ERNESTO MENDES FERRÃO (1934-2025), CORONEL-MÉDICO – BREVE NOTA BIOGRÁFICA
Fotografia de Ernesto (Bissau, 1968) Caricatura de Ernesto (Livro de curso, 1957)
Capa da dissertação de licenciatura, 1959 Dedicatórias do livro de curso, 1957
Fotografia do quintal da casa das Antas, fim da década de 1930* Casa agrícola, onde Ernesto nasceu (fotografia da década de 1980)
"(...) Na India fumavam-se já cigarros perfumados no século VII da Era Cristã. (...) No século XVII, dois papas, Urbano VII e Inocêncio XII interditaram o uso do tabaco nas igrejas. Richelieu tentou limitar o seu comércio. Na Rússia, em seguida a um incêndio devido à imprudência dum fumador, o grão-duque Miguel Fedérowitch proibiu o seu uso instituindo severas represálias (...) Pretendeu-se nesta dissertação dar uma visão de conjunto do problema, tratando das ações do tabaco sobre cada um dos vários aparelhos e sistemas. (...) Impõem-se, na verdade, a organização de uma campanha educativa dirigida sobretudo à juventude, dos dois sexos, no sentido de esclarecê-la quanto aos reais prejuízos que lhe podem advir do uso do tabaco.(....)".
Ernesto Mendes Ferrão, Medicina e Tabaco - Dissertação de Licenciatura apresentada à Faculdade de Medicina
da Universidade de Coimbra, Coimbra, 1959, pp. 7,8, 113 115.
Ernesto Mendes Ferrão foi um coronel-médico do Exército Português, com formação em Medicina e, posterior, especialização em Estomatologia.
Ernesto Mendes Ferrão nasceu na aldeia beirã das Antas, no concelho de Penalva do Castelo, no distrito de Viseu, a 24 de janeiro de 1934, na conjuntura histórica da formação do regime do Estado Novo. Filho de Alberto Augusto Ferrão, proprietário agrícola e lavrador, e de Felicidade Freitas de Carvalho, doméstica. Teve uma irmã mais nova, de nome Maria da Luz Mendes Ferrão. A família de mentalidade conservadora, como era bastante comum, na época, nos meios rurais, foi marcada pela visão machista do patriarca da família, Alberto Ferrão, conhecido, na região e na localidade, por Sr. Albertinho, que foi um indefetível monárquico ao tempo da 1ª República.
O filho, Ernesto, nasceu numa casa agrícola da Rua Direita desta povoação, que vivia de produções como o centeio, o milho, o vinho, a resina e a madeira, que mantinha um cavalo, um porco e alguns coelhos como animais da quinta. Nesta casa agrícola convivia com os seus avós paternos, Diogo Ferrão e Maria da Luz Saraiva Ferrão, ambos professores primários (em que o primeiro tinha uma charrete para as deslocações regionais), com quem aprendeu as primeiras letras e ganhou o gosto pelo estudo, não dispensando nunca jogar à bola como qualquer jovem mafarrico da sua idade.
A casa agrícola espraiava-se sobre os antigos terrenos da Quinta do Conde da Guarda, onde restam ainda ruínas da casa solarenga, em que Ernesto e a gaiatada da época gostava de brincar. Esta sobreposição do quintal da casa agrícola dos pais de Ernesto e de Maria da Luz, do fim do século XIX e da primeira metade do século XX, foi inferida da consulta das Memórias Paroquiais de 1758, que descrevem o local das Antas, com muito pormenor, tal como era no terceiro quartel do século XVIII.
Estudou na escola primária das Antas, num edifício típico do Estado Novo, ainda hoje existente, mas já desativado. Prosseguiu os estudos no Liceu Alves Martins, em Viseu, residindo em casa de uma familiar afastada, regressando ao lar dos pais apenas nos períodos das férias. Nessa altura, chegou a usar bigode, como era comum nos homens desta época, nos anos finais do liceu. Nesta cidade, chegou a ser líder da Juventude Estudantil Católica, o que contribuiu para a sua forte formação moral e espiritual, reforçada pela influência da sua avó Maria da Luz Saraiva Ferrão, que tinha em casa um genuflexório para facilitar ajoelhar-se nas orações regulares, uma Bíblia, católica com o Novo Testamento, editada em 1933 e que mantinha uma enorme devoção a Santo António. Aliás, este breve perfil de Ernesto é consentâneo com as palavras de José Ferrão, seu tio e padrinho, ao afirmar, no seu livro de curso em 1957, o seguinte: “(…) Regozijo de prazer e de alegria pelo brilho das tuas excelsas qualidades morais e de consciencioso estudante (…)”. Este percurso biográfico decorreu no período dos anos 40 e 50, ou seja, no contexto da segunda guerra mundial e da conjuntura da eclosão da guerra fria.
De 1952 a 1957, tirou o curso de Medicina na Universidade de Coimbra, tendo ficado alojado numa “República”. Além do estudo, Ernesto mantinha um grande interesse pela leitura de periódicos como o Diário de Coimbra, o Diário Popular, O Primeiro Janeiro e dos romances de Eça de Queirós, sedimentando uma alargada cultura geral e uma preocupação com as novidades noticiosas da região e do país. Manifestou um grande interesse pelas tradições académicas e disso é exemplo o facto de integrar a Comissão do Cortejo, como um dos responsáveis pela organização do Cortejo da Queima das Fitas.
Em 1959, apresentou a dissertação de licenciatura de Medicina, na Faculdade desta Universidade, intitulada “Medicina e Tabaco”, sendo um dos primeiros estudantes universitários portugueses a enfatizar os malefícios do tabaco na saúde das pessoas. Este trabalho recebeu um reconhecimento institucional da Organização Mundial de Saúde, da ONU, pelo papel académico que tal investigação tinha constituído para a comunidade científica nacional e internacional.
Concomitantemente, resolveu ingressar na carreira militar como médico nos quadros de oficiais do Exército português, passando pelas várias patentes de oficiais subalternos (alferes a capitão) às patentes de oficiais superiores (de major a coronel). No decurso da guerra colonial, que começou em Angola em 1961, serviu como clínico no interior das colónias de Angola e da Guiné-Bissau, deslocando-se para dar consultas de jipe militar ou em pequenas avionetas, tendo recebido, recentemente, o cartão nº 100015131 de antigo combatente do Ministério da Defesa.
Tinha como principais amigos o oficial José Sá Araújo, o Dr. Francisco Valente, o Dr. João Albuquerque, o “Ferreira” e o “Reis Lopes”, colegas estomatologistas, e o jurista e político Luís Moreno e o general Aurélio Trindade (tendo este sido um dos companheiros de confiança do general Ramalho Eanes no golpe de 25 de novembro de 1975), colegas do curso liceal.
No período da guerra colonial prestou serviço militar como oficial-médico no início dos anos 60, ainda como médico de clínica geral em Nova Lisboa, em Angola, e já nos anos de 1967 a 1969 como médico estomatologista na Guiné-Bissau, na altura em que Arnaldo Schulz era governador desta província ultramarina e o general António Spínola era comandante-chefe das forças armadas neste território, e depois em 1974, em Carmona (Angola). Nesta época, quando se deslocou a Luanda teve conhecimento da revolução de 25 de abril de 1974 e mobilizou-se de forma apressada, como a restante população portuguesa, para deixar a colónia, fazendo sair primeiro a sua mulher Maria Madalena e o seu filho, no fluxo migratório dos retornados, na famigerada “ponte aérea”.
Nesta conjuntura do fim do regime do Estado Novo, em 1968, casou-se com Maria Madalena de Sotto-Mayor Quaresma, na Sé-Catedral de Bissau e, em dezembro, do mesmo ano, o casal teve um filho, que nasceu, num momento bastante tenso da guerra colonial neste território ultramarino, no Hospital Civil desta cidade, assistido pelo médico Ciro de Andrade. Nesta altura, Ernesto exerceu as funções de Subdiretor do Hospital Militar de Bissau, com o posto de capitão-médico, a partir de 16 de dezembro de 1968.
Após a revolução do 25 de abril de 1974 viveu em Lisboa com a sua família, com a esposa e o filho. Prestou serviço profissional na Policlínica do Rato – Centro de Medicina Dentária do Rato num período curto e acumulou, durante várias décadas, o exercício clínico no Hospital Militar Principal, na freguesia da Estrela, com o trabalho nos Serviços Sociais da Caixa Geral de Depósitos, tendo sido em ambos Chefe dos Serviços de Estomatologia. No decurso dos anos 80, foi também médico escolar no Instituto dos Pupilos do Exército.
Por sugestão do general Loureiro dos Santos, quando esteve numa formação militar para a subida do posto de Tenente-Coronel para o de Coronel, foi convidado para ser professor de Estratégia Militar no Instituto de Altos Estudos Militares do Exército, tendo declinado o convite, por considerar que a sua vocação era a medicina. Tinha como um dos seus hobbies regar e cuidar das suas plantas de jardim, talvez por o seu espírito pacifista se coadunar com a tranquilidade bucólica dos jardins. Curiosamente, gostava de fazer a sesta, mesmo no horário de almoço, no posto clínico do Hospital Militar Principal.
No fim da vida, perfez 60 anos como sócio do Automóvel Clube de Portugal, o que é um facto bastante raro na sociedade portuguesa.
Aos sábados, desde a década de 1980, deslocava-se com a família nuclear, geralmente, para almoçar em Sintra ou nos seus arredores, primeiramente, em Galamares, no Restaurante Adega do Cozinheiro, onde uma vez se cruzou com a estrela do cinema francês e europeu Jean-Paul Belmondo. Depois desses fastos repastos, aproveitavam para dar um passeio pelas zonas limítrofes verdejantes ou para dar uns pontapés na bola com o seu filho e, mais tarde, passaram a frequentar o Restaurante O Apeadeiro, mesmo no centro da vila. O gosto por esta zona romântica e fresca, levou a sua família a passar algumas férias de verão na Estalagem da Quinta do Conde, no sopé da Serra de Sintra, em Colares, para irem a banhos à praia Grande.
Faleceu em casa aos 91 anos, a 25 de setembro de 2025, sendo sepultado, em campa rasa, dois dias depois no Cemitério do Santuário do Senhor Jesus no Carvalhal, no concelho do Bombarral.
Em conclusão, o coronel-médico Ernesto Mendes Ferrão legou-nos um exemplo de bondade cristã, de seriedade nas fainas quotidianas, da Ética de Hipócrates de compaixão, de uma subtil ironia queirosiana, com um sentido de humor compassivo, de uma forte e estoica disciplina militar, de uma cordialidade e de uma fraternidade pacificadoras de tensões e de crispações, tendentes a uma harmonia entre todos. Socialmente, manteve sempre, uma atitude discreta, sempre guiada pela virtude prudencial e pela bússola do bom senso.
Nuno Sotto Mayor Ferrão
_______________
Nota:
* Nesta fotografia constam, em primeiro plano, Ernesto e Maria da Luz (irmã), em criança, sentados, em segundo plano, os avós (professores primários) e, em pé, da esquerda para a direita o tio e padrinho José, ao centro a tia Lúcia e à direita o pai Alberto.
Fontes:
- Ernesto Mendes Ferrão, Medicina e Tabaco - Dissertação de Licenciatura apresentada à Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra, Coimbra, 1959.
- Livro de Quintanistas de Medicina, Coimbra, Coimbra Editora, 1957, pp. 95-96.
- Testemunho de Maria Madalena de Sotto Mayor Quaresma Mendes Ferrão, prestado ao autor a 4 de outubro de 2025.