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Crónicas do Professor Nuno Sotto Mayor Ferrão

Crónicas que tratam temas da cultura, da literatura, da política, da sociedade portuguesa e das realidades actuais do mundo em que vivemos. Em outros textos mais curtos farei considerações sobre temas de grande actualidade.

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A CONSCIÊNCIA MORAL E O CULTO DAS VIRTUDES – DA “GAUDIUM ET SPES” À “FRATELLI TUTTI” (1965-2020)

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A consciência moral, defendida pela Igreja Católica, implica o ajuizamento pessoal na vida quotidiana da prática do bem e do impedimento do mal. Para se evitar juízos erróneos é importante a educação cristã para o bem, a assimilação das mensagens evangélicas e dos ensinamentos da Igreja Católica, vulgarmente conhecida por catequese. Também auxiliam bastante a formação da consciência moral: a oração, o exame interno de consciência, a confiança na intercessão do Espírito Santo, o conselho de pessoas sábias e um coração compadecido com o sofrimento dos outros seres humanos e animais.

 

No documento pastoral Gaudium et Spes[1] do Concílio Vaticano II, de 7 de dezembro de 1965, valoriza-se uma consciência cristológica, que deve ser amadurecida para que o Homem possa moldar a sua vida e os seus comportamentos por essas “leis interiores” e não por “leis exteriores”[2]. A Igreja Católica deixou, desde os finais dos anos 60, de ser diretiva e passou a conceder autonomia ao Homem para descobrir o mundo e se descobrir como pessoa, no respeito pelos valores cristãos do Evangelho.

 

De facto, esta nova teologia moral, ajustada ao cidadão urbano, singrou na reunião conciliar, em função da rutura que os padres conseguiram operar na Igreja Católica, perante as grandes transformações do mundo contemporâneo – aggiornamento. Assim, o magistério da Igreja deixou de depender do padrão autoritário e passou a sustentar o magistério da persuasão, deixando espaço para o homem se descobrir como pessoa, no respeito pelos valores cristãos do Evangelho.

 

Uma investigadora portuguesa salienta-nos este aspeto: “(...) O número quarenta e seis da ‘Gaudiumet Spes’ afirma que a solução dos problemas morais deve ser procurado à luz do Evangelho e da experiência humana.(...) A moral do Vaticano II é a do homem sacramentalmente transformado em Cristo e inserido na Igreja. Isto leva a que se dê um espaço e um papel ativo a todos, à sua responsabilidade e à reciprocidade das consciências (...) Esta perspetiva é reforçada na ‘Gaudium et Spes’; é o Espírito Santo quem permite realizar a leitura da realidade, de modo a ser capaz de fazer emergir os sinais da presença de Deus na história, para se chegar a soluções plenamente humanas. (...)”[3].  

 

Aliás, Aristóteles, no século IV a. C., definiu um caminho ético para a vida dos seus concidadãos na sua obra Ética a Nicómaco[4]. Considerou o filósofo que a felicidade só podia ser alcançada através de uma vida virtuosa e não através da fruição dos prazeres, das riquezas e das honras. A prática da virtude seria atingida através do exercício continuado da prudência dos indivíduos. 

 

Para o Homem contemporâneo enfrentar a crise de valores necessita ancorar-se nas virtudes clássicas, quer tealogais, quer cardeais. Nas virtudes tealogais, destacam-se a Fé nos processos transcendentes de diálogo com Deus; a Esperança num futuro melhor terreno e celeste e a Caridade na propensão para a ajuda aos seres humanos mais próximos.

 

As virtudes cardeais como a prudência, a justiça, a fortaleza e a temperança são essenciais aos comportamentos cívicos. A prudência manifesta-se na razão para entender a forma cautelosa de atingir o bem; a fortaleza para se permanecer firme nas dificuldades, naquilo que hoje é conhecido por resiliência (particularmente importante nesta fase de enfrentamento da pandemia de COVID-19) e persistência; a justiça como vontade de dar aos outros homens o que lhes é devido; a temperança que modera os prazeres e os instintos para garantir a expressão da vontade moral.

 

Com efeito, só o cultivo das virtudes tealogais e cardeais permitirá ao Homem enfrentar a crise de valores marcada pelo relativismo, pelo individualismo, pelo egoísmo, pelo hedonismo, pelo materialismo, pelo secularismo, pelo indiferentismo, pela violência gratuita que se afiguram como vícios perniciosos da contemporaneidade, dado que estão, desde o século XIX, a corroer a coesão das sociedades ocidentais. Apenas pela prática destas virtudes tealogais e cardeais será possível vencer esses vícios ominosos, bem como pela abertura ao outro e ao seu bem mediante o amor fraterno, de que o Papa Francisco nos procura interpelar, através da sua última Carta Encíclica “Fratelli Tutti”[5].

 

Oiçamos as palavras avisadas do Papa Francisco nesta Encíclica: “(...) é buscar aquilo que vale mais, o melhor para os outros: o seu amadurecimento, o seu crescimento numa vida saudável, o cultivo dos valores e não só o bem-estar material. No latim, há um termo semelhante: bene-volentia, isto é, a atitude de querer o bem do outro. É um forte desejo do bem, uma inclinação para tudo o que seja bom e exímio, que impele a encher a vida dos outros com coisas belas, sublimes, edificantes. (…) volto a destacar que «vivemos já muito tempo na degradação moral, baldando-nos à ética, à bondade, à fé, à honestidade; chegou o momento de reconhecer que esta alegre superficialidade de pouco nos serviu. Uma tal destruição de todo o fundamento da vida social acaba por colocar-nos uns contra os outros na defesa dos próprios interesses».[86] Voltemos a promover o bem, para nós mesmos e para toda a humanidade, e assim caminharemos juntos para um crescimento genuíno e integral. Cada sociedade precisa de garantir a transmissão dos valores (...)[6]

 

Estas orientações morais são extremamente importantes, para enfrentarmos os desafios deste mundo sem bússola ética[7], retomando o título de um artigo de Adriano Moreira. Na verdade, o mundo tem vivido um abismo ético, entre 1965 e 2020. Entre 1965 e 1991, manifestou-se uma fase da guerra ideológica conhecida por guerra fria, entre o bloco capitalista e o comunista, num enfrentamento que via o adversário como a figuração do mal.

 

A globalização capitalista, vitoriosa no fim do século XX, conduziu à separação entre a economia e as finanças, potenciando a corrupção com o mercado de capitais a recorrerem frequentemente aos paraísos fiscais, fugindo à tributação legal dos Estados, fazendo aumentar as desigualdades sociais entre países e no seio destes. O terrorismo global espraiou-se pela Civilização Ocidental, desde o atentado de 11 de setembro de 2001. Nos tempos mais recentes emergiu a malévola guerra comercial EUA-China, que o presidente Donald Trump acicatou.

 

A segunda década do século XXI tem sido caraterizada pela decadência das democracias ocidentais motivada pelos partidos populistas, como o Vox em Espanha ou o Chega em Portugal, e pelas fake news de que os EUA têm sido muito férteis nos últimos tempos. Estes movimentos contra os sistemas vigentes estão a crescer, devido à grande iletracia política e cívica dos cidadãos. Por outro lado, esta conjuntura sem norte ético está marcada pela emergência de novos nacionalismos, com as políticas proteccionistas de Donald Trump e de Boris Jonhson e pelas pretensões independentistas da Catalunha e da Escócia.

 

O desrespeito humano, mediante um processo de desenvolvimento não sustentável das sociedades urbanas e industrializadas, pela natureza-mãe tem originado um crescimento veloz das alterações climáticas e potenciado os fenómenos extremos de secas, de intempéries, de furacões, que assolam a nossa casa comum, planeta único em que vivemos. Concomitantemente, por falta de uma consciência moral generalizada tem-se verificado uma persistência na violação dos Direitos Humanos, em várias partes do mundo. Perante estas inúmeras dificuldades éticas do nosso mundo, importava reforçar o papel interventivo da Organização das Nações Unidas, mas infelizmente os egoísmos nacionalistas estão a barrar os esforços dos últimos Secretários-Gerais desta organização supranacional.

 

Em suma, em 2020, o mundo confrontou-se com uma grave pandemia – designada COVID-19 -, em que não se conhecem ainda as verdadeiras razões do seu início e a autêntica responsabilidade humana, mas a destruição de muitos ecossistemas e a extinção de muitas espécies animais e vegetais constituem um mau prenúncio para as próximas décadas, caso não se arrepie caminho para evitar a catastrófe global sem retorno. Daí a necessidade de educar para comportamentos cívicos, mediante a formação de consciências morais, que acautelem a prática de uma cidadania das virtudes para o bem-estar de todos, a harmonia geral, a paz social e para a derrota dos populismos, dos negacionismos e dos egoísmos atrozes.

__________________________

[1]http://www.vatican.va/archive/hist_councils/ii_vatican_council/documents/vat-ii_const_19651207_gaudium-et-spes_po.html

[2] Maria das Dores de Brito Rodrigues, “A teologia moral no Concílio Vaticano II”, in Justa Autonomia – A modernidade da Constituição pastoral 'Gaudium et Spes”, Dissertação para a obtenção do grau de Mestre, Lisboa, Faculdade de Teologia da Universidade Católica, 2003, pp. 104-112.

[3] Ibidem, pp.106-108.

[4]Aristóteles, Ética a Nicómaco, Lisboa, Quetzal Editores, 2004, 283 p.

[5]http://www.vatican.va/content/francesco/pt/encyclicals/documents/papa-francesco_20201003_enciclica-fratelli-tutti.html

[6]Ibidem, pontos 112 e 113.

[7] Adriano Moreira,”Sem bússola”, Nova Águia, nº26, 2º semestre de 2020, pp. 93-94.

Nuno Sotto Mayor Ferrão

SANTO ANTÓNIO (1191-1231) DE LISBOA OU DE PÁDUA ?

 

A questão com que iniciámos esta crónica é irrelevante, embora paire em boa parte da mentalidade dos portugueses e dos italianos, pois foi um pregador de uma amplitude universalista, como se constata da argumentação que vos apresentamos.

 

É, com efeito, o santo português, de nascimento, com maior relevo, que pertenceu à ordem franciscana, embora tenha estudado em Lisboa e em Coimbra, sendo a sua festa comemorada no período do solistício de verão a 13 de junho em Portugal com festas populares que a cidade de Lisboa celebra com grande júbilo. Nascido em Lisboa em 1191 com o nome de Fernando Martins de Bulhão, só recebe o nome de António quando ingressa na ordem religiosa franciscana.

                                                        

Convém recordar, por isso, que viveu em pleno contexto da reconquista cristã de Portugal. Deste modo, o ambiente de crescimento económico e urbano, que se fazia sentir na Europa, a par das grandes desigualdades sócio-políticas e da atmosfera marcial das Cruzadas fê-lo, certamente, aproximar-se dos ideais de humildade, de pobreza e de evangelização da ordem mendicante franciscana. 

 

A forte formação intelectual, iniciada com os cónegos regrantes de Santo Agostinho, permitiu-lhe profundos conhecimentos de teologia, que o veio a transformar no ano de 1946 em Doutor da Igreja.

 

Assim, a sua Santidade foi-lhe publicamente reconhecida, pois soube compaginar um imenso prestígio popular com base nos seus milagres com uma aprofundada base teológica. Em Roma existe a Igreja de Santo António dos Portugueses, de estilo Barroco (como se observa na terceira fotografia), com dependência eclesiástica do cardeal-patriarca de Lisboa, D. Manuel Clemente.

 

Deixou-se inspirar pelos santos mártires de Marrocos e ingressa na ordem franciscana, motivado pelos seus exemplos, numa viagem a este território é apanhado por uma doença súbita que o conduz de novo à Europa, em particular à Itália, tendo-se posteriormente tornado um grande pregador e teólogo.

 

Nesta altura, fazendo um grande périplo de pregação pela Itália e França torna-se um evangelizador de espírito universalista que transcende as fronteiras nacionais. Conta-se que, em Rimini, impedido, de momentaneamente, de pregar se virou para os peixes e é, este episódio, que é recriado pelo Padre António Vieira. Durante a vida teve oportunidade, pelo prestígio alcançado, de publicar os seus sermões, no fim da década de 20 do século XIII, e de continuar a pregar na Europa do Sul contra os hereges, ao mesmo tempo em que ensinava nas escolas conventuais franciscanas de algumas cidades.

 

Dos seus sermões irradia um pensamento eclético, compaginando as bases clássicas gregas com as cristãs com um recurso formal às alegorias que enfatizam os valores éticos da observação da Natureza.  

 

Em 1232, um ano após a sua morte, pelo número de milagres que lhe foram reconhecidos, foi logo canonizado. A cidade de Pádua, onde falece, organiza-lhe imediatamente um solene funeral, erguendo-lhe rapidamente uma basílica para onde vão as suas relíquias.

 

Verificamos que, não obstante, o seu nascimento e crescimento intelectual em Portugal, acaba por falecer em Pádua onde é homenageado, mas a sua ação espiritual-religiosa transcende as fronteiras destas pátrias e a questão com que iniciámos este texto não tem pois qualquer sentido.

 

Nuno Sotto Mayor Ferrão

 

 

PAPA PAULO VI (1963-1978) - O SEU PAPEL DE MODERADOR INTERNACIONAL E NA RENOVAÇÃO DA IGREJA CATÓLICA

 

 

 

PAPA PAULO VI NO SANTUÁRIO DE NOSSA SENHORA DE FÁTIMA (1967)

« ORAÇÃO A CRISTO »

“Ó Cristo, nosso único medianeiro.

Tu és necessário: para entrarmos em comunhão com Deus Pai; para nos tornarmos conTigo, que és Filho único e Senhor nosso, seus filhos adoptivos; para sermos regenerados no Espírito Santo.

Tu és necessário, ó único verdadeiro mestre das verdades ocultas e indispensáveis da vida, para conhecermos o nosso ser e o nosso destino, o caminho para o conseguirmos.

Tu és necessário, ó Redentor nosso, para descobrirmos a nossa miséria e para a curarmos; para termos o conceito do bem e do mal e a esperança da santidade; para deplorarmos os nossos pecados e para obtermos o seu perdão.

Tu és necessário, ó irmão primogénito do género humano, para encontrarmos as razões verdadeiras da fraternidade entre os homens, os fundamentos da justiça, os tesouros da caridade, o sumo bem da paz.

Tu és necessário, ó grande paciente das nossas dores, para conhecermos o sentido do sofrimento e para lhe darmos um valor de expiação e de redenção.

Tu és necessário, ó vencedor da morte, para nos libertarmos do desespero e da negação e para termos certezas que nunca desiludem.

Tu és necessário, ó Cristo, ó Senhor, ó Deus connosco, para aprendermos o amor verdadeiro e para caminharmos na alegria e na força da tua caridade, ao longo do caminho da nossa vida fatigosa, até ao encontro definitivo conTigo amado, esperado, bendito nos séculos.”

                                                                                                                                                                    Papa Paulo VI, Oração a Cristo

 

O Papa Paulo VI (1897-1978) foi um sacerdote italiano que subiu ao topo da hierarquia da Igreja Católica a 21 de junho de 1963, sucedendo ao Papa João XXIII na missão de concluir os trabalhos do Concílio Vaticano II.

 

Foi um membro ativo da administração do Estado do Vaticano e, apenas, foi chamado para uma missão pastoral em 1954 quando foi nomedado Arcebispo da Arquidiocese de Milão. A escolha do nome de Paulo para o seu pontificado é indicativa da sua vontade de levar a mensagem de Cristo para fora da esfera das regiões fortemente cristianizadas.

 

Afirmou-se como devoto mariano e a esse título visitou o Santuário de Nossa Senhora de Fátima a 13 de maio de 1967, no cinquentenário das Aparições. Nos anos do seu pontificado, o mundo assistiu ao fim do processo descolonizador e ao início das perversas teias do neocolonialismo, o que o fez criticar a atitude das potências industrializadoras face à indigência dos países pobres, ditos, na altura, países do Terceiro Mundo.

 

O seu magistério passou por duas importantes encíclicas (Humanae Vitae e Popularum Progressio) em que defendeu os malefícios da regulação da natalidade por métodos artificiais e a necessidade da política, no contexto da guerra fria, procurar ser equidistante das doutrinas socialista e capitalista que estavam a minar o mundo com o rastilho de ódios, tensões e conflitos internos e externos.

 

Tornou-se sacerdote em 1920 e prosseguiu os seus estudos eclesiásticos em Universidades romanas. Após uma talentosa carreira administrativa no Estado do Vaticano foi chamado pelo Papa Pio XII para o cargo de Arcebispo de Milão e, em 1958, foi elevado à dignidade de cardeal.

 

Em função da morte do Papa João XXIII foi eleito Papa em junho de 1963, tendo sido pioneiro nas viagens aéreas pontíficias ao compreender a importância da unidade espiritual da Humanidade para a paz mundial, pelo que ficou conhecido como o “Papa peregrino”, tal como, mais tarde, o Papa João Paulo II. Daí que, a 4 de outubro de 1965, se tenha dirigido à Assembleia Geral das Nações Unidas por, na sequência das conclusões conciliares do Vaticano II, ter percebido a relevância das questões internacionais para a reevangelização do mundo.

 

Nos vigésimo aniversário da ONU dirigiu-se a esta instituição internacional congratulando-se com os esforços envidados para garantir a paz no mundo e tentar travar as ameaças frequentes de guerra. Foi, também, um implementador do princípio do ecumenismo ao encontrar-se com dirigentes da Igreja Anglicana e das Igrejas Ortodoxas orientais.

 

O Papa Paulo VI liderou a Igreja Católica num mundo em mudança de paradigma dos valores sociais e presidiu à revisão da liturgia Católica procedente do Concílio Vaticano II. O reconhecimento do mérito do seu pontificado está na sua beatificação que se iniciou em 1993 e terminou em outubro de 2014 com o Papa Francisco.

 

Na Encíclica Popularum Progressio escrita em 1967 por Paulo VI em plena expansão do capitalismo, no contexto da guerra fria, critica o liberalismo por ser insuficiente nas relações internacionais de comércio, sendo gerador de gritantes injustiças sociais a que Ciências Sociais deram o nome de “neocolonialismo”.

 

Para Paulo VI a liberdade económica, que começava a ser erguida como panaceia para o desenvolvimento dos povos, na sua acepção da Doutrina Social da Igreja, era claramente insuficiente para o desenvolvimento integral da pessoa humana e dos povos[i].

 

Com grande acutilância de entendimento do que veio a ser a conjuntura das relações internacionais na transição do milénio, considerava que o comércio internacional devia ser regulado pela Ética. Na verdade, percebeu, avant la lettre, alguns dos malefícios decorrentes de um mundo a caminho da consumada globalização quando reconheceu que muitos dos jovens que saíam para o estrangeiro, dos seus países menos desenvolvidos, perdiam os valores espirituais das suas pátrias.

 

Deste pertinente ponto de vista, o diálogo de Civilizações não podia cingir-se às trocas comerciais e tecnológicas, porque se pretende um desenvolvimento integral do ser humano, integrador das esferas espirituais e morais e não unicamente económicas.  

 

Nuno Sotto Mayor Ferrão

 

[i] “Populorum Progressio – Carta Encíclica de Sua Santidade o Papa Paulo VI”, in Desenvolvimento e Solidariedade – Popularum Progressio, vinte anos depois, Lisboa, Rei dos Livros Editores, 1987, pp. 83-105.

 

 

 

BIBLIOGRAFIA DE NUNO SOTTO MAYOR FERRÃO (ATUALIZAÇÃO) E CITAÇÕES BIBLIOGRÁFICAS DO AUTOR

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Bibliografia de Nuno Sotto Mayor Ferrão:

 

*Nuno Sotto Mayor Ferrão, “A I Guerra Mundial na imprensa portuguesa e na revista A Águia”, in Nova Águia, nº 14, 2º semestre de 2014, pp. 231-238.

 

*Idem, “A atualidade internacional da Doutrina Social da Igreja no contexto da globalização”, in Brotéria, vol. 178, nº 7/8 – julho/agosto de 2014, pp 33-44.

 

*Idem, “Balanço diacrónico (1974-2014) da Revolução de 25 de Abril”, in Nova Águia, nº 13, 1º semestre de 2014, pp. 57-63.

 

*Idem, “Nos 80 anos do historiador José Mattoso: a sua viva lição de sabedoria”, in Nova Águia, nº 12, 2º semestre de 2013, Sintra, Zéfiro Editora, 2013, pp. 162-163.

 

*Idem, “António José Saraiva como cidadão e historiador: nos 20 anos da sua morte”, in Nova Águia, nº 12, 2º semestre de 2013, Sintra, Zéfiro Editora, 2013, pp. 153-159.

 

*Idem, “A poesia portuguesa: o mar e a lusofonia”, in Nova Águia, nº 11, 1º semestre de 2013, Sintra, Zéfiro Editora, 2013, pp. 23-24.

 

*Idem, “As linhas de força do pensamento historiográfico de Jaime Cortesão”, in Nova Águia, nº 11, 1º semestre de 2013, Sintra, Zéfiro Editora, 2013, pp. 130-135.

 

*Idem, “A Renascença Portuguesa e o percurso político e historiográfico de Jaime Cortesão”, in Nova Águia, nº 9, 1º semestre de 2012, Sintra, Zéfiro Editora, 2012, pp. 138-144.

 

*Idem, “Relativismo Ético na História Contemporânea (1914-2010)”, in Brotéria, nº1, volume 174, Janeiro de 2012, pp. 47-51.

 

*Idem, “A dinâmica histórica do conceito de Lusofonia (1653-2011)” in Nova Águia - Revista de Cultura para o Século XXI, nº 8, 2º semestre de 2011Sintra, Zéfiro Editora, 2011, pp. 204-208.

 

*Idem, "Fernando Pessoa: o sentimento lusófono na sua obra", in Nova Águia - Revista de Cultura para o Século XXI, nº7, 1º semestre de 2011, Sintra, Zéfiro Editora, 2011, pp. 34-38.

 

*Idem, "Alexandre Herculano, aspectos da vida e obra e sua ascendência ideológica sobre o Republicanismo", in Sintra, Zéfiro Editora, Nova Águia - Revista de Cultura para o Século XXI , nº 6 - 2º semestre de 2010, pp. 130-135.

 

*Idem, "Leonardo Coimbra, a revista 'A Águia' e o panorama cultural contemporâneo", in Nova Águia - Revista de Cultura para o Século XXI, nº 5 - 1º semestre de 2010, Sintra, Editora Zéfiro, pp. 34-36.

 

*Idem, Aspectos da vida e obra do Almirante Sarmento Rodrigues (1899-1979)", Mirandela, Edição Câmara Municipal de Freixo de Espada-à-Cinta, 1999, 293 p.

 

*Idem, O pensamento colonial de Sarmento Rodrigues enquanto Ministro do Ultramar (1950-1955), Dissertação de Mestrado em História Contemporânea, Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 1997, 233 p.

 

Citações bibliográficas do autor

 

» Clio: revista do Centro de História da Universidade de Lisboa, “Resumo das Teses de Mestrado em Letras (História)”, Lisboa, 1996, p. 168.

 

» Joaquim Veríssimo Serrão, “Do berço humilde em Freixo à imortalidade da História”, Almirante Sarmento Rodrigues, 1899-1979: testemunhos e inéditos no centenário do seu nascimento, Academia de Marinha e Câmara Municipal de Freixo de Espada à Cinta, Lisboa, 1999, p. 163.

 

» Cadernos de Estudos Africanos – Memórias Coloniais, Lisboa, Centro de Estudos Africanos do Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa, 2006, p. 150.

 

» Cultura - Revista de História e Teoria das Ideias, vol. 25, 2008, Lisboa, Centro de História da Cultura da Universidade Nova de Lisboa, pp. 33 e 44. 

 

» António E. Duarte Silva, “Sarmento Rodrigues, a Guiné e o lusotropicalismo”, in Cultura: Revista de História e da Teoria das Ideias Lisboa, Centro de História da Cultura da Universidade Nova de Lisboa, vol. 25, 2008, p. 44. (António E. Duarte Silva, « Sarmento Rodrigues, a Guiné e o luso-tropicalismo », Cultura [Online], Vol. 25 | 2008, consultado a 29 julho 2014. URL :http://cultura.revues.org/586.

 

» Ana Reis e João Garrinhas, “2 anos sob tutela autárquica”, in Profforma (Revista do Centro de Formação de Professores do Nordeste Alentejano), nº 2, março de 2011, pp. 1-7.

 

Nuno Sotto Mayor Ferrão

O PADRE ANTÓNIO VIEIRA UM PRECURSOR DO ESPÍRITO LUSÓFONO NO SÉCULO XVII

O Padre António Vieira (1608-1697) foi, talvez, o mais remoto fundador do espírito lusófono[1]. Nos seus Sermões, do Maranhão, condenou a escravização dos índios do Brasil, desde 1653, o que contribuiu para potenciar o intercâmbio cultural e social lusófono. Esta denúncia pública, que teve eco nas suas obras publicadas, das discriminações sociais abriu caminho na mentalidade portuguesa para a paulatina aceitação do fenómeno da miscigenação.

 

Convém reter alguns dados biográficos que nos ajudam a compreender o seu espírito lusófono. Nascendo em Lisboa no seio de uma família humilde, teve entre os seus antecedentes uma avó materna mulata e cedo se dirigiu ao Brasil com os seus pais. Na região da Baía formou-se no Colégio dos Jesuítas, sendo ordenado sacerdote em 1635 e passando a exercer o cargo de professor de teologia desde 1638.

 

O momento decisivo da sua vida foi, contudo, a integração na Comitiva oficial que recebeu D. João IV, em 1641, no Brasil. Desde cedo se tornou valido do rei, tendo sido nomeado pregador e confessor régio, ministro sem pasta e diplomata, o que lhe permitiu alcançar a partir desses anos a fama.

 

Quando sucede a mudança de reinado de D. João IV para o seu filho, Afonso VI, após o período de regência de D. Luísa de Gusmão, a sua situação altera-se profundamente. Desta forma, a partir desta altura torna-se perseguido pelo Tribunal do Santo Ofício por proteger os cristãos-novos e os índios das atitudes desprezivas dos católicos e dos colonos[2].

 

Em vida alcança as luzes da ribalta ao publicar os seus Sermões em Portugal e em Roma, tornando-se um expoente da prosa barroca ao estimular a autoestima nacional, bastante rarefeita com o domínio filipino, mediante a energia e o misticismo profético da sua verve galvanizadora. Deste modo, procurou, também, nos seus textos levantar a moral nacional, precisamente no momento em que a incerteza da salvaguarda da independência nacional ainda se mantinha.

 

O Padre António Vieira valendo-se da sua acuidade crítica, além de denunciar os maus tratos que os colonos davam aos índios, soube também fazer eco junto das autoridades das ameaças externas, a que o Brasil esteve sujeito no seu tempo, designadamente do expansionismo holandês que neste século foi capaz de estender as malhas tentaculares do seu império colonial à América do Sul. 

 

Neste contexto de ameaças externas, a que esteve especialmente atento com a sua sensibilidade diplomática, Vieira fundou um pensamento utópico colonial, sendo nesta medida um precursor da utopia lusófona.

 

De facto, pretendeu defender uma vivência colonial que se estribasse na dignidade da pessoa humana, decorrente da sua percepção de uma antropologia cristã, que deveria respeitar os direitos dos índios. De modo que esta percepção evidencia um sentido de alteridade social, que aponta para a faceta universalista do português.

 

Este autor concebe um V Império que será deixado pelos portugueses à Humanidade num futuro moldado pelos parâmetros da cultura portuguesa, pela capacidade lusa de assumir um desígnio universalista e pelo anseio cristão de um mundo onde seja possível compaginar a felicidade pessoal e a harmonia social.

 

Na verdade, esta espiritualidade de Vieira aberta a um universalismo da relação com o outro ser humano de diversos padrões culturais antecipa o sentimento lusófono que se consubstancia nos nossos dias. 

 

Contudo, após o falecimento do rei D. João IV, o Tribunal do Santo Ofício condenou-o ao silêncio devido à aparente heresia das suas visões proféticas carregadas de um sebastianismo, de um futuro V Império e de uma ética refundadora das relações laborais entre colonos e ameríndios brasileiros.

 

Com efeito, o Padre António Vieira transmitiu nos seus textos, como político e pregador, aos seus contemporâneos a vivência brasileira numa refinada prosa de sabor barroco, nomeadamente censurando, como ardente missionário, a forma cruel como os índios eram tratados pelos colonos. Assim, chama a atenção para dois milhões de índios que estavam em péssimas condições laborais, tendo difundido os seus textos impressos em Portugal, que mais tarde chegarão também ao Brasil.

 

[1] Miguel Real retrata a figura do Padre António Vieira num romance fascinante (Miguel Real, O sal da terra, Matosinhos, QuidNovi, 2008, 331 p.).

[2] António Dias Miguel, “Padre António Vieira”, Dicionário Enciclopédico da História de Portugal, Lisboa, Edições Alfa, 1990, p. 329.

 

Nuno Sotto Mayor Ferrão

 

 

 

 

 

A REVISTA BROTÉRIA (1902-2013) COMO ESPAÇO HUMANÍSTICO E CIENTÍFICO E A PREMENTE BUSCA DE PILARES DE ESPIRITUALIDADE NA CONTEMPORANEIDADE

  

A revista Brotéria foi fundada em 1902, no Colégio de S. Fiel, para abordar temas de Ciências Naturais por três jesuítas Joaquim Silva Tavares, Carlos Zimmerman e Cândido Mendes. Pouco depois, em 1907, subdivide-se em três séries (Botânica, Zoologia e Divulgação Científica). O nome da revista está ligado ao pendor inicial dado às Ciências Físicas, pois pretendeu-se homenagear o naturalista português Félix de Avelar Brotero.  

 

Com a expulsão dos jesuítas, na 1ª República, a revista esteve suspensa em Portugal nos primeiros anos deste regime, mas reaparece no Brasil e, depois, em Portugal com o nome de revista Luzo-Brasileira. Depois do fervor anticlerical, a revista Brotéria reaparece, ainda durante a 1ª República, com o seu nome original e a série de vulgarização científica transforma-se em revista de cultura geral em 1932, já no regime da Ditadura Militar, e as outras duas séries dedicadas à Natureza fundem-se na série designada Ciências Naturais.

 

De 1932 a 2002 mantiveram-se as duas séries da Brotéria – de Ciências Naturais e de Cultura Contemporânea – com prestigiados nomes entre os seus diretores, tais como  Silva Tavares, Afonso Luisier, Luís Archer, Serafim Leite, Domingos Maurício, António Leite, Manuel Antunes, entre muitos outros colaboradores.

 

Manuel Antunes, um professor jesuíta de feição humanista, anunciou em 1958 a necessidade da Igreja Católica contribuir para a unificação espiritual da Humanidade, dado os visíveis divisionismos materiais em que se encontrava[1]. Foi assim, uma voz percursora do espírito do Concílio Vaticano II, pois pouco depois o Papa João XXIII virá apresentá-lo. Considerou neste artigo da Brotéria que a Igreja Católica devia ser um meio social de equilíbrio perante a exagerada exteriorização das sociedades contemporâneas que tinham levado os seres humanos a perder o contacto com o Ser, em virtude da preponderância dada ao Ter.

 

Segundo Manuel Antunes, a modernidade desviou o Homem do pulsar humano deixando-o solitário no meio das grandes metrópoles cosmopolitas. Assim, o afastamento das sociedades europeias do Cristianismo tem decorrido do materialismo reinante. Do seu ponto de vista, só a intervenção da Igreja Católica poderia constituir-se como meio de equilíbrio face à exteriorização exagerada do ser humano e remeteu-nos para a necessidade de insuflar uma alma nova no mundo Contemporâneo.

 

Na realidade, a Igreja Católica, na sua percepção interventiva, que se vai plasmar no espírito conciliar, poucos anos depois, tem de contribuir com a sua arte teológica para cingir corpo e alma, que os platónicos e os pragmáticos quiseram cindir de maneira radical. Enfatiza-nos Manuel Antunes, neste artigo visionário, que a importância do laicado reside no seu papel de renovação do mundo, em declínio ético, devido à perda de valores perenes.


Com efeito, o seu entendimento sensível mostra que a salvação do mundo pelo humanismo cristão permitirá superar os impasses da crise de valores que se vinham avolumando desde o início do século XX.

 

A série de divulgação científica da revista Brotéria ainda hoje subsiste com o subtítulo “Cristianismo e Cultura”, mas virada, sobretudo, para temas humanos de atualidade, de educação, de literatura, de ética, de teologia, de história, de direito, de filosofia, de política, em suma, de uma cultura aprofundada numa dimensão cristã.


A Brotéria é orientada por um grupo de que fazem parte personalidades como o Padre António Vaz Pinto, seu atual diretor, António Júlio Trigueiros, Carlos Borrego, Daniel Serrão, Francisco Sarsfield Cabral, Manuel Braga da Cruz e muitos outros elementos da sua equipa diretiva, além de uma multiplicidade de colaboradores-investigadores. Atualmente, a Biblioteca da Revista reúne um rico espólio bibliográfico e de publicações periódicas que abarcam temas sobretudo de Teologia, de Filosofia, de Literatura e de História.



[1] Manuel Antunes, “A Igreja e o mundo de hoje”, in Brotéria – Revista Contemporânea de Cultura, Lisboa, abril de 1958. 

 

Nuno Sotto Mayor Ferrão

 

O HISTORIADOR JOSÉ MATTOSO (2013 – ANO DO SEU OCTOGÉSIMO ANIVERSÁRIO) E A SUA VIVA LIÇÃO DE SABEDORIA

 

 

José Mattoso, cultor das Humanidades, filho do professor liceal, de História, António Gonçalves Mattoso, de quem terá, certamente, recebido a sua vocação de estudioso. Assim, licenciou-se em História na Bélgica, mas cedo ingressou na vida religiosa como monge Beneditino. Só alguns anos mais tarde, em 1966 com 33 anos, se doutorou em História Medieval pela Universidade Católica de Lovaina.

 

Em 1970 ingressou na carreira universitária, tendo-se tornado investigador do Instituto de Alta Cultura e assistente da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Mais tarde, transferiu-se para a inaugurada Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, tornando-se professor catedrático. Recebeu, nos anos 80 e 90, pelos seus relevantes trabalhos, de investigação histórica, os Prémios Alfredo Pimenta, em 1985, e Pessoa, em 1987 e o título honorífico de Grande Oficial da Ordem Militar de Santiago da Espada, em 1992, atribuído pelo Presidente da República Mário Soares.

 

Após a independência de Timor-Leste, em 2002, José Mattoso viveu uns tempos neste novo país, colaborando na organização dos Arquivos Históricos, Nacional e da Resistência, com base na sua rica experiência de investigador e de Diretor do Arquivo Nacional Torre do Tombo de 1996 a 1998. Por conseguinte, teve um importante papel na preservação da Cultura Lusófona, nesta sua actuação, bem como na qualidade de Diretor da obra coletiva Património de origem portuguesa no mundo (2010).

 

Como medievalista, internacionalmente reconhecido, escreveu obras-primas da Historiografia Portuguesa como A nobreza medieval portuguesa (1982), Identificação de um País (1985), Fragmentos de uma composição medieval (1987), que estiveram na origem dos galardões nacionais que a sociedade portuguesa lhe atribuiu pelos seus meritórios trabalhos intelectuais. Um pouco depois, com o seu prestígio consolidado na pátria, dirigiu importantes obras coletivas, de 1993 a 2010, que se destacaram por serem divulgadoras da História de Portugal junto da opinião pública.

 

Em 1999 escreveu um importante opúsculo de carácter cívico intitulado A Função Social da História no Mundo de Hoje[1], chamando a atenção para a importância da História para a compreensão do mundo em que vivemos.


No entanto, considerou que esta área de saber é, também, fundamental para a plena compreensão da relatividade dos fenómenos culturais face à pretensa uniformização do mundo Globalizado através da descoberta dos fundamentos da consciência das identidades coletivas e, concomitantemente, impele os seus estudiosos a relacionarem múltiplos conhecimentos de diversas Ciências Sociais e Humanas para o cabal entendimento das diferentes dinâmicas e fatores que moldaram as sociedades do passado.

 

José Mattoso, em 2012, publicou uma colectânea de excelentes ensaios sob o expressivo título Levantar o Céu – Os labirintos da Sabedoria[2] em que patenteou o valor da natural articulação entre a Razão e a Fé para nos fazer compreender que a ausência de Espiritualidade nas Sociedades Ocidentais tem aprofundado a crise de valores Éticos que se manifestou, de forma dramática, ao longo do século XX.


Esta negação de uma Espiritualidade, de base Ética, tem feito germinar o caos social, no início do século XXI, pelos pressupostos materialistas da Globalização desregulada. Por outras palavras, o evidente desinteresse pelo desenvolvimento do Homem integral, constituído por Corpo e Espírito, tem permitido o florescimento de critérios pragmáticos que, na atualidade, se revelam claramente insuficientes.

 

Escutemos, pois, nos nossos corações, as palavras sábias de José Mattoso, que nos interpelam a uma mudança de paradigma civilizacional (universal):

 

“(...) parece urgente travar não só a injustiça social, que é revoltante, mas também as transformações globais que ameaçam a sobrevivência da Humanidade. (…) Dominamos a matéria, manipulamos as leis físicas, acumulamos o poder e o dinheiro, aperfeiçoamos a racionalidade, e, todavia, o caminho que escolhemos parece conduzir diretamente ao caos. Sem as realidades espirituais não há nenhuma hierarquia de valores a preservar. (…) Não será preciso, então, preservar as realidades espirituais para nelas encontrar a inspiração necessária ao exercício prático, efetivo, da solidariedade e da responsabilidade? (…) Assim, o gesto de «levantar o Céu» é, desde logo, um passo em ordem à mutação que pretende desencadear. (…) Quer dizer, não se baseia na ciência e na lógica, mas na sabedoria. (…) Enquanto houver alguém sobre a terra que procure levantar o céu, quer dizer, implantar um pouco de bondade e de beleza sobre a Terra, restabelecer equilíbrios, perdoar ofensas (…) não é insensato manter a esperança. (…)”[3].  

 

Em conclusão, é uma viva lição de sabedoria, um autêntico testemunho espiritual, que se recolhe da leitura deste incontornável livro do cidadão e historiador José Mattoso.

 

Nuno Sotto Mayor Ferrão

 



[1] José Mattoso, A Função Social da História no Mundo de Hoje, Lisboa, Associação de Professores de História, 1999.

[2] Idem, Levantar o Céu – Os labirintos da Sabedoria, Maia, Círculo de Leitores e Temas e Debates, 2012.

[3] Ibidem, pp. 10-14. 

 

 

PAPA JOÃO XXIII (1881-1963) – UM REFORMISTA SOCIAL DA IGREJA CATÓLICA

 

 

Ângelo Giuseppe Roncali, nascido em Itália no fim do século XIX, foi como Papa um grande reformista da Igreja Católica, não obstante o seu curto pontificado (1958-1963). Alguns traços biográficos ajudam-nos a compreender melhor o alcance dos seus gestos e das suas ações pontifícias. É muito significativa a sua mundividência espiritual, franciscana, que o levou a adotar como lema papal “Obediência e Paz”.

 

Nasceu no meio de uma família rural pobre, mas muito crente nos dogmas católicos, tendo este aspeto sido bem retratado no filme de Ermanno Olmi intitulado “E venne un uomo” (1965), que recentemente foi exibido na cinemateca de Lisboa. A sua experiência como capelão militar do Exército italiano na 1ª Guerra Mundial, a par das suas preocupações pacifistas na conjuntura da 2ª Guerra Mundial, terá feito entender-lhe a importância da Paz como caminho para a felicidade da Humanidade, ao ponto da sua última e crucial encíclica se intitular “Paz na Terra”.

 

A sua intrínseca bonomia fê-lo, depois de se doutorar em Teologia, seguir a carreira diplomática ao serviço do Estado do Vaticano (Santa Sé) como visitador apostólico na Bulgária em 1925-1935, delegado apostólico à Grécia e à Turquia em 1935-1944 e núncio apostólico em França de 1944 a 1953. Foi extraordinariamente importante a sua aprendizagem das questões sociais como secretário, particular, do Bispo de Bérgamo, D. Giacomo Radini-Tedeschi, nos seus primeiros anos de sacerdócio de 1905 a 1914.

 

Os seus dons ou qualidades excecionais (a bondade, a capacidade de diálogo e de conciliação) foram elementos que moldaram o seu espírito que o induziu, para espanto e inquietação de muitos católicos tradicionalistas, à convocação do Concílio do Vaticano II (1962-1965). Assim, a 25 de janeiro de 1959 anunciou na basílica de São Paulo (Roma) o seu propósito de convocar um Concílio com o intuito de modernizar a Igreja Católica e de a abrir ao mundo dos fiéis e a todos os cidadãos de boa vontade. Ficou internacionalmente conhecido como o “Papa da Bondade” que juntava um sorriso inexcedível, segundo alguns autores, com uma capacidade de diálogo muito invulgar.

 

Este espírito de uma denodada Ética Cristã que presidiu à sua ação pontifícia levou o Papa João Paulo II, no dia 3 de setembro de 2000, no culminar do século XX, a declará-lo Beato. Deve reter-se para um retrato completo da sua mentalidade que em plena 2ª Guerra Mundial, no exercício das suas funções diplomáticas, procurou salvar muitos judeus da monstruosa carnificina Nazi. Foi designado cardeal-patriarca de Veneza em 1953 e aclamado Papa a 28 de outubro de 1958. O seu estudo de São Carlos Borromeu, publicado em 1957, permitiu-lhe compreender com uma interpretação generosa o Concílio de Trento (1545-1563) ao enfatizar o espírito reformista da própria Igreja Católica na Era de Quinhentos que, a seu ver, foi preponderante.

 

Nuno Sotto Mayor Ferrão

 

O ESPÍRITO DO NATAL, SEU SIGNIFICADO NO PASSADO E NO PRESENTE, NA CONJUNTURA DE CRISE DA CIVILIZAÇÃO EUROPEIA

El Greco, Natividade

 

“(…) Tudo isto aconteceu para se cumprir o que o Senhor tinha dito pelo profeta: «Eis que a Virgem conceberá e dará à luz um filho; e hão de chamá-lo Emanuel, que quer dizer Deus connosco. Despertando do sono, José fez como lhe ordenou o anjo do Senhor, e recebeu sua esposa. E, sem que antes a tivessem conhecido, ela deu à luz um filho, ao qual ele pôs o nome de Jesus. (…)” Evangelho segundo São Mateus, 1, 22-25, in Bíblia Sagrada, Lisboa, Difusora Bíblica, 2002, p. 1566.

 

O Natal é a celebração do nascimento de Jesus Cristo, que se assume como um acontecimento religioso que expresso nas escrituras Sagradas do Novo Testamento tem influenciado a Ética e a Arte da Civilização Ocidental nos últimos séculos. No entanto, não nos podemos esquecer que a religião Cristã surgiu e desenvolveu-se no seio de um império materialista que estava a entrar em decadência - o império romano. Hoje, como ontem, e digo-o como eco-socialista-cristão, face à cultura materialista e tecnocrática dominante que desencadeou tendências individualistas e egoístas parece-me que a existência de místicas e de utopias é cada vez mais fundamental para que todos possamos ser concidadãos num mundo mais justo e mais humano. Esta foi a razão objetiva da conversão de São Paulo no primeiro século da nossa Era e do imperador Constantino no início do século IV.

 

Obviamente, para os cidadãos laicos, das sociedades europeias, Jesus Cristo pode não passar de um revolucionário que subverteu no longo prazo as estruturas religiosas e mentais do Império Romano. Contudo, para as pessoas de fé Jesus Cristo é visto como o filho de Deus que desceu à terra para pregar ideais Éticos que, defendidos e praticados, afastavam, paulatinamente, o Homem do Mal (do pecado) e garantiam a multidimensionalidade do Homem (corpo e espírito) nas sociedades onde vivessem cristãos. Acontece que, hoje em dia, com o capitalismo financeiro instalado no centro da Globalização, os cidadãos e os políticos tendem a olvidar os valores Éticos, porque as tendências para o hedonismo e o individualismo fazem desprezar os sentimentos da bondade, da solidariedade e da compaixão.

 

A Europa tem-se esquecido progressivamente da sua matriz cultural cristã, como se notou quando afastou do projeto de um Tratado Constitucional Europeu uma referência clara do Cristianismo como um dos pilares da Civilização Europeia, que se encontra, como todos sabemos, em decadência. A Doutrina Social da Igreja é respeitadora dos Direitos Humanos e Sociais dos indivíduos e, por isso, é profundamente lamentável que as correntes políticas moderadas e humanistas da democracia-cristã, da social-democracia e do socialismo cristão democrático estejam a perder terreno para a “teologia de mercado”, designada por neoliberalismo. O Natal surgiu como data comemorada no século IV d.C., após a conversão do Imperador Constantino, num ato de fé individual. Todavia, o Natal tornou-se no Império Romano, neste século, uma data celebrativa para converter os pagãos. Desde essa época, até hoje, o Cristianismo foi-se espraiando e moldando às diferentes conjunturas históricas pelos sete cantos da Europa e do mundo.

 

Em conclusão, o significado do Natal é aquele que já apresentámos, mas tornou-se, também, a festa das famílias cristãs que se reúnem para se recolherem no aconchego dos seus lares afetivos e para celebrarem a vinda de Deus feito Homem que desceu dos céus para nos dar a Boa Nova de uma vida que se deve nortear por uma conduta impoluta de Amor aos outros e por uma mensagem de Esperança em relação ao futuro.

 

Nuno Sotto Mayor Ferrão 

 

   

PÁSCOA – BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE A MENSAGEM DO PAPA BENTO XVI PARA A QUARESMA DE 2010

O Homem sempre viveu desde tempos “ponderados” (Civilização Helénica) a noção da sua própria dualidade existencial (corpo versus espírito). No entanto, houve épocas mais recentes da História humana que quiserem olvidar a consciência metafísica ao ponto de surgir o Existencialismo, no século XX durante o rescaldo da Segunda Guerra Mundial, como corrente filosófica contrária ao Essencialismo Ontológico.

 

O Papa, neste seu texto, situa-nos as raízes das injustiças humanas no coração perverso de muitos homens permeados do niilismo ético, herdeiro de F. Nietzsche, carente dos sãos influxos da transcendência. Daí, a prevalência nas sociedades, contemporâneas e pós-modernas, de fenómenos emergentes como o egoísmo e o individualismo como forças anti-éticas e pouco construtivas de conjuntos populacionais mais justos.

 

Radica nesta evidência de mal-estar colectivo o apelo que os cristãos sentem de se tornarem participantes de iniciativas em prol de um mundo melhor. É nesta dialéctica, da bondade, que nos introduz Karl Popper ao desconstruir a benignidade dos sistemas ideológicos fechados. Com efeito, a justiça cristã exige o nosso despojamento hiperbolizado do sentimento individual feito, tantas vezes, de afirmações agressivas. Assim, o cristão é convocado a praticar o Bem e a lutar por sociedades mais justas! O patamar da justiça divina que deve estar entranhado na boa conduta do cristão faz-nos seus agentes ao vivenciarmos o amor, a generosidade, os dons e a esperança que Deus nos concedeu como virtudes teologais. Em suma, como dizia o apóstolo São Paulo: “já não sou eu que vivo, é Cristo que vive em mim”.

 

Antes que se gerem equívocos, Sua Santidade recorda-nos a existência de duas justiças, a divina e a humana. A conciliação destas duas dimensões pode-se fazer pela justiça trina (justiça cristã = justiça divina x justiça humana). A justiça divina assume-se, assim, como o coeficiente acrescido à justiça social, que tem mobilizado muitas forças políticas dos nossos dias. Em síntese, a justiça cristã advém da infinita misericórdia e das graças que Deus nos concede.

 

Neste contexto da ética cristã, a vivência plena da Quaresma implica a manifestação, cabal, dos sentimentos cristãos mais nobres (da caridade, da fé, da bondade, da compaixão, da generosidade, etc.) para praticarmos uma justiça ancorada num Cristianismo autêntico.

 

Nuno Sotto Mayor Ferrão

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