, Lisboa, Agência Geral das Colónias, 1949, 26 p.
A tese pan-africanista defendida em Moçambique pretendia a integração deste território na União Sul-Africana, o que constituía uma ambição do general Jan C. Smuts desde a Conferência de Paz de 1919. Inicialmente o projecto imperialista de Smuts, inspirado no sonho megalómano de Cecil Rhodes[1], consistia em incorporar esta colónia no Estado Sul-Africano, mas esta ideia transformou-se nos anos 40 no projecto de uma União Pan-Africana que ligasse economicamente os Estado livres do Sul do continente. Em Moçambique, perfilharam esta tese os estrangeiros de origem britânica que aí residiam e os colonos burgueses com negócios na União Sul-Africana.
Houve também muitas pressões oriundas do Estado vizinho, de propaganda e de apoio financeiro, para que esta tese alastrasse socialmente na colónia. E, na verdade, alguns Estadistas portugueses sentiram medo desta ameaça que se infiltrava no próprio tecido social Moçambicano, ao ponto do ministro das colónias de Salazar, José Vieira Machado, temer no contexto do início da 2ª guerra mundial, em 1939, que a União sob pretexto da defesa do Sul de Moçambique fosse em seu socorro e se apoderasse das suas funções de soberania.
Em 1925 a veemente crítica do sociólogo Edward Ross às insuficiências da administração colonial portuguesa, bem como o aparente fracasso administrativo de Brito Camacho foram factores contextuais propícios à difusão da tese da integração de Moçambique na União. Protestando contra a emergência deste movimento, num periódico defensor do patriotismo luso, no seu editorial contesta-se a posição de alguns colonos considerada subversiva ao pretenderem a integração de Moçambique na União Sul-Africana[2]. Afirma também que estavam envolvidos neste movimento jornalistas e altos-funcionários públicos locais que possuíam interesses nos países vizinhos e que, possivelmente, eram por estes estimulados financeiramente para fazerem a propaganda da causa do pan-africanismo.
Por outras palavras, nota-se o tom heterodoxo desta corrente doutrinária no facto do editorial censurar esta posição pan-africanista como um atentado moral ao dever patriótico e aos direitos de soberania do Estado português sobre Moçambique. Assegura que o objectivo da propaganda deste grupo visava descredibilizar o Estado português e dividir a sociedade moçambicana em posições antagónicas. Nas seguintes citações corroboram-se as análises que acabámos de fazer:
“(...) Conjuremos o perigo! Atente o Governo: Em Moçambique conspira-se contra a soberania portuguesa, servindo-se os traidores de todos pretextos ainda os mais fúteis. (...) Há tempos o Sunday Times, aludiu a entendimentos macabros entre indivíduos de duas nacionalidades, uma delas a portuguesa, para a entrada de Moçambique no domínio político da União. Aproximamos portanto os factos e tiremos as conclusões precisas. Há ouro estrangeiro em Moçambique a fomentar a discórdia nos espíritos, e a difamar os nossos processos de administração ? (...)”[3] .
No decurso da segunda guerra mundial, em 13 de Agosto de 1941, surge a notícia na imprensa espanhola[4], desmentida categoricamente pelo embaixador português em Espanha, de que sete membros do Governo de Moçambique teriam proposto ao ministro sul-africano, marechal Smuts, a constituição de um governo livre em Moçambique[5] que poderia aderir ao projecto de uma União económica Pan-Africana dos Estados independentes do sul do continente. É compreensível que o teor desta notícia tenha despertado a hostil reacção diplomática portuguesa e tenha sido alvo da atenção dos serviços de Censura do Estado Novo, no sentido de que não pudesse ser posta em causa a doutrina da indissolubilidade patriótica entre a metrópole portuguesa e as suas colónias. Na realidade, esta informação prova que germinavam teses emancipalistas em Moçambique, neste caso de pendor pan-africano, que eram, inclusivamente, partilhadas por indivíduos com elevadas responsabilidades políticas e sociais[6].
Nos anos 30 em plena vigência do regime Salazarista aparecem informações oficiais enviadas ao Presidente do Conselho de Ministros, António de Oliveira Salazar, de que alguns maçons do norte de Moçambique defendiam a incorporação desta região num dos ricos Estados vizinhos. Não sendo esta uma manifestação da clássica tese pan-africanista era uma posição que se baseava em pressupostos semelhantes. De facto, pairou nesta altura o perigo da Alemanha ou da Grã-Bretanha anexarem o norte de Moçambique com o apoio de alguns habitantes locais.
Num interessante relatório escrito por algum habitante de Moçambique e enviado às autoridades portuguesas, que chegaria a Salazar, intitulado Relatório – Aviso aos bons portugueses[7] dá-se conta do risco de Portugal perder o norte de Moçambique em função das conspirações que se teciam. O autor alertou o Estado Português para a circunstância da perversa influência da Maçonaria na região e para o facto da frágil implantação das instituições Salazaristas poderem colocar em perigo a soberania portuguesa na colónia, dado que a seu ver os maçons eram aliados das cobiças estrangeiras[8].
Com efeito, corroboramos que em Moçambique neste período houve muitos sectores sociais “desnacionalizados” defensores da junção do teritório a um dos Estados vizinhos, por esta razão se compreende que o ministro das colónias João Belo, ainda no tempo da Ditadura Militar, tenha proclamado que a sua política de 1926 a 1928 visou nacionalizar Moçambique.
Nuno Sotto Mayor Ferrão
[1] “A África durante o imperialismo industrial europeu”, in História Universal, vol. II, Adpatação e Revisão Prof. Jorge Borges de Macedo, Selecções do Reader’s Digest, 1995, pp. 337-338.
[2] “Conjuremos o perigo”, in Portugal, 23 de Dezembro de 1925, nº 33, p. 1.
[3] ( Continuação da citação do texto :) “(...) Mas quem é que ignora isso, se a sucessão de factos, e a qualidade dos elementos neles envolvidos não são de molde a alimentar dúvida ? Dissemos no último número que nesta colónia se fazia descaradamente a propaganda do domínio estrangeiro. Citávamos até, para o caso, a presença no movimento de dois altos funcionários do Estado. (...)” Ibidem, p. 1.
[4] Encontrámos esta informação num documento subscrito pelo Director dos Serviços de Censura, Álvaro Salvação Barreto, que eventualmente terá considerado esta notícia potencialmente perigosa se viesse a circular na metrópole.
[5] Arquivo Oliveira Salazar, Correspondência Oficial, Ultramar, nº 9, Pasta 20, f. 588 ( Arquivo Nacional Torre do Tombo ).
[6] Do seguinte excerto deste documento se podem comprovar estas análises: “(...) O embaixador português foi hoje ao Ministério dos Negócios Estrangeiros desmentir energicamente a notícia publicada na imprensa espanhola, segundo a qual sete membros do Governo de Moçambique tinham oferecido ao general Smuts consituir um ‘Governo livre’ na colónia, logo que Smuts assim o desejasse. O embaixador declarou que esta notícia era absolutamente fantástica e salientou que, nunca como agora, foram tão apertados os laços entre Portugal e as suas colónias. (...)” Ibidem, f. 588.
[7] Arquivo Oliveira Salazar, Correspondência Oficial, Ultramar, nº 62, Pasta 34, ff. 765-766 ( Arquivo Nacional da Torre do Tombo ).
[8] As passagens desse relatório confirmam-nos as inferências feitas no texto: “(...) Há um grande perigo de perdermos a parte norte da nossa colónia de Moçambique. (...) I) A Revolução abençoada de 28 de Maio ainda não chegou a África. (...) Os funcionários continuam a pertencer à Maçonaria como dantes e até assinam os pontinhos da praxe. (...) A espionagem estrangeira tem como braço direito a Maçonaria. Como há duas lojas, uma delas dissidente, uma auxilia a Alemanha, a outra a Inglaterra. (...) O que tem valido a Portugal tem sido serem muitos querer a mesma coisa. Porem desta vez estão todos de acordo. A Inglaterra visa as regiões fronteiriças do Niassaland e a Zambézia ( agricultura e as regiões mineiras ). A Alemanha visa as regiões do algodão e do sizal por causa das célebres matérias-primas. Se não dão provedidências urgentes e se isto não leva uma limpeza radical, ficaremos sem a parte norte da colónia de moçambique, província de Niassa (...) Peço maior segredo e que isto só seja lido e comunicado a quem seja português e possa agir por Portugal. Isto é quase um grito de S.O.S. Os portugueses e católicos verdadeiros, que estão de alma e coração com o Estado Novo e a obra abençoada de Salazar, e que se arriscam a tudo, fazendo espionagem por sua conta própria, inimigos irreconciliáveis da Maçonaria e Portugueses acima de tudo, ver-se-ão seriamente ameaçados, perdidos mesmo, se não são tomadas medidas enérgicas contra este estado de coisas. (...)” Ibidem, ff. 765-766.
Italo Calvino sempre foi um dos meus escritores predilectos pelo seu potencial criativo. Há muito em comum entre José Gomes Ferreira e Italo Calvino: uma escrita criativa e um clima surrealista que os tolhe, o papel “antifascista” dos dois contra, respectivamente, Benito Mussolini e António de Oliveira Salazar, um mesmo ideário comunista, a que Italo Calvino renuncia em 1957, e um ano comum de cerramento das pálpebras (1985).
Quando comecei a ler “As Aventuras de João Sem Medo” de José Gomes Ferreira, escritas em 1933 e terminadas em 1963, logo me apercebi do paralelismo estético existente entre estes dois magistrais escritores latinos. Ambas as obras literárias, de prosa, são um hino à imaginação, tal como a nona Sinfonia de Ludwig van Beethoven é um hino à alegria e à generosidade da Humanidade. Neste ambiente de crise Ética e Económica, em que vivemos, as visões generosas destes dois escritores são exultantes. Sem esquecer, todavia, o legado intervencionista que os seus exemplos de vida nos legaram.
É, certo, que existem diferenças nas suas carreiras, pois o escritor português seguiu mais a veia poética e o escritor italiano mais a via ensaística, embora ambas paralelas às narrativas de contos e de romances. Quero-vos apresentar dois magníficos documentários feitos sobre as obras destes dois escritores.
Italo Calvino escreveu uma trilogia literária fantástica intitulada respectivamente “O Barão Trepador”(1957), “O visconde cortado ao meio”(1952) e “O Cavaleiro Inexistente”(1959). A imaginação e o sentido alegórico que subjaz às suas obras e, em particular, no livro do visconde que está preso por duas consciências antagónicas dão-nos um universo que entra no carácter simbólico do onírico. Esta é, com efeito, a ponte que liga as duas margens do universo temático surrealista da literatura portuguesa e italiana. Igualmente, o esteio criativo deste género de literatura é a defesa da escrita intuitiva que torne emergente o inconsciente dos escritores numa proposta estética que se alavanca no ideário da Psicanálise.
Contudo, afigura-se-me que José Gomes Ferreira quis refundar um universo mitológico que partindo das histórias populares, para crianças, as superasse pelo tom poético imprimido às coisas banais, enquanto Italo Calvino pretendendo respeitar o património imaterial dos contos de fadas quis criar histórias imaginativas com forte sentido alegórico. Neste sentido, a escrita de José Gomes Ferreira emerge de forma mais clara como uma sátira política, às ditaduras (militar, salazarista ou caetanista), ou social, à mentalidade pessimista dos portugueses.
Em suma, nos arremedos narrativos surrealistas destes dois escritores espreita a alegria das cores fantasistas e das mensagens simbólicas que devem unir os criadores literários aos seus leitores. Vale, pois, bem a pena uma incursão por este património imaterial da Cultura Latina.
Nos anos 20 e 30 aparecem na comunidade internacional alguns libelos denunciadores da prática dissimulada da escravatura em Angola e em Moçambique e alguns elementos ligados às populações nativas do ultramar começam a sustentar a tese de que seria necessário alargar o direito de cidadania aos indígenas. Talvez um dos primeiros indivíduos a defender ser imprescindível alargar os direitos de cidadania aos indígenas africanos seja o parlamentar socialista Ladislau Batalha.
No entanto, com a ditadura militar a discriminação dos indígenas africanos acentua-se com a consagração de um estatuto jurídico dos indígenas dos territórios africanos, que obrigava a cumprir rigorosos requisitos aos indivíduos que estivessem interessados em transitar do estatuto de indígena ao de cidadão (1929). E, por sua vez, no Estado Novo esta tendência discriminatória para os naturais do ultramar estende-se a outras colónias mais desenvolvidas, o que levou ao protesto de uma associação da Índia portuguesa.
O deputado socialista Ladislau Batalha e alguns quadrantes políticos progressistas sustentam, numa época de preconceitos racistas e duma explícita mentalidade de darwinismo social dominante na sociedade portuguesa, a concessão de direitos de cidadania aos indígenas africanos[1], destacando-se neste movimento cívico a Junta de Defesa dos Direitos de África. As ideias deste político perfilam-se numa concepção revolucionária de profunda reorganização político-institucional e defende que o sistema colonial deveria ter um pendor assimilacionista com uma larga autonomia administrativa.
Efectivamente, o deputado Ladislau Batalha na discussão do projecto dos Altos Comissários[2] na Câmara dos Deputados, em 3 de Agosto de 1920, sustentou teses progressistas a favor dos indígenas africanos. Na verdade, assumiu uma atitude colonialista heterodoxa considerando que estes cargos implicavam uma falsa descentralização da administração colonial e que este projecto legislativo postulava uma sujeição das colónias à metrópole. Este político propunha uma profunda descentralização colonial consignadora de direitos e regalias aos indígenas das colónias, à semelhança do que se praticava na política colonial francesa.
Este ponto de vista era defensável visto que as Cartas Orgânicas Coloniais proclamavam como princípios básicos de administração colonial a autonomia financeira e a descentralização administrativa, só que, a seu ver, estes pressupostos não passavam de uma mera declaração de intenções sem operacionalidade prática. A sua doutrina colonial contrária à oficialmente aceite, inspirada nos Estatutos da Junta de Defesa dos Direitos de África[3], consagrava os seguintes princípios: as leis para as colónias deviam ser comuns à metrópole ( assimilacionismo legal ); o império africano português deveria funcionar como um sistema federal; as colónias teriam de possuir uma autonomia administrativa considerável, devendo a acção civilizadora ser exercida nesse sentido; os direitos de propriedade das populações nativas tinham de ser defendidos e elas deviam ser educadas para que soubessem governar-se a si próprias. Estava subjacente a esta doutrina colonial o seu ideário socialista que prezava como valores supremos: a liberdade, a igualdade e a solidariedade.
Ladislau Batalha revelava que à política colonial portuguesa presidia uma lógica egoísta, na medida em que constatava estarem as colónias subjugadas aos interesses económicos da metrópole e que consequentemente aceitava-se a “escravização” dos indígenas. Deste modo, denunciava que não eram tidos em conta os interesses das populações nativas, não lhes sendo dados direitos de cidadania, nem educação, nem se construíam as necessárias infra-estruturas de desenvolvimento material, prevalecendo como única lógica na política colonial portuguesa a exploração económica dos territórios e das populações autóctones.
Estas ideias eram controversas na época, porque este político preconizava que a descentralização colonial passava por conceder poderes civis e políticos aos indígenas das colónias, o que contrariava a doutrina ortodoxa que postulava dever a descentralização concretizar-se na simples transferência de poderes administrativos da metrópole para os colonos dos territórios ultramarinos ou para os delegados do poder central. Em suma, estava em discussão, também neste caso, o grau e a natureza da descentralização político-administrativa colonial.
Por outras palavras, este socialista acusava o sistema colonial português de ser injusto ao estabelecer uma desigualdade civil entre os indivíduos originários da metrópole e os originários das colónias, afirmando que as exigências para os indígenas serem cidadãos não se aplicavam aos naturais de Portugal continental, não obstante se soubesse que o analfabetismo e a miséria grassavam na metrópole como nas colónias. De facto, denunciou que a desigualdade social entre colonizadores e colonizados no plano jurídico da cidadania era a evidência da subjugação das colónias aos interesses egoístas da metrópole. Criticou também a venda do trabalho dos indígenas de Moçambique às minas da África do Sul, no momento em que se discutia a actualização da Convenção com este país e os parâmetros desta emigração indígena, e denunciou que o cargo de Alto-Comissário só na aparência correspondia a uma descentralização colonial[4], dado que na sua perspectiva estes dignitários eram instrumentos locais do governo da metrópole[5].
Em 1933, na altura em que o Acto Colonial estava a ser integrado na Constituição fundadora do Estado Novo, a União Goana contestou o facto dos indivíduos originários da Índia Portuguesa terem passado a ser excluídos dos direitos de cidadania, o que significou uma acentuação da discriminação entre colonizadores e colonizados resultante das crenças racistas do darwinismo social que voltaram a estar em voga durante os primórdios do regime Salazarista. Em carta do Presidente do Comício da Comunidade Goesa, V. Bragança Cunha, ao ministro Armindo Monteiro é enviada a moção[6], votada por unanimidade, de protesto contra os princípios do Acto Colonial.
Esta moção da União Goana foi votada em comício realizado em Bombaim a 30 de Julho de 1933 e contestou fundamentalmente dois princípios daquele diploma, a saber: que retirava aos originários das colónias, nomeadamente da Ìndia Portuguesa, os direitos civis e políticos de cidadania e que consignava um retrógrado sistema administrativo colonial centralizador. Por conseguinte, esta associação da cidade de Goa censurou de uma forma enérgica e pública a doutrina político-administrativa implícita no Acto Colonial[7].
De facto, a tese de que se deviam alargar os direitos de cidadania aos autóctones das colónias portuguesas surgiu no contexto internacional das acusações dos abusos laborais sobre os indígenas das colónias de Angola e de Moçambique durante a 1ª República, o que deu origem às políticas indígenas protecionistas de Norton de Matos e de Brito Camacho sem se chegar a adoptar esta tese heterodoxa. Todavia, com a Ditadura Militar e com o Estado Novo sob o efeito da mentalidade social darwinista e da concepção elitista da política autoritária os autóctones das colónias portuguesas viram-se excluídos do direito de cidadania.
Não obstante, D. Sebastião Soares Resende, bispo da Beira de 1943 a 1967, foi à revelia do Estado Novo um contestatário do Estatuto do Indigenato[8] por achar que este só servia, não para discriminar positivamente os nativos africanos no sentido de os auxiliar a civilizarem-se, para efectivamente os explorar como mão-de-obra barata ou gratuita. Esta posição de defesa dos direitos humanos dos indígenas por parte do bispo D. Sebastião Soares Resende gerou dissabores e incómodos nos colonos fazendeiros brancos que o viam inculcar um espírito de insubmissão nos trabalhadores autóctones. A sua rota de colisão ideológica com o regime Salazarista revelou-se ao ponto da Censura e da Polícia Política ter sido posta no seu encalço.
Ladislau Batalha e D. Sebastião Soares Resende foram, assim, percursores do que viria a tornar-se uma realidade doutrinária com a pressão dos acontecimentos, descolonizadores e com o início da guerra colonial, que levou Manuel Maria Sarmento Rodrigues a declarar a transitoriedade do estatuto do ingenato em 1953 e Adriano Moreira a pôr-lhe fim em 1961.
Nuno Sotto Mayor Ferrão
[1]Diário da Câmara dos Deputados, sessão nº 122, 3 de Agosto de 1920, pp. 5-10.
[2] Após um ano desde o início da discussão política do projecto do cargo dos Altos Comissários coloniais continuava a ser intensamente debatido no Parlamento, embora tivesse sido momentaneamente promulgado pelo Governo de Domingos Pereira. Nesta sessão foram discutidas as emendas do Senado a este projecto de descentralização administrativa colonial, tendo participado na troca de argumentos os deputados Vasco de Vasconcelos, Ladislau Batalha e o ministro das colónias Ferreira da Rocha. Este último queixava-se de não saber se devia nomear Altos-Comissários ou governadores para Angola e Moçambique.
[3] Cf. Estatutos da Junta de Defesa dos Direitos de África, Lisboa, Centro Tipográfico Colonial, 1912. A Junta de Defesa dos Direitos de África foi uma corporação federadora de diversas associações de indígenas da África portuguesa que existiu pelo menos de 1912 a 1922, tendo protagonizado na sociedade portuguesa uma posição colonial heterodoxa ao defender os interesses, os direitos e as liberdades económicas, sociais e políticas dos indígenas das colónias africanas portuguesas. Tendo sido fundada em 1912 afirmava defender algumas finalidades sociais, designadamente as seguintes metas: estimular a autonomia administrativa das colónias; salvaguardar os direitos de propriedade dos indígenas contra a cobiça de colonizadores pouco escrupulosos; contribuir para a elevação cultural e educativa dos indígenas; influenciar a legislação da metrópole a reger-se pelos ideais humanitários da Revolução Francesa. Segundo os seus estatutos estas finalidades seriam concretizadas recorrendo aos seguintes meios: elaboração de sugestões e pareceres fornecidos aos poderes públicos, criação de secções e comissões permanentes de trabalho fixados na sede, promoção de mecanismos de divulgação dos trabalhos da Junta ( algumas conferências, um jornal, uma biblioteca, um congresso, etc ). Previa-se também que esta organização fosse composta por diversos organismos internos ( Comité Federal, Comité Revisor de Contas, Assembleia Geral e Congresso Anual ). Na realidade, afigura-se-nos como sendo uma instituição progressista que se empenhou em pugnar pelas regalias e as liberdades económicas e políticas dos indígenas da África portuguesa, o que só foi possível no ambiente liberal da 1ª República.É interessante notar que ao Congresso, reunindo delegados de todas as agremiações federadas, competiria discutir e apreciar a política colonial internacional. Parece-nos perfeitamente plausível que nestes Congressos tenha havido críticas à política colonial portuguesa e propostas heterodoxas para modificar a estruturação da nossa administração colonial.
[4] Vide “(...) Visto que o Terreiro do Paço não pode, nem sabe governar, arranjam-se os intermediários, para governar colónias que podiam perfeitamente reger-se por si mesmas. (...) Pois, Sr. Presidente, se não cuidarmos a tempo e horas de refundir toda a nossa legislação colonial, dando às colónias absoluta descentralização, se não tratarmos de lançar os alicerces do novo edifício do provincialismo colonial, esperemos de qualquer recanto da Europa outro Ultimatum semelhante ao de 1890, que nos obrigue a enveredar pelo verdadeiro caminho. (...)” ( in Diário da Câmara dos Deputados, sessão nº 122, 3 de Agosto de 1920, pp. 5-10 ).
[5] Ladislau Batalha discordou da institucionalização do cargo de Altos Comissários, asseverando ser necessário rever toda a legislação colonial no sentido de aprofundar de forma verdadeira a impreterível descentralização administrativa ultramarina, pois caso contrário o país poderia sofrer de ameaças externas de usurpação territorial por parte de potências coloniais mais capazes de fomentarem o desenvolvimento colonial. Em resumo, ele foi um político heterodoxo defensor de uma doutrina de crítica à linha oficialmente aceite para a governação colonial.
[6] “Carta do Presidente do Comício da Comunidade Goesa ao ministro Armindo Monteiro”, in Arquivo Oliveira Salazar, Correspondência Oficial, Ultramar - 10- A, ffs. 98-99 ( Arqivo Nacional Torre do Tombo).
[7] Das seguintes passagens desta moção se esclarecem estas observações feitas no corpo do texto: “(...) Considerando que o Acto Colonial, hoje integrado na Constituição da República Portuguesa, restringe os diretos constitucionais que numa República tem de ser extensivos a todos os cidadãos, quer eles sejam metropolitanos, quer coloniais; (...) os emigrantes goeses dispensam promessas e declarações dos Delegados do Governo português na Índia, enquanto num Estatuto da Nação não estejam novamente integrados os seus direitos de cidadãos; (...) A comunidade goesa reunida num comício convocado pela União Goana, (...) delibera protestar perante o Governo da República Portuguesa, contra os princípios do Acto Colonial que hoje faz parte da Constituição Portuguesa, e muito em especial contra os artigos 2 e 32 do Acto Colonial. (...)” Ibidem, f. 99.
[8] Pedro Ramos Brandão, “O primeiro Bispo da Beira”, in História, nº 71, Novembro de 2004, pp. 42-47.
Verificamos que o grande debate das teses coloniais decorreu entre 1919 e 1931 na época em que se fazia sentir uma profunda crise administrativa nas colónias de Angola e de Moçambique, em que se complexificavam as instituições administrativas coloniais e em que existia uma notória instabilidade política na 1ª República e mesmo na Ditadura Militar, o que tornou possível uma discussão muito ampla e uma grande multiplicidade de teses propostas para fazer funcionar a máquina administrativa colonial em construção. Podemos detectar com base na cronologia quatro grandes fases do aparecimento das teses coloniais.
1ª Fase - De 1919 a 1923, quando se concretiza o regime dos Altos Comissários, manifestam-se sobretudo teses descentralizadoras moderadas na metrópole que visavam sugerir aperfeiçoamentos pontuais do sistema administrativo colonial e teses anticoloniais parciais ou totais que fervilharam em particular em Moçambique e em Angola. Estas teses anticoloniais foram defendidas por colonos empreendedores descontentes com as políticas laborais proteccionistas dos indígenas promovidas por José Norton de Matos e Manuel de Brito Camacho.
2ª Fase - No ano de 1924 tornou-se aguda a crise financeira em Angola e em Moçambique, o que deu lugar à destituição destes dois Altos Comissários, dando origem à prevalência conjuntural da tese heterodoxa centralizadora de fiscalização da estrutura administrativa colonial, pois os seus defensores pensavam que só assim se conseguiriam evitar novas situações de ruptura financeira. Esta tese foi especialmente ventilada no II Congresso Colonial Nacional realizado na Sociedade de Geografia de Lisboa.
3ª Fase – De 1925 a 1930 foram predominantes as teses descentralizadoras radicais ou descentralizadoras técnicas, porque começou a haver descrença no princípio da descentralização moderada que levará à mudança oficial para o princípio centralizador com a política colonial de João Belo durante o início da Ditadura Militar ( tese ortodoxa ). Assim, aquelas teses extremistas visaram aprofundar a operacionalização do mecanismo descentralizador no sentido de salvar este princípio das críticas que sofrera desde a crise colonial Angolana. Também neste período foi prevalecente no sul de Moçambique a tese anticolonial pan-africanista devido à pressão das ambições hegemónicas geo-estratégicas sul-africanas do carismático general Smuts.
4ª Fase – De 1930 a 1945 foi dominante a tese ortodoxa imperial centralizadora proposta pelo Acto Colonial em 1930 e o debate doutrinário restringiu-se praticamente ao III Congresso Colonial Nacional e a uma ou outra tese que passaram à revelia do controlo do regime autoritário. Com a institucionalização do Estado Novo em 1933 as instituições repressivas do regime e a inculcação da doutrina do regime através de fortes meios propagandísticos obstaculizaram a fácil circulação de teses coloniais heterodoxas.
Em 1930-31 duas grandes figuras do regime Republicano atacaram o espírito centralizador daquele diploma. Com efeito, o ex-presidente da República Bernardino Machado escreveu em 1930 um opúsculo afirmando que se consagrava uma “inconstitucional escravização das colónias” e Norton de Matos escrevendo no Primeiro de Janeiro propôs em 1931 a tese heterodoxa de uma descentralização federalista para o império colonial português que compatibilizasse a integridade da soberania portuguesa no ultramar com o princípio da transferência de competências para os orgãos coloniais.
Contudo, foi talvez em Moçambique de 1930 a 1945 que se manifestou a principal tese colonial heterodoxa, anticolonial pan-africanista que defendia a integração económica ou mesmo política de Moçambique na União Sul-Africana, acarinhada por alguns grupos de colonos que mantinham relações económico-comerciais com o país vizinho. De facto, o impacto que esta tese heterodoxa teve nesta colónia resultou da influência do projecto ambicioso de Smuts que pretendia que se formasse uma União Pan-Africana que ligasse economicamente os Estados livres do sul de Àfrica, daí o apoio que receberam as teses heterodoxas que pugnavam pela libertação de Moçambique da soberania portuguesa.
Por outro lado, um outro factor explica a vitalidade destas teses heterodoxas anticoloniais que circularam em Moçambique, pois o facto de existir uma mentalidade segregacionista na África do Sul[1] encorajou os colonos capitalistas a pretenderem associar-se ao país vizinho e a desvincular-se dos critérios humanistas seguidos pela metrópole portuguesa na relação laboral com os indígenas[2].
5ª Fase – De 1946 a 1961 a política colonial portuguesa foi pontuada por uma tenativa de maquilhar a estrutura imperial portuguesa para fazer face ao fenómeno da descolonização que começou a alastrar no continente asiático e à pressão da comunidade internacional impostas pela ONU e pelas duas grandes superpotências para a libertação dos povos coloniais. Deste modo, sob a orientação de alguns ministros carismáticos como Marcelo Caetano, Sarmento Rodrigues e Adriano Moreira deu-se uma mudança da aparência política da estrutura politico-administrativa do império colonial português.
Foi, neste contexto, que surgiu um grande debate na Câmara Corporativa em 1949 que dividiu os seus membros entre os adeptos da lógica imperialista e os adeptos de uma mudança formal das instituições imperiais. Dentro desta conjuntura histórica em que apareceram críticas violentas à acção colonial portuguesa, destacou-se o conhecido relatório de Henrique Galvão em 1947 denunciador dos abusos laborais sobre os indígenas de Angola à Assembleia Nacional.
Perante este contexto de agitação internacional e inquietação nacional foi possível a Marcelo Caetano, no seu consulado minsterial de 1944 a 1947, iniciar um processo de minguada descentralição administrativa do império colonial português, continuada e aprofundada pela política de Sarmento Rodrigues que esboçou uma ténue estrutura federal-lusotropicalista na revisão Constitucional de 1951 que integrou o Acto Colonial modificado no texto jurídico fundamental do Estado Novo e transformou a designação das terras coloniais em territórios ultramarinos de forma a salvaguardar a perpétua soberania do país sobre esses territórios.
Assim, consagrava-se a noção duma nação pluricontinental e plurirracial que, simultaneamente, se compaginava com algumas cedências administrativas em termos de implementação de uma descentralização e de uma tendência para a uniformização do estatuto jurídico das populações com a proclamação do fim a prazo do estatuto do indigenato (1951)[3] e com a sua abolição com o início da guerra colonial em Angola em 1961.
Foi todo este processo histórico de mudança institucional permitido por Salazar, de forma moderada, no sentido de se reagir à conjuntura internacional adversa, sem que no entanto se pusesse em causa a ideia da inalienabilidade das terras ultramarinas do país. Para o efeito chamou, para dar credibilidade a estas alterações, eminentes académicos e personalidades carismáticas[4] que dessem voz activa pelas políticas postas em curso.
Em suma, parece-nos que esta periodização histórica, que traçámos com base na nossa inovadora investigação, nos auxilia a compreender as conjunturas temporais que suscitaram o aparecimento das teses coloniais heterodoxas como alternativas às teses coloniais oficiais. Verificamos que factores internos e externos influenciaram as várias teses propostas[5]. Julgamos que esta é uma perspectiva inédita no panorama científico português ao descobrir novas teses coloniais do debate político português entre guerras.
Nuno Sotto Mayor Ferrão
[1] Não nos podemos esquecer que este segregacionismo larvar perante os negros que existia na sociedade sul-africana veio a desembocar na criação do regime do “Apparthaid” em 1948.
[2] Convém também lembrar que o auge da circulação das teses anticoloniais ( emancipalista e pan-africanista ) sucederam entre 1922 e 1924 entre grupos de colonos com interesses económicos em Angola e em Moçambi-que, na altura em que os Altos Comissários Norton de Matos e Brito Camacho procuraram proteger os indígenas dos abusos laborais dos patrões brancos.
[3] É interessante que esta medida de pôr fim ao indigenato e de consagrar a integração na cidadania de todos os povos do império faça lembrar a medida idêntica que o imperador Caracala tomou no império romano em 212 para conseguir apaziguar os conflitos sociais entre populações numa altura em que o império entrava politicamente em decadência.
[4] As mais importantes personalidades que trabalharam com esse objectivo foram: Marcelo Caetano, Sarmento Rodrigues, Gilberto Freyre, Joaquim Silva Cunha e Adriano Moreira.
[5] Afigura-se-nos que os factores que terão influenciado mais a evolução histórica do aparecimento de novas teses coloniais neste período foram os seguintes:
As cobiças estrangeiras à posse das colónias portuguesas
As críticas da opinião pública internacional à deficiente gestão colonial portuguesa
A pretensão da União Sul-Africana de incorporar a colónia de Moçambique
A crise financeira de Angola e de Moçambique de 1924
A acusação internacional da prática da escravatura por Portugal em Angola e Moçambique
O problema da desnacionalização de Moçambique devido à autoridade das Companhias Megestáticas e ao peso dos estrangeiros
O projecto megalómano do marechal Smuts de formar uma União Pan-Africana que ligasse economicamente os Estados livres do Sul de África
As estreitas relações comerciais entre a África do Sul e Moçambique devido à mão-de-obra indígena usada no país vizinho e à utilização do caminho de ferro e do porto de Lourenço Marques
A negociação em 1922 do novo Convénio entre Moçambique e a União Sul-Africana
O insucesso das missões laicas de civilização dos indígenas africanos criadas pelo regime Republicano
O II e o III Congressos Coloniais Nacionais realizados na Sociedade de Geografia de Lisboa ( 1924 e 1930)
A crise económico-financeira internacional provocada pela ruptura bolsista de Nova York ( 1929)
Nos anos vinte, do século passado, pairaram inúmeras ameaças internacionais à soberania colonial portuguesa. Deste modo, foram aparecendo diversos cenários que representaram ameaças específicas, consoante as conjunturas nacionais e internacionais vividas. Contudo, duas fortes críticas à soberania portuguesa nas suas colónias perpassaram os diversos fóruns internacionais e as opiniões públicas estrangeiras entre as duas guerras mundiais (1919-1945).
No momento em que Portugal se libertava das campanhas de pacificação nas colónias africanas, urgia enraizar a autoridade do Estado nas colónias, em conformidade com o critério internacionalmente aceite desde a Conferênia de Berlim de 1884-1885 e confirmada na Convenção de Saint-Germain-en-Laye de 1919. Assim, desde o fim da 1ª República que o país enfrentava uma firme contestação internacional à sua legitimidade colonial. Com efeito, aparecem duras críticas da opinião pública internacional à deficiente gestão colonial portuguesa, ou seja, à incapacidade do Estado português fazer valer a sua autoridade nas colónias e de lhes garantir meios de desenvolvimento[1].
Por outro lado, outros países colonizadores, cobiçosos das colónias portuguesas, acusavam-nos de continuar a “prática da escravatura”, em Angola e em Moçambique, devido ao aproveitamento desumano da mão-de-obra autóctone. Em função destes pretensos defeitos administrantes de Portugal surgem cobiças estrangeiras à posse das colónias portuguesas.
A especificidade Moçambicana, no quadro colonial português, nos anos vinte ficou-se a dever a um conjunto de factores endógenos e exógenos. Em primeiro lugar, verificaram-se estreitas relações comerciais entre a África do Sul e Moçambique devido à mão-de-obra moçambicana usada nas minas da região do Rand e à utilização do porto de Lourenço Marques como local de embarque dos produtos de exportação sul-africanos, o que era uma situação que já vinha do início do século XX e, designadamente, da Convenção de 1909 com o Estado do Traansval. Em segundo lugar, houve um ambiente favorável à “desnacionalização”, da mentalidade das populações em Moçambique, caracterizado pela autoridade exercida em certas regiões desta colónia por parte de Companhias Majestáticas e pelo peso significativo que as comunidades estrangeiras tiveram neste território ao ponto de existirem periódicos publicados noutras línguas como o Lourenço Marques Guardian.
É neste contexto específico que se explica a pretensão da União Sul Africana de anexar Moçambique, o que deu origem a teses controversas que emergiram nesta colónia chegando alguns grupos da sociedade moçambicana a defender ideias radicais e profundamente heterodoxas de desvinculação do Estado Português, porque tinham interesses e negócios estreitos com alguns Estados vizinhos. Daí que, por exemplo, os políticos sul-africanos presentes na Conferência de Paz de 1919 em Paris, Louis Botha e Jan Christiaan Smuts, tenham pressionado Portugal para que cedesse a estratégica cidade de Lourenço Marques à União Sul-Africana[2].
Na verdade, nos anos trinta a União Sul-Africana continuou sob o impulso do carismático general Smuts a pretender incoporar Moçambique no seu território e disso estavam bem conscientes os políticos portugueses. Por exemplo, em 1939 o ministro das colónias, José Vieira Machado temia, em desabafo de consciência com António de Oliveira Salazar[3] em pleno conflito mundial, que a União, sob pretexto de que Moçambique se encontrava militarmente indefesa, se aproveitasse para garnecer a sua defesa e se apoderasse subrepticiamente das funções de soberania de Portugal dando por consumado um facto há muito desejado.
Na mesma década, pairou o perigo da Alemanha ou da Inglaterra anexaram o norte de Moçambique com o apoio explícito de habitantes da colónia. Já nos anos quarenta, Smuts protagonizou a defesa de uma União Pan-Africana que ligasse economicamente os Estados livres do Sul de África, o que foi um factor impulsionador das ideias emancipatórias de Moçambique do domínio português. Na realidade, a possibilidade de independência estaria escorada em fortes conexões económicas com os países vizinhos.
Em resumo, estes factos históricos configuraram ameaças reais e imaginárias à soberania portuguesa nas colónias africanas e, em particular, a Moçambique que pairaram nesta conjuntura da primeira metade do século XX.
Nuno Sotto Mayor Ferrão
[1] Talvez a mais importante voz critica tenha sido a do sociólogo norte-americano Edward Ross que publicou um relatório que apresentou à Sociedade das Nações em 1925, que alcançou um notável êxito mediático, denunciando muitos erros e incapacidades da administração colonial portuguesa da época.
[2] José Medeiros Ferreira, Portugal na Conferência de Paz – Paris, 1919, Lisboa, Quetzal Editores, 1992, p. 31.
[3]Carta do ministro das colónias J. Vieira Machado a Salazar de 17 de Novembro de 1939, in Arquivo Oliveira Salazar/ Correspondência Oficial/ Ultramar – Pasta 9 A, ff. 94-103 ( Arquivo Nacional da Torre do Tombo).
José Hermano Saraiva nasceu em Leiria, no ano de 1919, onde viveu os primeiros anos e frequentou o Liceu Nacional. Foi irmão de um ilustre investigador da Cultura Portuguesa, António José Saraiva. A sua formação universitária assentou em duas licenciaturas, que concluiu com êxito, em Ciências Histórico-Filosóficas e em Ciências Jurídicas, no decorrer da 2ª Guerra Mundial. Deste modo, começou a vida profissional como professor liceal e, ao mesmo tempo, como advogado em Lisboa. Neste período, publicou o primeiro livro, de âmbito literário, intitulado “Vento vindo dos montes: contos” (Porto, Editora Latina, 1944).
Pela sua veemente convicção nacionalista, durante o Estado Novo, foi deputado à Assembleia Nacional, procurador da Câmara Corporativa e ministro da Educação entre 1968 e 1970, tendo enfrentado a oposição estudantil à Ditadura em 1969. Teve passagens fugazes por diversas instituições do Ensino Superior, nos anos 60, no Instituto Superior de Ciências Sociais e Política Ultramarina, de Lisboa e, já no regime democrático, no Instituto Superior de Ciências Policiais e de Segurança Interna e na Universidade Autónoma de Lisboa.
Nos anos 50 revelava já uma preocupação com a divulgação de uma Cultura Histórica e Nacional através da participação na dinamização de um evento comemorativo na sua terra natal e do envolvimento num programa de formação de adultos. Assim, em 1954 impulsionou a comemoração do VII Centenário das Cortes de Leiria (1254-1954), no espírito das comemorações nacionalistas do anterior regime, e em 1958 dirigiu uma Campanha Nacional de Educação de Adultos[1] com o objectivo de combater as elevadas taxas de iliteracia que grassavam no país. Possivelmente, terá sido pelo êxito destas iniciativas que António de Oliveira Salazar o convidou a abraçar a Pasta da Educação Nacional.
O prestígio intelectual auferido tem sido reconhecido pelo mundo Luso-Brasileiro por ter desempenhado o cargo de Embaixador de Portugal no Brasil entre 1971 a 1974, tendo sido agraciado com condecorações honoríficas e recebido vários Doutoramentos “honoris causa” de Universidades Brasileiras[2]. Com efeito, embora não tenha nunca obtido nenhum grau académico superior à licenciatura adquiriu, pela sua carreira de dedicação à divulgação histórica, inúmeros lugares em instituições culturalmente reputadas (membro da Academia das Ciências de Lisboa, da Academia Portuguesa de História, da Academia de Marinha e do Instituto Histórico-Geográfico de São Paulo) e distinções honoríficas nacionais e estrangeiras do mundo lusófono.
Com a instauração do regime democrático deixou de se envolver directamente na política e concedeu prioridade ao estudo e à divulgação da Cultura e da História Portuguesa. Neste período, ficou conhecido como um carismático divulgador da História do país, como escritor e comunicador televisivo, porque as suas sínteses pedagógicas serviram milhares de estudantes e a sua arte retórica, possivelmente inspirada no político António Cândido Ribeiro da Costa[3], expressa nos seus gestos de efusiva teatralidade Barroca, na clareza didáctica da suas explicações e na magia do seu poder imaginativo, têm cativado a população portuguesa e transformado os seus programas em êxitos continuados de audiências. São características emblemáticas da sua linguagem: quer a expressividade Barroca das suas mãos, que ficou gravada na retina de milhões de portugueses, quer a sua carismática frase, que em muitos programas repetiu à exaustão, “foi aqui, exactamente aqui…” que fascinou muitos telespectadores.
A obra intelectual de José Hermano Saraiva consta de dezenas de livros publicados, de múltiplos artigos ou discursos editados, que se repartem por trabalhos de investigação histórica, de prelecção pedagógica, de conteúdo jurídico e, fundamentalmente, pelos livros de divulgação da memória colectiva como coordenador de obras colectivas que reuniu uma plêiade de historiadores e de investigadores, pelos livros de síntese histórica e pelos programas televisivos de grande habilidade na oratória que prenderam a atenção mediática de muitos telespectadores. Dos seus livros mais relevantes destacamos: História Concisa de Portugal[4], que foi já traduzida em várias línguas, História de Portugal em vários volumes que dirigiu alguns prestigiados historiadores e investigadores[5] (José Mattoso, Humberto Baquero Moreno, Joaquim Veríssimo Serrão, António Reis, Armando de Castro, Óscar Lopes, etc) e a Breve História de Portugal[6].
Em suma, José Hermano Saraiva alcandorou-se em autêntico diplomata da Cultura Portuguesa no mundo pela projecção internacional que tem alcançado junto da opinião pública nacional, das comunidades portuguesas espalhadas pelo mundo e de muitos lusófilos estrangeiros.
Nuno Sotto Mayor Ferrão
[1] António Pedro Vicente, “José Hermano Saraiva”, in Dicionário de História do Estado Novo, dir. Fernando Rosas e J.M. Brandão de Brito, vol. 2, Lisboa, Editora Bertrand, 1996, pp. 887-888.
[3] Na verdade, José Hermano Saraiva antes de iniciar as suas séries documentais de grande sucesso televisivo proferiu uma palestra sobre o brilhante orador António Cândido (1852-1922) na Academia das Ciências de Lisboa, que esta instituição editou em 1988.
[4] José Hermano Saraiva, História Concisa de Portugal, Mem Martins, Publicações Europa-América, 1978.
[5]História de Portugal, Direcção de José Hermano Saraiva, Lisboa, Publicações Alfa, 1986.
[6] José Hermano Saraiva, Breve História de Portugal: ilustrada, Amadora, Editora Bertrand, 1981.
Manoel Cândido Pinto de Oliveira nasceu no Porto, a 11 de Dezembro de 1908, no seio de uma família da burguesia industrial nortenha que possuía fábricas em diversos sectores: têxtil, das lâmpadas eléctricas e da produção hidroeléctrica. É, na actualidade, o mais velho cineasta do mundo, tendo celebrado o seu centésimo segundo aniversário no final do ano que passou (2010). Aos 19 anos começou a trabalhar, auxiliando o pai, na indústria e na gestão agrícola de propriedades rurais. Ao mesmo tempo, cultivou uma vida boémia e de enriquecimento cultural frequentando tertúlias literárias. Nos primeiros anos de vida alcançou alguma notoriedade pública como um infatigável desportista, cultivando diversas modalidades como a ginástica, a natação, o remo, o atletismo e o automobilismo, tendo sido campeão de salto à vara e ganho uma corrida de automóveis.
Foi um prolífero cineasta que se dedicou à criação de documentários etnográficos e de filmes poéticos que geraram celeuma pública e reconhecimento da crítica internacional. Estes filmes poéticos, de rara beleza, que constituem o cerne do seu estilo cinematográfico caracterizam-se pelos longos diálogos em prejuízo da acção dos personagens, mas são reveladores de cenários históricos ou sociais onde perpassam íntimas subjectividades. Com efeito, a mensagem poética dos seus filmes valorizadora dos diálogos teatrais, repare-se na cena aqui reproduzida do filme “Non ou a vã glória de mandar” (1990), em ritmo lento constituem ecos ressonantes que se instalam no Espírito do espectador mais atento.
Efectivamente, houve três factores biográficos que marcaram este seu cunho cinematográfico. Em primeiro lugar, os filmes que o pai o levou a ver de Charles Claplin e de Max Linder. Em segundo lugar, a sua convivência com escritores como José Régio e Agustina Bessa-Luís e a leitura das Cartas de São Paulo, talvez por ter passado por um colégio de Jesuítas na Galiza, que se repercutiu na sua mentalidade fortemente espiritual. Em terceiro lugar, a sua formação artística inicial, nos anos 20, onde frequentou uma escola de actores, fundada pelo cineasta italiano Rino Lupo na cidade do Porto, e a sua participação em 1933 no filme sonoro português intitulado “A Canção de Lisboa” do cineasta e arquitecto Cottinelli Telmo.
Afigura-se-nos que devido ao retrato antropológico, demasiado próximo das correntes do Neo-Realismo, imprimido à sociedade portuguesa no seu clássico filme Aniki-Bobó (1942) e nos seus documentários etnográficos, por exemplo no filme “Douro, Faina Fluvial” (1931), foi preterido pelo regime do Estado Novo que mediante o Fundo do Cinema não lhe reconheceu talento no quadro dos pressupostos ideológicos Salazaristas, dando antes preferência ao estilo da comédia popular que entretinha a população portuguesa. Em 1962 quando rodava o filme “O Acto da Primavera” foi detido pela PIDE, durante alguns dias, devido a alguns diálogos da película que geraram inquietação nos agentes do regime.
A sua carreira cinematográfica só ganhou um ritmo alucinante, em contraposição ao ritmo das suas películas, com a sua consagração internacional, a partir dos anos 60, com os reconhecimentos da crítica cinematográfica, francesa e italiana, e com o desabrochar do regime de liberdades instaurado com a Revolução do 25 de Abril de 1974 que lhe permitiu a liberdade criativa para produzir uma obra que é parte integrante do Património Cultural definidor da identidade portuguesa. Assim, durante o regime do Estado Novo realizou apenas três longas-metragens e com o regime democrático fez vinte e sete longas-metragens. O reconhecimento internacional adveio dos Prémios de alguns Festivais de Cinema que tem recebido e dos mediáticos actores estrangeiros que colaboraram em alguns dos seus filmes (Catherine Deneuve, Marcello Mastroianni, John Malkovich, Lima Duarte, etc).
É indeclinável que alguns actores portugueses amadureceram nos seus filmes (Luís Miguel Cintra, Leonor Silveira, Diogo Dória, Rogério Samora, etc.). Manoel de Oliveira acabou de realizar a sua última curta-metragem, no final de 2010, com uma homenagem à Cultura Portuguesa intitulada “Painéis de São Vicente de Fora, Visão Poética”. O seu reconhecido papel como criador cultural fê-lo liderar um grupo de personalidades ligadas à Cultura Portuguesa que receberam o Papa Bento XVI em Lisboa no Centro Cultural de Belém. Com estes gestos simbólicos, de plena lucidez, quis-nos transmitir a noção de que a sua obra está recheada de um Humanismo Universalista que pode e deve fazer irradiar o espírito lusófono de abertura ao mundo.
O envolvimento de Portugal nas operações da Nato no Afeganistão e a necessidade de prestigiar o nosso país neste momento em que os voláteis mercados internacionais desconfiam da nossa capacidade de solver os juros dívida pública externa podem ter determinado os órgãos de soberania da pátria lusitana a fazer esta proposta, de realização da Cimeira de Lisboa em 2010 a 19 e 20 de Novembro, aos dirigentes da Nato.
A Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN/NATO) foi criada em 1949 no contexto inicial da guerra fria entre as duas superpotências (EUA-URSS), tendo Portugal ingressado no período do Estado Novo, de forma imediata nesta Aliança de defesa militar, pela sua política geoestratégica de protecção das suas colónias no conturbado ambiente anticolonialista do pós-guerra. Constituiu-se, assim, como uma aliança militar anti-soviética em pleno período de corrida ao armamento e de tensão entre os dois blocos rivais, capitalista e comunista. Aderiram à Nato os países da América do Norte e da Europa Ocidental, integrantes do modelo capitalista.
Após a queda do muro de Berlim (1989) e a desintegração da URSS (1991) o mundo deixou de ser bipolar, passando a ser unipolar por uns anos, mas com as incapacidades político-militares reveladas pelos EUA tornou-se evidente que o mundo passou a ser, na Era da Globalização, multipolar e, como prova disso, sucedeu o alargamento do G7 para G8 e, posteriormente, para G20. Com o trágico acontecimento de 11 de Setembro de 2001, o mundo aprendeu a viver nas incertezas, de um planeta demasiado intercomunicante, que o transformou numa pequena aldeia de grandes vulnerabilidades.
Assim, neste contexto do início do século XXI, emergem novas ameaças a que a Nato, superiormente representada pelo Conselho do Atlântico Norte, procura dar uma resposta eficaz. Das ameaças à segurança dos países membros sobressaem: o perigo terrorista, a eventualidade de uma guerra clássica, a proliferação de armas de destruição maciça (designadamente das bombas atómicas nas mãos de vários países), o risco de uma guerra química ou biológica e o vazio institucional de alguns países que se tornaram “antros” de malfeitores. Por outro lado, a incapacidade militar da Organização das Nações Unidas (ONU) de fazerem prevalecer as normas jurídicas internacionais procedentes do Conselho de Segurança tornou a Nato um instrumento fundamental da segurança colectiva da Civilização Ocidental.
Perante estas novas ameaças está a ser revisto, e discutido, o novo conceito estratégico de defesa dos países-membros do Conselho do Atlântico Norte. Quais são, então, os novos inimigos dos países ocidentalizados? No plano da segurança colectiva, os actores hostis parecem ser os guerrilheiros do terror, que atacam as populações civis indefesas, dos países economicamente mais prósperos ou mais interventivos no plano da segurança colectiva Global. Os países sem Estado, como a Somália e o Afeganistão em reconstrução, entre outros, constituem motivo de profunda preocupação, porquanto grupos e indivíduos, aí entrincheirados, fornecem cobertura a actividades criminosas para a segurança internacional, respectivamente com a pirataria no oceano Índico e com o terrorismo de escala planetária.
A necessidade de gerir de forma racional os recursos militares da Nato, face à presente crise económica mundial e aos imparáveis gastos militares, exige, nas palavras do Secretário-Geral da Nato, Anders Fogh Rasmussen, a reestruturação das cadeias de comando dos quartéis-generais da organização, implicando uma redução dos comandos estratégicos por uma questão de economia de custos. Neste contexto economicista, o quartel-general da Nato em Oeiras vislumbra-se dispensável no novo figurino institucional da organização. Ou seja, a lógica desta reestruturação passa por reconfigurar as estruturas institucionais, no sentido de as tornar mais leves, reduzindo gastos financeiros, sem perda de capacidade operativa das suas forças responderem com eficácia às novas ameaças emergentes nesta conjuntura da Globalização.
Portugal possuiu, actualmente, contingentes militares integrados nas operações da Nato no Kosovo e no Afeganistão. Aliás, em Novembro de 2005 morreu o militar português João Paulo Roma Pereira, do Alandroal, nas operações de segurança no Afeganistão num serviço de grande dignidade prestado à Pátria e à Humanidade. A crise económica internacional constitui uma pressão complementar para uma eventual retirada, faseada, das forças da Nato deste país. Eventualmente, haverá outro ponto informal da agenda desta Cimeira, a introduzir por vontade do seu Secretário-Geral, que será o debate sobre o sistema antimíssil a criar nos países-membros.
A Nato e a Rússia estão em processo de reaproximação, depois da queda do figurino político da Europa de leste, resultante da guerra fria, e da integração destes países na União Europeia, daí a sessão de trabalhos prevista entre os responsáveis políticos do Conselho do Atlântico Norte e os responsáveis Russos. A Federação Russa sente necessidade de aproximação ao Ocidente devido à insegurança interna que sente pelo terrorismo checheno e pelas organizações clandestinas que subsistem no país devido ao mercado negro.
Perante esta Cimeira internacional, e o impacto mediático que irá ter, os meios de segurança interna foram reforçados na vigilância e na monitorização da circulação aérea, naval e terrestre no território nacional. Nesta medida, foi suspenso por alguns dias o acordo de Schengen, de liberdade de circulação de pessoas da União Europeia, e foi montado por todo o país um sistema de controlo fronteiriço de indivíduos. Este sistema de prevenção foi montado, porque se conhecem os distúrbios que algumas Manifestações, mais aguerridas, habitualmente causam e se acautelam eventuais actos indesejáveis sempre possíveis nestas ocasiões mediáticas.
George Agostinho Baptista da Silva, nasceu no Porto no início do século XX no regime da Monarquia Constitucional, tendo-se destacado como professor, filósofo e poeta. Contudo, a sua humildade e o seu sentido cívico aproximaram-no dos cidadãos, que muitas vezes tendem a olhar de soslaio para os filósofos, na medida em que procurou fazer da filosofia o móbil de legitimação da intervenção na sociedade e, por isso, mostrou a importância da “praxis” na vida dos filósofos. Deste modo, evidenciou-se como um Humanista no seu original pensamento da Liberdade e da Lusofonia que edificou com os seus escritos e com a sua vida.
Formou-se em 1928 em Filologia Clássica na Faculdade de Letras da Universidade do Porto com 20 valores. Desde então passou a colaborar na revista “Seara Nova”[1], durante 10 anos, onde teve oportunidade de conhecer grande parte do escol intelectual português. Com apenas 23 anos sustentou a sua Dissertação de Doutoramento, enveredando por uma perspectiva de Filosofia da História com o seu trabalho académico “O Sentido Histórico das Civilizações Clássicas”. De 1931 a 1933, já no contexto do autoritarismo português, foi estudar para Paris como Bolseiro na Sorbonne e no Collège de France.
No regresso a Portugal em 1935, já em pleno Estado Novo, começa a leccionar no ensino público secundário, mas tendo-se recusado a assinar um documento, que obrigava todos os funcionários públicos a declararem que não participavam em organizações secretas, é exonerado do cargo. Passa então para o ensino privado, onde foi professor de Mário Soares e de Lagoa Henriques. Nesta fase da sua vida dedicou-se com empenho às questões pedagógicas, levando-o à criação da Escola Nova de São Domingos de Benfica e do Núcleo Pedagógico Antero de Quental.
No início dos anos 40 quando se torna mais incómodo, pelos seus escritos, para o regime Salazarista, posicionando-se como um denodado oposicionista, a PVDE ( antiga designação da PIDE ) prende-o em 1943 e a Igreja Católica critica-o pelas suas ideias religiosas pouco ortodoxas. Estes factos adversos, indicativos de plena assumpção da sua liberdade, irão levá-lo ao exílio na América do Sul, tendo estado no Brasil, no Uruguai e na Argentina.
De 1947 a 1969 viveu no Brasil onde estudou e ensinou em diversas Universidades. Foi, com efeito, um intelectual empreendedor ao participar na criação da Universidade de Santa Catarina e na Universidade de Brasília e ao criar Centros de Estudos[2] que o fizeram aprofundar a compreensão da importância da Lusofonia. A proximidade intelectual que manteve com Jaime Cortesão, na investigação que desenvolveram sobre a figura de Alexandre de Gusmão e na Exposição do Quarto Centenário da cidade de São Paulo, terá sido decisiva para aprofundar a sua convicção lusófona, pois este eminente Historiador dos Descobrimentos Portugueses sempre sustentou a tese do Humanismo Universalista dos Portugueses.
Agostinho da Silva regressou a Portugal durante o período do Marcelismo, em 1969, e dedicou-se nessa altura, fundamentalmente, à escrita. Só após a Revolução do 25 de Abril de 1974 passou a leccionar regularmente em Universidades Portuguesas, designadamente na Universidade Técnica de Lisboa onde dirigiu o Centro de Estudos Latino-Americanos e foi designado consultor do Instituto da Cultura e Língua Portuguesa. Veio a transformar-se num dos mentores da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) pelas suas concepções e vivências lusófonas de fraternidade e união cultural dos países de língua portuguesa[3], sonhando mesmo com uma futura União Lusófona. Faleceu em Lisboa em 1994 sem conhecer esta nova instituição supranacional.
No princípio dos anos 90 a RTP1, imbuída de uma meritória missão de Serviço Público, emitiu uma série de notáveis entrevistas com o Professor Agostinho da Silva que o popularizou na sociedade portuguesa. Irei mostrar, de seguida, dois destes documentos televisivos intitulados “Conversas Vadias”. Além desta homenagem em vida, a este promotor da Cultura Lusófona, já postumamente constituiu-se a Associação Agostinho da Silva, em 1995, realizou-se a Comemoração do Centenário do seu nascimento, em 2006 e publicou-se o terceiro número da revista Nova Águia intitulado “O legado de Agostinho da Silva – quinze anos após a sua morte”[4] em 2009.
O original pensamento filosófico, expresso muitas vezes numa linguagem poética de maior acessibilidade, de Agostinho da Silva, que nos foi legado pelos seus escritos e depoimentos orais, só aparentemente é libertário pelo tom provocador, crítico, que imprimiu em algumas das suas mediáticas entrevistas, mas, na verdade, este pensador foi um construtor de uma “praxis” comprometida com uma elevada consciência cívica e social actuante, como a sua vida nos demonstra sobejamente.
Nuno Sotto Mayor Ferrão
[1] Fernando Farelo Lopes, “Seara Nova”, in Dicionário Encclopédico da História de Portugal, vol. II, Alfragide, Selecções do Reader’s Digest, p. 216.
[2] Agostinho da Silva criou o Centro de Estudos Afro-Orientais na Universidade de Santa Catarina e o Centro Brasileiro de Estudos Portugueses na Universidade de Brasília.
[3] Renato Epifânio, “Agostinho da Silva: um legado”, in A Via Lusófona – Um novo horizonte para Portugal, Sintra, Edições Zéfiro, 2010, pp. 86-89.
[4]Nova Águia, nº 3 – 1º Semestre de 2009, Sintra, Zéfiro Editores, 203 p.
Entrevista do Professor Agostinho da Silva conduzida pelo jornalista Adelino Gomes
Entrevista do Professor Agostinho da Silva conduzida pelo jornalista e escritor Armando Baptista-Bastos
Em Braga, a 28 de Maio de 1936, António de Oliveira Salazar, Presidente do Conselho de Ministros, fez um discurso de explícito enaltecimento ao Golpe de Estado de 28 de Maio de 1926, liderado pelo General Manuel Gomes da Costa, que pôs fim ao regime democrático da Primeira República. Este discurso de propaganda política é uma síntese perfeita dos principais vectores ideológicos do regime do Estado Novo que Salazar arquitectou e liderou. Na sua voz castiça, de tom monocórdico, pressente-se a sua formação de seminarista que do “púlpito”, ‘Magister dixit’, criticava o caos político-social que, a seu ver, prevaleceu no anterior regime (1910-1926).
Salazar rodeado de militares e de políticos, ao lado do Arcebispado de Braga, profere esta súmula política perante uma parada de marinheiros e do povo que cenicamente o aclama. Os eixos ideológicos do seu pensamento aparecem enunciados de forma simples: o valor de Deus e das virtudes que lhe são inerentes; o sentimento nacionalista orgulhoso dos seus heróis; o papel da Autoridade no harmonioso e hierarquizado relacionamento da sociedade civil; a importância da família tradicional e da moral incutida aos seus membros; a relevância do trabalho e do dever como contributos para uma sociedade mais desenvolvida.
Na sua perspectiva Tomista[1], a concretização destes valores ideológicos foram possíveis devido aos interesses nacionais defendidos pelo Golpe de Estado[2], acima assinalado, de que se comemorava o décimo aniversário. Assim, este facto genésico, na sua mesclada linguagem de ex-seminarista e ex-lente coimbrão, permitiu quase, como diria o Dr. Pangloss do “Cândido” de Voltaire, estabelecer na pátria portuguesa “o melhor dos mundos possíveis” que conduziu à retórica nacionalista de que o “país era um jardim à beira-mar plantado”[3].
É nesta medida que se permitiu falar da ordem e da paz social conquistadas pela pátria, não obstante as revoltas juguladas que, entretanto, se manifestaram nos anos 30.
Foi nesse sentido que pôde frisar que se vivia sob um Estado Forte, com um chefe determinado, que permitiu com leis e instituições repressivas salvaguardar o funcionamento de uma administração honesta, a recuperação da economia dos abalos da Grande Guerra (1914-1918) e do colapso capitalista universal de 24 de Outubro de 1929, a constituição de uma organização corporativa que pôs fim às infindáveis lutas sindicais e a restituição da dignidade de um império colonial que se tornou fonte de auto-estima nacional[4] através de uma organização centralista da Administração das colónias e de uma propaganda interna e externa que muito ficou a dever a Henrique da Malta Galvão.
Este discurso de Salazar é, pois, a síntese perfeita do seu discurso dos anos 30 durante a edificação jurídica, ideológica e institucional do Estado Novo e, para mais, no momento em que a conjuntura internacional ainda não colocava grandes resistências[5] às suas opções políticas internas e externas.
[1] Doutrina filosófica de São Tomás de Aquino que influenciou fortemente o pensamento de A. Oliveira Salazar, como nos ensinou o Professor João Medina ( João Medina, "Deus, pátria e família: ideologia e mentalidade do Salazarismo", in História de Portugal, dir. João Medina, vol. XII, Lisboa, Edições Ediclube, 1993, pp. 29-33).
[2] António de Oliveira Salazar denomina Revolução Nacional esse acontecimento histórico pelo simbolismo que lhe queria atribuir.
[3] “Jardim da Europa à beira-mar plantado” é um verso de um poema de Tomás Ribeiro (1831-1901), intitulado “A Portugal” publicado em 1862 no seu livro D. Jaime.
[4] Foi célebre o lema inserido em cartaz propagandístico imperial que afirmava: “Portugal não é um país pequeno”.
[5] A política do “orgulhosamente sós”, de A. Oliveira Salazar, aparecerá apenas a seguir à 2ª Guerra Mundial em função do desmoronamento das estruturas coloniais das fragilizadas potências Europeias.
O regime do Estado Novo, tal como os regimes autoritários seus contemporâneos, limitou os direitos e as liberdades individuais amesquinhando as virtualidades criativas dos fenómenos culturais. Houve, assim, um empobrecimento das actividades culturais que eram alvo da censura prévia: na imprensa, no teatro, no cinema, na rádio e na televisão. Neste contexto repressivo, o Secretariado de Propaganda Nacional/ Secretariado Nacional de Informação, inicialmente dirigido por António Ferro até 1949, procurou criar padrões culturais adaptados à ideologia Salazarista na designada “Política do Espírito”.
Como exemplo da tentativa de refrear os ímpetos de insinuações simbólicas na Literatura podemos evocar o livro do escritor Aquilino Ribeiro “Príncipes de Portugal suas grandezas e misérias”[1] publicado em 1952 e impedido pela Direcção dos Serviços de Censura de ser reeditado no ano seguinte.
Com a Revolução do 25 de Abril de 1974, que comemoramos este ano o trigésimo sexto aniversário, instaurou-se um regime de liberdade política e cultural que permitiu que as criações culturais se espraiassem pelo país. Apareceram as obras de marcada índole interventiva ( nas canções, na poesia e na “arte mural” ) que ajudaram à desestruturação das mentalidades da sociedade portuguesa. A cultura portuguesa foi, pois, bafejada por uma lufada de ar fresco que lhe permitiu renovar-se.
A revista “Nova Águia”[2], surgida em 2008, sendo inspirada na revista “A Águia” pretende recriar o vigor cultural e espiritual dos criativos agentes intelectuais do início do século XX. No “Manifesto” da “Nova Águia” evidencia-se a crise cultural em que o país vive, pretendendo-se com o concurso de várias sinergias sociais e institucionais incutir um novo vigor cultural a Portugal.
A “Nova Águia” colhe, pois, a inspiração da ínclita geração dos intelectuais portugueses do início do século XX que verteram a sua criatividade, inteligência e sensibilidade na revista “A Águia”, mas deseja responder aos prementes desafios de padronização cultural implicados pelo processo da Globalização. Deste modo, esta revista, semi-revivalista, acredita nas potencialidades do legado do património cultural português que nos define como uma identidade nacional, cujo valor é relevante para enfrentar estes imensos desafios. Daí o paradigma cultural da “Nova Águia” assentar na concepção de um universalismo lusófono, defendido por Jaime Cortesão, que permita a Portugal ajudar a edificar uma alterglobalização[3].
Assim, tal como a “Águia”, se constituiu como órgão de informação da “Renascença Portuguesa”, a “Nova Águia” é o veículo informativo/formativo de comunicação do Movimento Internacional Lusófono que pretende pela acção cívica e cultural dentro do espaço geográfico da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa consolidar um sentimento de pertença e de entreajuda entre os povos irmãos em afinidades afectivas e experiências históricas.
O tema do número cinco da revista “Nova Águia” resulta do entrelaçamento entre a comemoração do nascimento da revista “A Águia” de 1 de Dezembro de 1910, dado que esta foi um projecto que teve frutos espirituais muito importantes[4], e da ponderação dos diversos colaboradores relativamente ao diagnóstico da situação cultural portuguesa dos nossos dias. Se nos diversos textos de qualidade e rigor, que nos são apresentados, aparecem diversas perspectivas, todas nos traduzem um labor de pesquisa, de reflexão e de inspiração em torno da articulação destas duas problemáticas. Em particular, destaco, pelo vigor conceptual, os textos dos Professores Adriano Moreira, Paulo Borges e Pinharanda Gomes.
Como vos disse a cultura portuguesa no quadro da Globalização em curso está cada vez mais estereotipada e manietada pelos constrangimentos desta conjuntura internacional. Na verdade, a cultura surge como um bem crescentemente subalternizado, em detrimento de uma Civilização intelectual e eticamente responsável, pois a educação crescentemente tem sido submersa pela exacerbada valorização dos paradigmas tecnicistas tão ao gosto dos políticos tecnocráticos de serviço. A constatação desta realidade socioeducativa do nosso mundo, que vive numa sociedade da informação, desperta-nos para o paradoxo subsistente no facto de uma grande parte da população, apesar de alfabetizada, permanecer num estado de iliteracia que dificulta a intervenção cívica.
Não espanta que os tecnocratas “esfreguem as mãos” de contentamento ao manietarem as capacidades de intervenção cívica das populações com este tipo de paradigma educativo e com a crescente complexidade da teia legislativa. Edmund Burke[5], teorizador do conservadorismo no século XVIII, ficaria radiante com esta estratégia dos modernos tecnocratas que tem conduzido à prevalência das “democracias musculadas” de que os politólogos nos têm falado.
A cultura segundo a acepção dos sociólogos[6] tem uma dimensão mais lata por abranger valores, princípios, normas e costumes e, por isso, quanto mais claustrofóbica for uma cultura menos possibilidades criativas lhe são oferecidas. Reside, portanto, aqui o verdadeiro dilema das sociedades contemporâneas que se querem excessivamente competitivas e organizadas, que ao reduzirem os tempos de lazer, levam ao fechamento cultural, ao empobrecimento qualitativo da vida dos cidadãos e à pouca estimulação das capacidades criativas em benefício da domesticação tecnocrática das democracias e dos cidadãos.
Nuno Sotto Mayor Ferrão
[1] Aquilino Ribeiro, Príncipes de Portugal suas grandezas e misérias, Lisboa, Portugália Editora, 2008.
[3] Vide para uma percepção actualista o livro no prelo de Renato Epifânio, A via lusófona – um novo horizonte para Portugal, Sintra, Edições Zéfiro, 2010 é fundamental ou, para uma sistémica percepção cultural, o livro de Paulo Borges, Uma visão armilar do mundo, Lisboa, Edição Verbo, 2010.
[4] Nuno Sotto Mayor Ferrão, “Leonardo Coimbra, a revista “A Águia” e o panorama cultural contemporâneo”, in Nova Águia, nº 5, Sintra, Editora Zéfiro, 2010, pp. 34-36.
[5] António de Sousa Lara, “Edmund Burke (1729-1797), in Da História das ideias políticas à teoria das ideologias, Rio de Mouro, Editor Pedro Ferreira, 1995, pp. 192-196.
[6] Antonhy Giddens, Sociologia, Lisboa, Edição Fundação Calouste Gulbenkian, 2009, pp. 46-47.