Crónicas que tratam temas da cultura, da literatura, da política, da sociedade portuguesa e das realidades actuais do mundo em que vivemos. Em outros textos mais curtos farei considerações sobre temas de grande actualidade.
Crónicas que tratam temas da cultura, da literatura, da política, da sociedade portuguesa e das realidades actuais do mundo em que vivemos. Em outros textos mais curtos farei considerações sobre temas de grande actualidade.
A China afirma-se, em 2020, como uma superpotência mundial. Na última década do século XX, houve um equívoco na pretensa vitória dos EUA na guerra fria, pois os EUA venceram esta tensão internacional, mas sem perceberem que não tinham vencido o paradigma comunista.
Em 15 de abril de 1989, aconteceu, em território chinês, o simbólico protesto na Praça Tiananmen, em que os protestos estudantis foram violentamente reprimidos. Este acontecimento traduz a repressão dos Direitos Humanos, que se verifica na China até aos dias de hoje, o que aliás preocupa intensamente a comunidade internacional e os organismos dos defensores dos Direitos Humanos.
O comunismo chinês emerge, no século XXI, com uma vitalidade aparentemente incompreensível, pois este país conseguiu inventar aquilo a que Nuno Severiano Teixeira denomina de neocomunismo[1], dado que este país realizou uma síntese eclética entre o sistema comunista e a economia de mercado com a implantação de um Capitalismo de Estado, num regime de partido único comunista, conjugado com uma Ditadura Digital.
Este novo ciclo político, desta superpotência, iniciou-se com a subida ao poder de Xi Jinping em 2013. Este líder chinês investiu na estratégia internacional de afirmação geopolítica do país, com uma orientação de fundo, que passou pelo reforço do autoritarismo interno e a aposta numa nova projeção internacional do país.
Para alcançar o pleno controlo da população, a China ergueu um sistema de crédito social[2], tal como nos diz Raquel Vaz-Pinto, e uma ditadura digital no sentido de implantar um sistema de gestão social autoritária.
Na verdade, a China adquiriu o estatuto de superpotência política e económica, entrando num clima de tensão com os EUA, a nível internacional, o que poderá configurar, sem dúvida, uma segunda guerra fria.
Tudo começou com a guerra comercial e tecnológica entre estas duas superpotências, que se apresentam ao mundo com dois modelos políticos antagónicos, isto é, um com o singular “sistema comunista de mercado” e o outro com “o liberal capitalista”. Estas duas superpotências disputam a liderança mundial em termos económicos e tecnológicos, mudando o caráter desta nova guerra fria (2013-2020).
Às contestações populares que se verificaram em Hong Kong, em 2019, a China respondeu, recentemente, com a Lei de Segurança e com prepotentes violências sobre os habitantes da região desta antiga colónia inglesa. Nesta estratégia internacionalista, da China, conta-se, também, a afirmação comercial da “Rota da Seda” e a tentativa hegemónica da HUAWEI na revolução digital 5G do mundo, que está a preocupar os norte-americanos e os europeus.
Em suma, perante esta “nova guerra fria”, abre-se novamente o problema ético da necessidade imperiosa de regulação do Capitalismo Global, no espírito das Nações Unidas.
_________________________
[1] Nuno Severiano Teixeira, “A segunda guerra fria”, Público, 29 de julho de 2020. p. 9.
[2] Raquel Vaz-Pinto, “A China e o sistema de Crédito Social”, Brotéria, nº 190 – 5/6, maio-junho 2020. pp. 535-541.
*Nuno Sotto Mayor Ferrão”, “O cosmopolitismo modernista e lusófono na Revista Orpheu – Evocação no seu centenário”, in Brotéria, vol. 181, julho de 2015, pp. 41-50
*Idem, “O cosmopolitismo modernista e lusófono na revista Orpheu”, in Nova Águia, nº 15, 1º semestre de 2015, pp. 18-24.
*Idem, “A I Guerra Mundial na imprensa portuguesa – no centenário da Grande Guerra”, in Brotéria, vol. 180, nº 1 – janeiro de 2015, pp 33-44.
*Idem, “A I Guerra Mundial na imprensa portuguesa e na revista A Águia”, in Nova Águia, nº 14, 2º semestre de 2014, pp. 231-238.
*Idem, “A atualidade internacional da Doutrina Social da Igreja no contexto da globalização”, in Brotéria, vol. 178, nº 7/8 – julho/agosto de 2014, pp 33-44.
*Idem, “Balanço diacrónico (1974-2014) da Revolução de 25 de Abril”, in Nova Águia, nº 13, 1º semestre de 2014, pp. 57-63.
*Idem, “Nos 80 anos do historiador José Mattoso: a sua viva lição de sabedoria”, in Nova Águia, nº 12, 2º semestre de 2013, Sintra, Zéfiro Editora, 2013, pp. 162-163.
*Idem, “António José Saraiva como cidadão e historiador: nos 20 anos da sua morte”, in Nova Águia, nº 12, 2º semestre de 2013, Sintra, Zéfiro Editora, 2013, pp. 153-159.
*Idem, “A poesia portuguesa: o mar e a lusofonia”, in Nova Águia, nº 11, 1º semestre de 2013, Sintra, Zéfiro Editora, 2013, pp. 23-24.
*Idem, “As linhas de força do pensamento historiográfico de Jaime Cortesão”, in Nova Águia, nº 11, 1º semestre de 2013, Sintra, Zéfiro Editora, 2013, pp. 130-135.
*Idem, “A Renascença Portuguesa e o percurso político e historiográfico de Jaime Cortesão”, in Nova Águia, nº 9, 1º semestre de 2012, Sintra, Zéfiro Editora, 2012, pp. 138-144.
*Idem, “Relativismo Ético na História Contemporânea (1914-2010)”, in Brotéria, nº1, volume 174, Janeiro de 2012, pp. 47-51.
*Idem, “A dinâmica histórica do conceito de Lusofonia (1653-2011)” in Nova Águia - Revista de Cultura para o Século XXI, nº 8, 2º semestre de 2011Sintra, Zéfiro Editora, 2011, pp. 204-208.
*Idem, "Fernando Pessoa: o sentimento lusófono na sua obra", in Nova Águia - Revista de Cultura para o Século XXI, nº7, 1º semestre de 2011, Sintra, Zéfiro Editora, 2011, pp. 34-38.
*Idem, "Alexandre Herculano, aspectos da vida e obra e sua ascendência ideológica sobre o Republicanismo", in Sintra, Zéfiro Editora, Nova Águia - Revista de Cultura para o Século XXI , nº 6 - 2º semestre de 2010, pp. 130-135.
*Idem, "Leonardo Coimbra, a revista 'A Águia' e o panorama cultural contemporâneo", in Nova Águia - Revista de Cultura para o Século XXI, nº 5 - 1º semestre de 2010, Sintra, Editora Zéfiro, pp. 34-36.
*Idem, Aspectos da vida e obra do Almirante Sarmento Rodrigues (1899-1979)", Mirandela, Edição Câmara Municipal de Freixo de Espada-à-Cinta, 1999, 293 p.
*Idem, O pensamento colonial de Sarmento Rodrigues enquanto Ministro do Ultramar (1950-1955), Dissertação de Mestrado em História Contemporânea, Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 1997, 233 p.
Citações bibliográficas do autor:
» Clio: revista do Centro de História da Universidade de Lisboa, “Resumo das Teses de Mestrado em Letras (História)”, Lisboa, 1996, p. 168.
» Joaquim Veríssimo Serrão, “Do berço humilde em Freixo à imortalidade da História”, Almirante Sarmento Rodrigues, 1899-1979: testemunhos e inéditos no centenário do seu nascimento, Academia de Marinha e Câmara Municipal de Freixo de Espada à Cinta, Lisboa, 1999, p. 163.
» Cadernos de Estudos Africanos – Memórias Coloniais, Lisboa, Centro de Estudos Africanos do Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa, 2006, p. 150.
» Cultura - Revista de História e Teoria das Ideias, vol. 25, 2008, Lisboa, Centro de História da Cultura da Universidade Nova de Lisboa, pp. 33 e 44.
» António E. Duarte Silva, “Sarmento Rodrigues, a Guiné e o lusotropicalismo”, in Cultura: Revista de História e da Teoria das Ideias Lisboa, Centro de História da Cultura da Universidade Nova de Lisboa, vol. 25, 2008, p. 44. (António E. Duarte Silva, « Sarmento Rodrigues, a Guiné e o luso-tropicalismo », Cultura [Online], Vol. 25 | 2008, consultado a 29 julho 2014. URL :http://cultura.revues.org/586.
» Ana Reis e João Garrinhas, “2 anos sob tutela autárquica”, in Profforma (Revista do Centro de Formação de Professores do Nordeste Alentejano), nº 2, março de 2011, pp. 1-7.
» Victor Andrade de Melo, “O esporte na política colonial portuguesa: as iniciativas de Sarmento Rodrigues na Guiné (1945-1949)”, in Revista Brasileira de História, vol.34, no.68, São Paulo, July/Dec. 2014, pp. 179,180 e 189.
Sófocles viveu no século V a. C., entre 496 e 406, tendo sido um dos grandes poetas trágicos da Grécia Antiga, mas desempenhou também importantes papéis na sociedade ateniense como sacerdote, administrador público e militar. Assim, elevou-se ao estrelato como dramaturgo, contemporâneo de grandes figuras da História Universal como o filósofo Sócrates, o escultor Fídias ou o político Péricles.
Nascido de uma família aristocrática, na povoação de Colono, em que seu pai se destacava como um rico mercador, recebeu uma cuidada educação que lhe permitiu desenvolver dotes culturais e cívicos. Desde cedo, começou a manifestar os seus inegáveis talentos e, aos dezasseis anos, foi escolhido para reger um canto triunfal, de natureza religiosa, para comemorar uma vitória marítima dos gregos sobre os persas.
No seu tempo teve enorme popularidade, devido à bondade patenteada e ao grande respeito que todos lhe nutriam. De facto, contribuiu para o seu prestígio a circunstância de ter recebido mais de duas dezenas de primeiros prémios em concursos dramáticos realizados em festividades religiosas em honra de deuses, designadamente de Dionísio, suplantando os seus rivais – Ésquilo e Eurípides.
Foi, assim, um autor prolixo pois produziu cerca de 100 peças de teatro trágico, embora apenas tenham sobrevivido integralmente, até à atualidade, sete peças: Ajax; Antígona; As Traquinianas; Édipo Rei; Electra; Filocteto e Édipo em Colono.
Além de dramaturgo teve uma intervenção cívica de enorme relevo, tendo sido ordenado sacerdote do deus da medicina (Asclépio), administrador num cargo da pólis ateniense como membro da Junta de Generais, tesoureiro da Confederação de Delos, estratego e general numa campanha militar contra a ilha de Samos. Para este cargo, contam os seus contemporâneos, terá sido eleito depois de produzir a peça Antígona cerca do ano 441 a. C..
Morreu com a provecta idade de noventa anos, tendo deixado um rico legado cultural que influenciou o mundo helénico e a civilização ocidental.
Na verdade, este autor tratou, nas suas peças trágicas, os protagonistas com idealismo moral, embora lhes tenha feito acarretar sofrimentos. Deste modo, apesar das adversidades, os protagonistas manifestavam-se pejados de nobreza nas suas atitudes, pelo que continuam a constituir exemplos vivos e edificantes para a Humanidade.
O seu grande legado dramatúrgico foi fruto do contributo inestimável ao enriquecer a estrutura da tragédia grega, servindo-se de cenários e aliando a religião tradicional a uma moral de responsabilidade individual.
Em suma, as suas peças tornaram-se obras-primas, que perduram até à atualidade em edições literárias e em representações teatrais, dado que concederam um papel de relevo aos diálogos, fazendo sobressair na dimensão trágica dos atos representados uma linguagem lírica eivada de imagens paradigmáticas. Deste modo, conseguiu exaltar, na sua obra dramatúrgica, a beleza do modelo cívico-político ateniense, pois retratou em algumas peças situações dilemáticas passadas em outras cidades-estado.
Sófocles, Antígona, 10ª edição, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, pp. 62-63.
As tragédias na Grécia Clássica, no século V a. C., tinham um elevado sentido moral, pois exerciam um extraordinário impacto de pedagogia emocional nos espectadores no seio dos anfiteatros. Assistir a uma peça de teatro contribuía para exercitar a consciência e a reflexão cívica dos cidadãos gregos e, em particular, da pólis ateniense, para que pudessem exercer as suas funções públicas com denodado conhecimento das questões públicas da pólis.
Das desgraças que perpassam nesta peça, de Sófocles, nos seus principais protagonistas - Antígona e Creonte -, se colhem inúmeras máximas morais, que se inculcam na mente dos leitores e dos espectadores, tais são as situações dilemáticas que fazem apelo à meditação.
Desta amplitude de máximas morais sobressaem algumas, designadamente as seguintes: “Não nasci para odiar, mas sim para amar”; “Para ser feliz, bom senso é mais que tudo” ou “Com os deuses não seja ímpio ninguém”. Esta peça foi escrita, no auge do século de ouro da Grécia Antiga, por volta do ano de 442 ou 441 a. C..
Convém lembrar que a origem do teatro helénico está ligada às festas em honra do deus Dionísio, de forma que as tragédias constituem manifestações cívico-religiosas em que emerge o sentido moral que denuncia que o Homem se deve sujeitar aos deuses e aos seus desígnios.
Nesta peça dramática, em conformidade com a leitura hegeliana, Creonte é o legalista e Antígona é a idealista, isto é, subjaz a esta bela obra literária um conflito dicotómico entre a lei positiva e o ideal.
No meu humilde ponto de vista, numa leitura atualista, o verdadeiro protagonista da peça é Creonte, o tirano, que encarna uma postura maléfica sob a qual recaem todas as desgraças.
Na boca de Antígona e de Hémon, o soberano Creonte aparece como um autêntico tirano. As seguintes passagens, desta peça teatral, são bem inequívocas disto: “(...) Todos os que aqui estão diriam também como aprovam este acto, se o medo não lhes travasse a língua. Mas é que a realeza, entre muitos privilégios, goza o de fazer e dizer o que lhe apraz. (...) Não há Estado algum que seja pertença de um só homem.(...)”[i].
Vivendo Sófocles na pólis ateniense, afigura-se-nos que evidencia um agudo espírito crítico sobre o regime tebano. Na verdade, não está Sófocles, no seu enredo argumentativo, implicitamente a elogiar o regime democrático, da cidade-estado de Atenas, ao desgraçar o poderoso tirano Creonte? Creio firmemente que sim, porquanto emerge do enredo encenado uma moralidade sofocliana.
De facto, no seu pensamento não há regime político superior ao democrático e, também, entende que a pólis deve saber conciliar com harmonia o respeito pela lei e o zelo pelos cultos divinos. Nas palavras de Hémon denuncia-se este equilíbrio desejável: “(...) Não tens respeito por ele [poder soberano], quando calcas as honras devidas aos deuses. (...)”[ii].
Em suma, o drama essencial desta tragédia decorre de Creonte ter colocado os seus deveres de governante acima dos seus deveres familiares, de natureza religiosa, perante um morto[iii]. Emerge, pois, do pensamento sofocliano a necessidade de encontrar um equilíbrio entre a lei positiva e o ideal. Antígona, por seu turno, tropeça no mero espírito idealista que a faz tombar na desgraça[iv].
[i] Sófocles, Antígona, 10ª edição, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, pp. 69 e 83.
[iii] Manuel de Oliveira Pulquério, Problemas da actuação do coro na Antígona de Sófocles, Coimbra, Instituto de Estudos Clássicos, 1962. Pode elucidar-se esta interpretação da seguinte citação: “(...) Só na aparência, entretanto, porque Creonte quebra os laços de sangue que o unem a Polinices, pondo acima dos seus deveres familiares, com carácter religioso, as suas obrigações de governante. (...)”.
[iv] Werner Jaeger, Paidéia – A formação do Homem Grego, São Paulo, Martins Fonte Editora, 1995. Deduzem-se estas atitudes insensatas de Antígona no seguinte trecho: “(...) Para cumprir a lei não escrita e obedecer ao mais simples dever fraterno, afronta com plena consciência o decreto tirânico do rei que, baseado na força do Estado, proíbe-lhe, sob pena de morte, que dê sepultura ao seu irmão Polinices, morto em combate contra a própria pátria. (...)”.
“(…) A crise financeira que atravessamos faz-nos esquecer que, na sua origem, há uma crise antropológica profunda: a negação da primazia do ser humano. (…) A crise mundial (…) e sobretudo a grave carência de uma orientação antropológica que reduz o ser humano apenas a uma necessidade das suas necessidades: o consumo. (…) Exorto-vos a uma solidariedade desinteressada e a um regresso da economia e das finanças a uma ética propícia ao ser humano. (…) Em muitos países, a globalização comportou uma acelerada deterioração das raízes culturais com a invasão das tendências pertencentes a outras culturas, economicamente desenvolvidas mas eticamente debilitadas. (…)”
Papa Francisco, A Alegria do Evangelho – Exortação Apostólica ‘Evangelii Gaudium’, Prior Velho, Paulinas Editores, 2013, pp. 44,45, 46, 48 e 49
Na História da Igreja Católica, durante o século XIX, a Doutrina Social da Igreja criticou os excessos do Socialismo e do Liberalismo. Com efeito, o movimento social cristão surgiu, ainda na primeira metade do século XIX, como uma resposta caritativa a um liberalismo socialmente pouco responsável para com os trabalhadores das indústrias. Nesta época, diferentes pensadores criticaram a ordem liberal como socialmente injusta, tendo-se destacado figuras como Hughes Lamennais e Charles de Coux como mentores de um liberalismo católico e, em particular, a sociedade francesa que, desperta para esta problemática, viu aparecer, na década de 1870, o sindicalismo cristão.
Em consequência da ação caritativa do movimento social cristão europeu, irá nascer a meditação que dará azo à germinação da Doutrina Social da Igreja. Assim, na década de 1880, o pensamento social cristão foi ganhando bases com a constituição de diversos grupos de estudo da problemática operária: Friburgo, Roma, Francoforte e Paris. No ano de 1848, em que Karl Marx e Friedrich Engels escreveram o Manifesto do Partido Comunista, o bispo de Mogúncia, Von Ketteler, pronunciou sermões de exaltação da necessidade de encontrar condições de trabalho mais dignas para os operários, tendo-se tornado inspiradores da Doutrina Social da Igreja.
Assim, no contexto da edificação da sociedade industrial, o Papa Leão XIII, na sua encíclica Rerum Novarum, em 1891, criticou os excessos das propostas de Karl Marx e as insuficiências das estruturas do capitalismo industrial, na resolução de candentes problemas operários. Deste modo, esta encíclica constituiu um marco fundamental da Doutrina Social da Igreja mas não o seu início. Neste documento papal, sustentou-se a necessidade do Estado proteger os operários, a necessidade de uma retribuição salarial digna para os operários e a importância da criação de associações mistas de operários e patrões que dialogassem no sentido de se evitar a luta de classes propalada por Karl Marx[1].
No desenrolar de várias décadas do século XX, alguns Papas como Pio XI, no contexto da crise do Capitalismo dos anos 30, verberaram nos excessos do Liberalismo económico o empolamento do papel do individualismo e das leis absolutas do mercado livre, que conduziram o mundo ao abismo laboral da crise capitalista e aos nefandos totalitarismos e, mais tarde, Paulo VI, na conjuntura do antagonismo ideológico da guerra fria, criticou também a ganância como um entrave à paz internacional. Nesta dialética histórica, a Doutrina Social da Igreja tem procurado encontrar um ponto de equilíbrio para que as coletividades possam crescer num senso ético rumo ao bem comum.
Na época contemporânea, a Igreja Católica tem edificado um forte legado teórico de Doutrina Social da Igreja com a intervenção atenta dos Papas, desde 1891 à atualidade, face às angustiantes situações sociais criadas pelas sociedades industriais e pós-industriais.
Em 1967, o Papa Paulo VI, na encíclica Popularum Progressio,criticou, em pleno contexto da guerra fria e da afirmação exultante do bloco capitalista liderado pelos EUA, a obsessão com o liberalismo económico como um entrave iniludível ao desenvolvimento integral do Homem e à paz internacional. Salienta-nos, nesta crítica ao sistema do capitalismo liberal, que a preocupação com o máximo lucro faz olvidar a necessidade de servir o Homem.
Paulo VI acrescenta também, com grande atualidade, que o trabalho excessivamente organizado, por razões de mera eficiência, pode levar à nociva escravização do Homem. Deste modo, nesta encíclica ressalta que uma sociedade liberal não gera necessários equilíbrios sociais, dado que os mecanismos da iniciativa individual e da concorrência se revelam insuficientes e tornam-se necessários poderes públicos fortes, para a plena concretização do bem comum. Assim, Paulo VI, com forte sentido premonitório, alertava para o facto da predominância da tecnocracia e da economia nas sociedades do século XX terem de estar ao serviço do Homem. Nesta crítica salienta-nos, sabiamente, Paulo VI este teor:
“(…) Infelizmente, sobre estas novas condições da sociedade, construiu-se um sistema que considerava o lucro como motor essencial do progresso económico, a concorrência como lei suprema da economia, a propriedade privada dos meios de produção como direito absoluto, sem limite e sem obrigações sociais correspondentes. Este liberalismo sem freio conduzia à ditadura denunciada com razão por Pio IX, como geradora do ‘imperialismo internacional do dinheiro’. Nunca será demasiado reprovar tais abusos, lembrando mais uma vez, solenemente, que a economia está ao serviço do homem. (…) Só a iniciativa individual e o simples jogo da concorrência não bastam para assegurar o êxito do desenvolvimento. Não é lícito aumentar a riqueza dos ricos e o poder dos fortes, confirmando a miséria dos pobres e tornando maior a escravidão dos oprimidos. (…) Economia e técnica não têm sentido, senão em função do homem, ao qual devem servir.(…)”[2]
Em 1979, João Paulo II, no primeiro ano do seu pontificado, criticou, na senda do espírito do Concílio Vaticano II, o progresso tecnológico desenfreado das sociedades contemporâneas que desumanizaram as vivências humanas. Salienta-nos que a evolução técnica e industrial do mundo contemporâneo tem conduzido o Homem a destruir a Natureza e não a preservá-la, como Deus nos ensinou.
Nesta lúcida meditação, filosófica e teológica, João Paulo II diz-nos que o desenvolvimento técnico da contemporaneidade não tem sido acompanhado por um correspondente desenvolvimento moral e ético do Homem e que, por essa razão, a vida surge desumanizada nas atitudes que assume. Deduz-se do seu pensamento que, a este nível, no sentido de se alcançar um desenvolvimento integral equilibrado, a Doutrina Social da Igreja pode ser uma resposta sensata a esta angústia existencial do Homem contemporâneo[3].
Francisco Sarsfield Cabral, no número de março de 2014 da Brotéria[4], sintetiza os custos sociais do atual progresso tecnológico, da informática e da robótica, receando, com base em estudos credenciados, a perda generalizada de muitos trabalhos e o aumento das desigualdades salariais em muitos países do mundo. Assim, a dinâmica entre o capital e o trabalho está a ser ganha, claramente, nos mercados financeiros globalizados por aquele fator económico. Enquanto as classes médias estagnaram, nas últimas décadas, até mesmo nos EUA os seus níveis de prosperidade, os gestores e os líderes sociais com grandes qualificações técnicas têm visto os seus rendimentos aumentarem vertiginosamente.
Com efeito, o drama desta recente tendência social reside no facto de se prever uma redução drástica de trabalhos das classes médias à custa dos progressos informáticos e da robótica, o que exige uma séria ponderação.
[1] D. Manuel Clemente, A Igreja no Tempo – História Breve da Igreja Católica, Lisboa, Grifo Editores, 2010, pp. 109-114.
[2] “Populorum Progressio – Carta Encíclica de Sua Santidade o Papa Paulo VI”, in Desenvolvimento e Solidariedade – Populorum Progressio, vinte anos depois, Lisboa, Rei dos Livros, 1987, pp. 72, 76 e 77.
[3] Papa João Paulo II, Carta encíclica Redemptor hominis (4 de março de 1979).
[4] Francisco Sarsfield Cabral, “Os custos do progresso tecnológico”, in Brotéria, vol. 178, março de 2014, pp. 257-262.
Nuno Sotto Mayor Ferrão (artigo com continuação - I Parte)
A Ética é um ramo da Filosofia que existe desde a Antiguidade Clássica, designadamente desde Aristóteles, que se ocupa dos deveres do Homem, de um código moral de conduta que tem andado arredado nas eras pragmáticas da História, nomeadamente no fim do império romano e nesta era da Globalização financeira.
Talvez, a secundarização da filosofia e do campo das humanidades esteja entre uma das principais explicações para a degenerescência Ética em que a Humanidade tem caído nos últimos tempos da História da Humanidade.
A crise de valores da Globalização é um ponto de chegada da dinâmica histórica contemporânea, como já o sustentei, e não um ponto de partida, por isso esta questão assume-se como um preocupante desafio aos Homens de boa vontade, independentemente dos credos que perfilham. Hoje em dia, os valores das nossas sociedades são descartáveis e as linhas de fronteira entre o Bem e o Mal estão em constante mutação, ao contrário dos valores tradicionais das sociedades Oitocentistas que se caraterizaram pela perenidade.
O “Capitalismo de casino”, como é bem caraterizado pela imprensa e pela bibliografia internacional, e a degradação institucional das democracias do ocidente têm contribuído, também, para a contínua crise de valores que se faz sentir desde o início do século XX.
Esta situação de anomia Ética torna premente a necessidade de revalorizar a Filosofia e a Ética como parte da solução para um combate, sem tréguas, à selva capitalista em que vivemos, pois pese embora a imensa tristeza dos filósofos do pragmatismo neoliberal não há outra maneira de sair deste impasse.
A problemática, de fundo, que reina, na atualidade, é o valor do ter versus o valor do ser, sendo que o materialismo tem ocupado um espaço “claustrofobizante” que leva a secundarizar o valor das pessoas, daí a importância de revalorizar as correntes personalistas para que as nossas sociedades possam ser mais humanizadas.
Associada a esta tendência está a vigente crença quantitativista que é, claramente, insuficiente para captar a incrível complexidade do ser humano, donde sobressaí a premente necessidade de revalorizar as perceções humanistas para fazer face às insuficiências da ciência estatística.
O sistema financeiro globalizado e as recorrentes fugas ao fisco, através dos inúmeros paraísos fiscais, constituem atualmente o cerne da problemática que obstaculiza o exercício da Ética por parte de empresas e de cidadãos que, inevitavelmente, penalizam os Estados. A reintrodução de alguma moralidade nas relações internacionais implica o combate sem tréguas aos paraísos fiscais e uma organização supranacional com fins filantrópicos que sejam a salvaguarda da proteção de relações internacionais guiadas por normas jurídicas de fundamentos éticos.
Convém atentar que o declínio da Igreja Católica nas sociedades ocidentais e a volatilidade dos valores Éticos tem reduzido os valores perenes. Deste modo, todos os valores se tornaram mais descartáveis, dando uma base de grande insegurança aos cidadãos dos nossos dias, de tal forma que a Igreja Católica definiu como estratégia, nos anos 60 do século XX no Concílio do Vaticano II, para superar esta crise de valores que se aprofunde progressivamente o agir na sociedade com uma nova missão evangelizadora mediante a ação dos leigos.
A Ciência económica e a anomia Ética resultam de uma nefasta ligação da economia às ciências exactas, que tem dado prevalência aos indicadores estatísticos em detrimento da simultânea leitura das motivações psicológicas dos povos. Esta tendência ajuda a explicar que o sistema financeiro global se constitua como verdadeiro fator de desrespeito pelos Direitos Humanos, manifestando-se este fenómeno como atentatório da Ética, pois muitos economistas e os verdadeiros decisores o tendem a menosprezar.
Do Concílio Vaticano II ao papado de Francisco I, iniciado em 2013, a Igreja Católica tem aceitado responder ao desafio da crise de valores com o exemplo dos leigos que se assumem como a porta de entrada do Catolicismo nas sociedades contemporâneas. A problemática da Ética, ou melhor da falta dela, coloca a Filosofia como uma metodologia de sabedoria essencial nas sociedades atuais.
Em conclusão, há uma imprevista urgência de compaginar a Economia e a Ética para que haja uma aproximação do real ao ideal, pois sem este sentido de equilíbrio a obsessão com a produtividade leva à crescente desumanização das sociedades, como o Concílio Vaticano II já o denotou com muita acuidade. Por outro lado, a filosofia pragmática, iniciada com William James, tem-se revelado claramente insuficiente para lidar com a problemática da Globalização. Exemplo disso, é o facto do mau exemplo dos gestores atuais que não olham a meios para ganharem mais, o que revela, claramente, que para lá de uma mentalidade empreendedora é necessário possuir um espírito moldado por uma Ética humanista.
Nuno Sotto Mayor Ferrão
BIBLIOGRAFIA
Adriano Moreira, Teoria das Relações Internacionais, Coimbra, Almedina Editores, 2011.
Idem, “O futuro de Portugal”, in Nova Águia, nº 12, 2º semestre de 2013, pp. 172-175.
Aristóteles, Ética a Nicómaco, Lisboa, Quetzal Editores, 2004.
Matthieu Pellou et Sébastien Rammoux, “Les paradis fiscaux à portée de clic”, in Le Parisien Dimanche, 27 octobre 2013, nº 21502, p. 8.
Nuno Sotto Mayor Ferrão, “Relativismo Ético na História Contemporânea (1914-2010)”, in Brotéria – Cristianismo e Cultura, nº 1, volume 174, Janeiro de 2012, pp. 47-51.
Vítor Bento, Economia, Moral e Política, Lisboa, Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2011.
Anselmo Braamcamp Freire notabilizou-se na História de Portugal como historiador, genealogista e político, na transição do século XIX para o XX. Nasceu, em 1849, no seio de uma família aristocrática de matriz liberal, tendo revelado uma mentalidade versátil, embora sempre cioso de uma, invulgar, seriedade cívica. Esta forte consciência cívica terá sido, certamente, fortalecida pela sua grande formação humanística. Sendo este aspecto um exemplo que os nossos autarcas devem tomar em linha de conta.
Foi um mecenas de investigações históricas, com a imensa fortuna que herdou, tendo fundado a revista Arquivo Histórico Português e publicado uma vasta obra historiográfica, de que sobressaem os títulos Brasões da Sala de Sintra, Crítica e História e Armaria Portuguesa.
Neste papel de investigador e de divulgador da História da Pátria emergiu, também, como figura central em diversas efemérides comemorativas (I Aniversário da República, V Centenário da Conquista de Ceuta e IV Centenário da morte de Afonso de Albuquerque), como membro destacado da Academia das Ciências de Lisboa atribuíram-lhe a incumbência de publicar a importante obra documental Portugaliae Monumenta Histórica.
O seu prestígio foi ainda, socialmente, acrescido na qualidade de fundador da Sociedade Portuguesa de Estudos Históricos e de sócio correspondente da Royal Historical Society of England.
No final do século XIX, iniciou uma carreira política no Partido Progressista convicto do ideal liberal, no regime monárquico, herdado do seu inspirador tio – Anselmo José Braancamp. Assim, foi designado por carta régia Par do Reino em 1887. Nos últimos anos do século, já filiado no Partido Progressista, foi eleito Presidente da Câmara Municipal de Loures. No entanto, revelou, desde cedo, uma independência de espírito que se compaginava mal com o sectarismo partidário, tendo lutado contra os enredos de compadrio no decurso das suas gestões autárquicas.
Na viragem de século lamentou a ignorância larvar da população portuguesa, assacando, nos seus escritos, como sintoma claro da decadência nacional o desinteresse geral a que os seus contemporâneos votavam os estudos históricos, daí que nas décadas seguintes tenha sido um propulsor da curiosidade histórica colectiva.
No início do século XX, Anselmo Braamcamp Freire fará uma mudança política substancial, pois os seus estudos históricos e a sua experiência política levaram-no a uma visão céptica em relação às virtualidades do regime monárquico, aderindo ao ideário Republicano, no contexto do autoritarismo de João Franco em 1907.
Deste modo, ganhou as eleições à Câmara Municipal de Lisboa, em 1908, à frente das hostes Republicanas, tornando-se Presidente da edilidade e evidenciando-se como um administrador eficaz e um tenaz combatente das teias da corrupção e do compadrio, garantindo, concomitantemente, a resolução de muitos problemas camarários (o abastecimento alimentar, os transportes, a iluminação, o saneamento, etc.) sem endividamentos crónicos como era incomum na altura.
Esta ponderada gestão autárquica da coisa pública de profícuo zelo pelo bem comum deveria tornar-se um modelo para os nossos atuais governantes e autarcas. Dentro deste ideário Republicano defendeu, em 1908, a tese federalista e descentralizadora num Congresso Municipalista que acolheu como Presidente da Câmara Municipal de Lisboa, ancorando-se nos conhecimentos históricos que bebeu de Alexandre Herculano.
Sob o novo regime Republicano foi deputado na Assembleia Constituinte em 1911 e Presidente do Congresso Republicano. Mais tarde, pelo seu prestígio, foi, também, Presidente do Senado e com um espírito ponderado tentou apaziguar as inimizades entre as diversas facções Republicanas, embora sem sucesso. Aliás, sentindo-se profundamente desiludido com o regime Republicano adere à Cruzada Nacional D. Nuno Álvares Pereira em 1918, ao perceber o caos a que a conflitualidade partidária Republicana estava a conduzir a pátria.
Por último, digamos que Anselmo Braamcamp Freire legou uma valiosa Biblioteca, de cerca de 10.000 volumes, e uma excelsa Pinacoteca, constituída por quadros de pintores afamados, à Câmara Municipal de Santarém.
O benemérito exemplo de dedicação e de serviço à causa pública alicerçado numa forte consciência cívica e numa sólida formação humanista devem servir de modelo para os autarcas e os políticos que querem ser reconhecidos pelos seus concidadãos. Entendeu que, sem uma forte consciência, de uma memória coletiva preservada e divulgada não havia possibilidade de romper com os sinais de decadência nacional que pululavam, daí que, no fim da sua vida, tenha integrado a Cruzada Nacional D. Nuno Álvares Pereira.
Com efeito, sem uma forte consciência da nossa memória histórica a identidade coletiva definhará e a salvação que se pretende pela mera gestão pragmática das contas públicas será um autêntico suicídio coletivo. Não se pode encontrar outra resposta, tal como Braamcamp Freire nos ensinou, que não seja compaginar orçamentos equilibrados com a promoção constante da memória coletiva para se forje em todos nós, concidadãos, uma exigente consciência Ética.
A greve traduz, por determinação sindical, uma suspensão do trabalho por decisão dos trabalhadores com vista à satisfação de reivindicações profissionais. Este meio reivindicativo resulta dos direitos fundamentais dos cidadãos que os regimes democráticos consagram, como está, aliás, expresso na atual Constituição da República Portuguesa, datada de 1976.
Houve grandes movimentos grevistas no fim da Monarquia Constitucional (1872, 1897 e 1904) e no período da 1ª República (1911-1912), onde a carestia de vida tornou exponenciais as ondas grevistas. Contudo, as greves do fim do século XIX e início século XX eram, sobretudo, de âmbito operário, mas com a erupção das classes médias em Portugal no último quartel do século XX surgem greves de outros grupos profissionais.
Na realidade, foi o reconhecimento legal do direito de associação que permitiu a consagração da greve como um direito, na segunda metade do século XIX, em Portugal (1864 e 1891). O tema do desencadear excessivo de greves gerou desde sempre reacções públicas. Contudo, verifica-se que os movimentos grevistas estão mais acesos em momentos de instabilidade política ou económica como foram os casos das múltiplas greves da 1ª República e das greves portuguesas da atualidade, designadamente neste ano de 2013.
Dos movimentos grevistas dos operários sobressai que deve ser utilizado como meio de reivindicação profissional e não como meio de luta político-partidária em contexto de pluralismo ideológico. No entanto, durante a Ditadura Militar e o Estado Novo as greves foram proibidas em diplomas legais de 1927, de 1934 e de 1958, precisamente quando os regimes políticos autoritários pressentiam que estavam a ser alvo de uma contestação social mais aguda.
O direito à greve implica que não há incumprimento dos trabalhadores pelo que não podem ser qualificados de “faltosos”. As greves desencadeadas por motivos profissionais feitas com ponderação e intermediadas por negociações dignificam a ação dos sindicatos. Consta terem sido Antero de Quental e José Fontana[1] os grandes impulsionadores da consciência dos operários para o direito à greve no fim do século XIX.
No período Marcelista, já no fim do Estado Novo, na segunda metade do século XX, desencadeou-se um forte movimento grevista de índole operária que coincidiu com a subida da inflação e a perda de poder de compra dos trabalhadores, a que reagiu o regime com recurso violento à intervenção da polícia de choque. Em junho de 1969, Marcelo Caetano permitiu alguma abertura sindical ao pôr termo à necessidade das direções sindicais serem homologadas pelo Governo.
No entanto, os sindicatos, descontentes com o regime político, alimentaram um ciclo imparável de greves nos anos de 1969 e de 1970 que apenas eram sustidas pela polícia de intervenção. Exemplo emblemático desta fase histórica foi a greve dos operários da Lisnave em novembro de 1969. A intensidade do ciclo grevista voltou a reacender-se em finais de 1973 até ao eclodir da Revolução do 25 de abril de 1974[2].
Em suma, o recurso à greve como recurso de legitimação de negociações na defesa dos direitos dos trabalhadores e dos cidadãos (de manutenção de postos de trabalho, de segurança salarial e de dignas condições de trabalho, etc) é absolutamente aceitável no plano da consciência Ética.
As atuais greves afirmam-se como legítimas no contexto internacional da “economia de casino”. Porquanto os Estados de Direito são prejudicados nesta conjuntura, com a falta de transparência do sistema financeiro global e a fuga ao fisco por parte dos grandes negócios através de paraísos fiscais, torna imoral grande parte dos défices dos Estados (adquiridos por vias especulativas), respeitadores dos Direitos Humanos, e legitimam, também, no plano da cidadania global as greves de muitos trabalhadores portugueses. Na verdade, as democracias do Ocidente estão em crise, porque não respeitam o pluralismo ideológico e propõem aos cidadãos uma cartilha de ideologia única imposta pela ditadura dos mercados financeiros (teocracia dos mercados).
[1] Maria Manuela Cruzeiro, “Greves” in Dicionário Enciclopédico da História de Portugal, Lisboa Publicações Alfa, 1990, p. 299-301.
[2] João Brito Freire, “Greves Operárias”, in Dicionário de História do Estado Novo, vol. I, coord. Fernando Rosas e J.M. Brandão de Brito, Venda Nova, Bertrand Editora, 1996, pp. 401-404.
*Idem, "Leonardo Coimbra, a revista 'A Águia' e o panorama cultural contemporâneo", in Nova Águia - Revista de Cultura para o Século XXI, nº 5 - 1º semestre de 2010, Sintra, Editora Zéfiro, pp. 34-36.
*Idem, "Alexandre Herculano, aspectos da vida e obra e sua ascendência ideológica sobre o Republicanismo", in Sintra, Zéfiro Editora, Nova Águia - Revista de Cultura para o Século XXI, nº 6 - 2º semestre de 2010, pp. 130-135.
*Idem, "Fernando Pessoa: o sentimento lusófono na sua obra", in Nova Águia - Revista de Cultura para o Século XXI, nº7, 1º semestre de 2011, Sintra, Zéfiro Editora, 2011, pp. 34-38.
*Idem, “Relativismo Ético na História Contemporânea (1914-2010)”, in Brotéria, nº1, volume 174, Janeiro de 2012, pp. 47-51.
*Idem, “A Renascença Portuguesa e o percurso político e historiográfico de Jaime Cortesão”, in Nova Águia, nº 9, 1º semestre de 2012, Sintra, Zéfiro Editora, 2012, pp. 138-144.
*Idem, “A poesia portuguesa: o mar e a lusofonia”, in Nova Águia, nº 11, 1º semestre de 2013, Sintra, Zéfiro Editora, 2013, pp. 23-24.
*Idem, “As linhas de força do pensamento historiográfico de Jaime Cortesão”, in Nova Águia, nº 11, 1º semestre de 2013, Sintra, Zéfiro Editora, 2013, pp. 130-135.
Citações bibliográficas do autor
» Clio: revista do Centro de História da Universidade de Lisboa, “Resumo das Teses de Mestrado em Letras (História)”, Lisboa, 1996, p. 168
» Joaquim Veríssimo Serrão, “Do berço humilde em Freixo à imortalidade da História”, Almirante Sarmento Rodrigues, 1899-1979: testemunhos e inéditos no centenário do seu nascimento, Academia de Marinha e Câmara Municipal de Freixo de Espada à Cinta, Lisboa, 1999, p. 163.
» Cadernos de Estudos Africanos – Memórias Coloniais, Lisboa, Centro de Estudos Africanos do Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa, 2006, p. 150.
» Cultura: Revista de História e da Teoria das Ideias, Lisboa, Centro de História da Cultura da Universidade Nova de Lisboa, vol. 25, 2008, p. 44.
» Ana Reis e João Garrinhas, “2 anos sob tutela autárquica”, in Profforma (Revista do Centro de Formação de Professores do Nordeste Alentejano), nº 2, março de 2011, pp. 1-7.
A preocupação excessiva com a crise financeira, das dívidas soberanas da Zona Euro, tem levado as sociedades europeias a descurar os problemas de sustentabilidade ambiental e a desleixar as preocupações Éticas que estão a minar a possibilidade de um real progresso da Humanidade. Sem um ambiente planetário que se auto regenere e uma vida que seja moldada por valores Éticos, onde irá parar a qualidade de vida dos cidadãos do século XXI?
Se o historiador Eric Hobsbawm apelidou o século XX de Era dos Extremos pelos fanatismos que pairaram no mundo, o início do século XXI tem sido marcado por muitas incertezas, a que as Ciências Exatas não têm sabido dar resposta cabal, porque a Humanidade tem de ser pensada de uma forma mais ampla, com pressupostos Humanistas, dado que os cidadãos e as sociedades se compõem de espírito e de corpo.
O desleixo político com o desenvolvimento sustentável em termos ambientais e humanos decorre da destruição dos recursos naturais e dos recursos humanos de criatividade, sob o pretexto de que se tem de garantir o crescimento económico e a competitividade (econometria). Este erróneo pensamento de curto prazo, se não for invertido, colocará em risco a salubridade ambiental e o respeito pelos Direitos Humanos fundamentais, porque tudo se resume, nesta lógica, à quantificação dos fatores sociais.
O Professor Carlos Borrego num desafiante artigo da revista Brotéria[1]realça o facto da crise económica ter efeitos positivos em termos ambientais, porque têm diminuído os gases com efeito de estufa, o que não tinha sido conseguido nem com as Conferências da ONU, nem com os Acordos Ambientais, não subscritos por muitos países. A crise económica é uma oportunidade para se repensar a sustentabilidade ambiental e do bem-estar da Humanidade que só terá um futuro digno se os legionários do sistema financeiro não aprofundarem os mecanismos especulativos da Globalização (teologia de mercado).
O Professor Carlos Borrego constata, ainda com muita acuidade neste artigo citado, que o aumento exponencial dos divórcios são o reverso da medalha, uma vez que este aspeto da crise Ética prejudica o ambiente, porque o aumento do número de casas resultantes das famílias monoparentais origina mais gastos de recursos naturais e mais produção de resíduos e poluição.
As alterações climáticas têm originado fenómenos naturais inesperados de maior frequência ao longo do mundo (tempestades, cheias, tornados, etc). Em Portugal, este ano temos assistido a oscilações térmicas repentinas, em poucas horas, que têm obrigado os cidadãos a acautelarem-se com medidas preventivas e as autoridades da Proteção Civil a criarem sistemas de alerta que constantemente deixam as populações perplexas.
A única resposta consentânea com esta crise multipolar que varre o planeta é a implementação de novos paradigmas Civilizacionais que coloquem no centro das suas preocupações os valores Éticos como medida da perenidade alternativa à vacuidade da aparência e do imediatismo, atitudes de uma cidadania global e políticas que refreiem os ímpetos da ganância financeira através de regulamentação internacional e de políticas efetivas em favor do desenvolvimento sustentável ambiental e humano.
Nuno Sotto Mayor Ferrão
[1] Carlos Borrego, “Ano diferente 2012: as oportunidades perdidas”, in Brotéia, nº 174, Maio-junho de 2012, pp. 441-452.
Neste tempo de crise das finanças, que assola a Europa e Portugal nestes últimos anos, procedente da crise de valores Éticos que se instalou no centro do Capitalismo Financeiro, que conduziu, no início de Julho de 2011, a agência de notação financeira Moody's a cortar o 'rating' lusíada, importa relembrar os grandes vultos criadores da alma portuguesa que podem ser inspiradores.
Carlos Paredes foi um exímio compositor e guitarrista, lusitano, que soube valorizar a guitarra portuguesa como portadora de um timbre bem simbólico da alma nacional. Recebeu dos seus familiares uma rica aprendizagem musical, em particular do seu pai, Artur Paredes, mestre da guitarra Coimbrã. A sua prodigiosa obra musical foi marcada pela dupla influência do uso da Guitarra de Coimbra e da sua forte inspiração na sublime beleza da paisagem e da vida da cidade de Lisboa. Registe-se que foi preso pela PIDE, acusado de se opor a Salazar como militante do Partido Comunista Português, em 1958-1959. Compôs a banda sonora do filme “Verdes Anos” (1962) e tocou com artistas famosos nacionais e estrangeiros.
Cena simbólica do filme Tempos Modernos (1936) de Charlie Chaplin
Este texto vem na sequência do pertinente “post” da Professora Ana Paula Fitas intitulado “Qualificações, Desenvolvimento e Produtividade”, inserido no seu blogue «A Nossa Candeia»[1]. Creio que a função das minhas observações, na esteira das suas palavras, é o de criar um ambiente de sensibilização cívica para a complexa problemática que emerge do contexto em que vivemos, para que colectivamente o possamos tentar resolver.
Estou, inteiramente, de acordo, com a afirmação desta autora, de que é necessário desenvolver o aparelho produtivo nacional, em particular os sectores primário e secundário que têm sido muito menosprezados. Os problemas básicos que afectam a nossa economia nacional radicam, sem sombra de dúvida, no drama do desemprego e no endividamento público[2] que, aliás, não é uma novidade na História de Portugal dado que o atraso económico e técnico sempre foi uma das suas linhas de força, como já o frisavam alguns estrangeirados do século XVIII[3].
Subscrevo a ideia da existência de uma hipertrofia do sector terciário no nosso país. Na verdade, concordo, em absoluto, que o cerne da questão é a qualidade de vida das pessoas e a falta de um pensamento estratégico, a médio e a longo prazo, pelo facto da política estar condicionada pela “nova economia tecnológica” que impele ao imediatismo do consumo de produtos cada vez mais efémeros[4].
O contexto internacional é extremamente complexo e imensamente desafiante e, por esta razão, torna-se difícil definir um modelo de desenvolvimento sustentável nacional e europeu, porque as coordenadas financeiras se afiguram muito incertas devido a vários factores desta conjuntura da Globalização. De facto, como dizia, no outro dia na televisão, o reconhecido especialista Ernâni Lopes as actividades económicas mundiais estão desfasadas das finanças e, nesta conjuntura, a Globalização tende a ser pouco regulada e a consciência Ética dos cidadãos encontra-se fortemente ameaçada. Urge, como nos dizem, as palavras avisadas de Vitorino Magalhães Godinho e de Mário Soares mudar de paradigma Civilizacional[5], que tome em linha de conta os legados do Humanismo Europeu. Caso contrário, os impasses existenciais de um país e de um Continente permanecerão neste nó górdio. Verifiquemos, pois, alguns desses impasses…
Há, com efeito, uma série de questões que dentro deste panorama devem ser seriamente equacionadas: até que ponto a obsessão com a produtividade se constitui como um mecanismo legítimo para melhorar a qualidade de vida das pessoas? Por outras palavras, até que ponto não estamos enredados numa lógica obsessiva e economicista que faz perder às pessoas o sentido dos projectos humanistas que lhes garanta o bem-estar e a felicidade? Recordo-me sempre do filme bem actual, de que já aqui reproduzi um pequeno excerto, de Charles Chaplin intitulado “Tempos Modernos” datado de 1936. Não é urgente um paradigma humanista que faça articular a política com uma visão de médio e de longo prazo? Não se está a pensar só nos dados de curto prazo (nas estatísticas do dia, do mês, do trimestre, etc.) por culpa dos imediatismos frenéticos e das vendas de produtos tecnológicos de consumo volátil?
Faço votos para que este imprescindível debate público se faça de espírito aberto e descomplexado! Torna-se absolutamente impreterível esta reflexão tanto mais que pergunta, com grande pertinência, o Professor José Medeiros Ferreira no blogue «Córtex Frontal» se o clima de crispação social na Europa, que parece irá emergir nos próximos dias, não será um aviso das populações à filosofia tecnocrática do Ecofin.
Nuno Sotto Mayor Ferrão
[1] Estas palavras pretenderam ser um mero comentário, mas por sugestão da Professora Ana Paula Fitas transformaram-se nestas breves considerações que vos apresento.
[2] No século XIX com as tímidas tentativas de modernização do país através dos projectos Fontistas de construção de infra-estruturas, de comunicação e transporte, começou um gritante endividamento do país.
[3] Por exemplo, o estrangeirado Cavaleiro de Oliveira, talentoso escritor português do século XVIII, dizia que Portugal era "um relógio atrasado no tempo pela incúria dos que o governam".
[4] Vide Vitorino Magalhães Godinho, “Revolução técnica e nova economia. A sociedade às avessas”, in Os problemas de Portugal – os problemas da Europa, Lisboa, Edições Colibri, 2010, pp. 118-130.
[5] Mário Soares,”Globalização, terrorismo e a grande crise”, in Elogio da Política, Lisboa, Sextante Editora, 2010, pp. 135-152.
O 11 de Setembro de 2001 foi sem dúvida uma terrível página da História Universal que se traduziu no massacre horripilante e sanguinolento de milhares de inocentes...[1] O colapso do World Trade Center e de parte do Pentágono mostrou ao mundo a vulnerabilidade das grandes potências.
Deixo a minha homenagem às vítimas, inocentes, da tragédia de 11 de Setembro de 2001 que merecem que lutemos por um mundo melhor onde estes horrores não voltem a ser possíveis! Só podemos tentar evitar que se repitam novos Holocaustos, novas Guerras Mundiais, novos 11.9.2001 se houver bom senso da parte dos líderes e dos povos e um paradigma Civilizacional que se distinga pelo primado da Ética e pela sensibilidade solidária através de uma ONU com poderes reforçados.
Com efeito, a ideia do "American Way of Life" sempre me pareceu uma ilusão caleidoscópica a que muitos cidadãos Europeus se agarravam. Nunca me identifiquei muito com a distintíssima visão do grande pensador Alexis de Tocqueville[2] que, no século XIX, retratou os EUA como o país por excelência da liberdade. Sempre compartilhei mais o pensamento de Noam Chomsky[3] que vislumbrou o povo Norte Americano como materialista, egoísta e individualista que potenciou que as rédeas de R. Reagan, Bush pai e Bush filho levassem esta nação a uma violenta crise de auto-estima que começou com o 11/9/2001 e se prolongou até à crise capitalista despoletada pelas gigantescas fraudes financeiras descobertas na esteira de Bernard Madoff.
Assim, os EUA estão muito longe de servir de paradigma Civilizacional. Tornaram-se mais modestos e mais prudentes com o Presidente Barak Obama é certo, mas precisam de se concentrar mais na casa comum, da Humanidade que é o nosso planeta, se querem ver-se reconhecidos com autoridade moral.
Se é certo que, na primeira metade do século XX, houve Presidentes Norte Americanos com apuradas sensibilidades sociais e senso ético (por exemplo, W. Wilson ou D.F. Roosevelt), na segunda metade do século XX e início do século XXI destacaram-se mais os Presidentes com perfis menos sérios ou mais aguerridos, embora se possa encontrar uma ou outra excepção. Em todo o caso, os EUA tornaram-se o símbolo da sociedade da abundância com um claro embotamento das virtudes espirituais e éticas.
Na realidade, podemos traçar um paralelo interessante entre o paradigma Civilizacional Norte-Americano e o paradigma Civilizacional que os Romanos ergueram na Antiguidade Clássica que desembocou numa forte Crise Ética na época de declínio deste Império, como se verifica actualmente com os EUA. Assim, a exacerbação da mentalidade individualista e competitiva e a filosofia do Pragmatismo[4] que os Norte Americanos criaram acabou por moldar um Modelo Civilizacional em que os Europeus pouco acreditam. Não nos devemos iludir, pois o princípio do "salvação social do mais forte" é a lógica do darwinismo social que não permite sociedades mais coesas, mais solidárias, com sentido Ético e suscitadoras de espiritualidades criativas. Não concebo que seja este o paradigma para uma Humanidade mais feliz, socialmente mais justa e mais pacífica!
Nuno Sotto Mayor Ferrão
[1] Foi da leitura, da observação e do comentário dos seguintes “posts” bem interessantes: do Embaixador Francisco Seixas da Costa intitulado “Duas cidades” no seu blogue Duas ou três coisas – notas pouco diárias do Embaixador Português em França, da Professora Ana Paula Fitas intitulado “11 de Setembro – Nove anos de um impacto ainda em curso” do seu blogue A Nossa Candeia e do impressionante documentário que o Advogado Osvaldo Castro nos apresentou intitulado “Memorial 9/11, Goodbye Blue Sky, Pink Floyd" no seu blogue Carta a Garcia que este texto se tornou possível, como podem confirmar nas respectivas caixas de comentários destes blogues.
[2] Alexis de Tocqueville, Da democracia na América, Cascais, Ed. Principia, 2002 ( prefácio de João Carlos Espada ).
[3] Noam Chomsky, Neoliberalismo e ordem global – crítica do lucro, Lisboa, Notícias Editorial, 2000.
[4] A escola filosófica Norte-Americana do Pragmatismo, que enfatizou a necessidade de tornar todos os conhecimentos utilitários, teve em Ralph Waldo Emerson, Charles Sanders Peirce e William James os seus grandes doutrinadores.
Pintura das quatro virtudes cardeais de “Rafael Sanzio” no Vaticano
No início da década de 1920 Paul Valéry, consagrado intelectual francês, já nos dava conta da descrença nos valores morais tradicionais, que coincidiu com o fim da hegemonia política e económica da Europa no mundo, ao dizer: “(…) a nossa geração (…) assistiu também à negação brutal das nossas ideias mais evidentes. (…) Já não podemos então confiar no Saber e no Dever ? (…)”[1]. Desde a conjuntura histórica entre as duas grandes guerras (1914-1945) que os valores tradicionais das elites sociais ( do trabalho, do esforço, da família, da pátria, da autoridade, etc ) começaram a ser questionados sob o trauma da 1ª Guerra Mundial. Em Portugal, a crise de valores começou a manifestar-se com a 1ª República e só reemergiu, após a interrupção autoritária do Estado Novo, com o regime do pós-25 de Abril de 1974[2].
As duas Guerras Mundiais (1914-1918 e 1939-1945) provocaram uma carnificina sem precedentes que desmoralizaram os países Europeus. O Existencialismo apareceu como resposta de libertação individual face a todas as ideologias fechadas e totalitárias, tendo desencadeado o fatal colapso da noção de “essência” e dos valores nucleares da tradição. De acordo com o Existencialista cada indivíduo deveria pela sua individualidade realizar-se pelo seu próprio projecto pessoal.
O paradigma americano do sucesso baseado na filosofia do pragmatismo de William James e no utilitarismo de John Stuart Mill enfatizou a ética da força em particular na 2ª Guerra Mundial e no pós-guerra, uma vez que no tempo do Presidente Woodrow Wilson ainda prevalecia na administração norte-americana algum idealismo ético. Deste modo, o modelo da ética grega baseada nas outras virtudes cardeais (a prudência, a justiça e a temperança) acabou por ser, parcialmente, abandonado, não obstante os esforços Europeus para concretizarem um modelo alternativo, através da Comunidade Económica Europeia/União Europeia, sonhado por Jean MonneteRobert Schuman.
Nas sociedades contemporâneas emergiu a tendência nefasta dos cidadãos reclamarem os seus Direitos, com anuência dos poderes instalados, e os Deveres serem simplesmente esquecidos. Daí que noções fundamentais, como a seriedade, a honra, a honestidade, no quadro destes novos valores acabaram por cair em desuso.
Outro problema central no contexto da Globalização é o peso tentacular dos meandros do narcotráfico que proliferam nos países mais pobres e se infiltram nos países mais desenvolvidos, como apetecíveis mercados de consumo[3].
Por sua vez, a violência tornou-se, nos nossos dias, a linguagem que se banaliza nas ruas, nas escolas, nas televisões, porque se assume a força como valor ético ao serviço do pragmatismo. Maquiavel, nas suas recomendações principescas[4], deu conselhos muito similares… Com efeito, a criminalidade tem aumentado, o “bullying” prospera, a guerra esfacela meio mundo e a ética, cristã ou iluminista, do “amor ao próximo” (ou da fraternidade) “anda pelas ruas da amargura”.
O terrorismo é uma face da maldade que se espraia como forma de protesto atentando contra o bem supremo da vida humana. Aliás, as relações internacionais nesta conjuntura histórica, após a queda do muro de Berlim até ao presente (1989-2010), caracterizam-se ainda pela anomia ética e pela extrema debilidade da eficaz intervenção da ONU[5] que potenciaram o fenómeno terrorista e a resposta neoconservadora da administração de G. W. Bush baseada no pensamento estratégico, militarista, do ideólogo Paul Wolfowitz.
Por outro lado, o Estado - Providência entrou em crise por razões financeiras fazendo lembrar a tese Malthusiana da escassez dos recursos face ao exagerado crescimento demográfico mundial. Desta forma, os Estados tornam-se, cada vez mais, na conjuntura da Globalização e da desenfreada Liberalização Económica, incapazes de se garantirem como protectores dos desfavorecidos da “fortuna”.
É, igualmente, em parte, esta insuficiência de recursos financeiros associada à destruição dos valores tradicionais ligados às responsabilidades, aos deveres e ao trabalho que acaba por descredibilizar as instituições Estatais da Justiça e da Educação, a nível internacional e nacional[6]. Não obstante, serem estes os bastiões que podem garantir a implementação de uma ética de bondade, de generosidade, de prudência, de moderação, etc. Sem recursos financeiros para estas duas áreas fundamentais do Estado Social e sem uma acrescida consciência dos deveres por parte dos cidadãos não haverá possibilidade de ultrapassar este impasse que se vive.
A presente fase histórica, no início do século XXI, de um mundo desregulado do ponto de vista da ética financeira fez crescerem a fraude fiscal e os mecanismos de especulação sobre os próprios Estados pseudo-desenvolvidos. Houve um desenvolvimento demasiado rápido rumo a ‘mundo novo’, tal como nos predizia Aldous Huxley em 1932[7], que conduziria a cidadãos despojados de qualquer consciência moral. Estamos, assim, num impasse Civilizacional, porque o mundo não consegue fazer cumprir os Direitos Humanos por incapacidade prática da ONU e dos Estadistas não terem criado ainda organismos verdadeiramente eficazes no plano internacional para uma acção de supervisão, enquanto os grandes financeiros, astuciosamente, souberam manietar os detentores do poder político. No declínio do império romano a decadência moral não era muito diferente…
Um dos valores, actuais, que mais prejudicam a coesão social é o individualismo e a excessiva competitividade que têm tornado as pessoas mais egoístas e gananciosas. Enquanto este funesto paradigma mental passar por uma sociedade Global de modelo capitalista, sem restrições, no encalço dos ensinamentos de Milton Friedman[8], as injustiças sociais serão recrudescentes.
Ao mesmo tempo, o alucinante ritmo das mudanças tecnológicas têm conduzido a uma vida frenética com efectiva perda de qualidade de vida dos cidadãos, ao ponto da actual “Expo 2010” realizada em Xangai ter como tema esta incontornável questão. Este é um dos preços a pagar pela aposta excessiva na aceleração tecnológica que dando maiores margens de lucro às empresas multinacionais estimula o consumismo, o que tem levado à crescente importância do valor “ter” (materialismo) sobre o valor “ser” (espiritualismo/humanismo), daí que como compensação deste desequilíbrio humano, em particular, nas sociedades do Ocidente se importem do Oriente saberes espirituais milenares (o ioga, as medicinas alternativas, as massagens, as acupuncturas, o budismo, etc.) que têm ganho muitos adeptos nos desestruturados trabalhadores do capitalismo desregrado (na figura do “Workaholic”).
A crise de valores procede do relativismo ético que acredita na impossibilidade de se encontrarem verdades absolutas, tendo o grande sociólogo Max Weber sido um dos responsáveis por esta concepção intelectual na obra “Ensaios sobre a teoria das ciências” tal como nos afirma Raymon Aron: “(…) em Max Weber, subsiste uma diferença fundamental entre a ordem da ciência e a ordem dos valores. A essência da primeira é a submissão da consciência aos factos e às provas, a essência da segunda é a livre escolha e a livre afirmação. Ninguém pode por meio de uma demonstração ser levado a reconhecer um valor ao qual não adira. (…)”.[9]
Em suma, a pintura do mestre, Renascentista, Rafael Sanzio na “Stanza della Segnatura”, no Vaticano, evoca-nos nessa abóbada, que nos obriga a olhar para cima, as quatro virtudes cardeais (a justiça, a temperança, a fortaleza e a prudência) que devem moldar o espírito dos honrados cidadãos e das sociedades justas. Contudo, a virtude da força deve ser encarada como manifestação endógena. Por conseguinte, sem a recuperação empírica por parte das sociedades contemporâneas desta orientação espiritual, que os Gregos nos legaram, o mundo decairá no abismo profundo da inércia ética.
Nuno Sotto Mayor Ferrão
[1] Paul Valéry, Variété, Paris, Ed. Gallimard, 1927. Esta descrença na superioridade moral da Civilização Europeia, que este autor nos evoca, teve correspondência no declínio do modelo etnocentrista Europeu.
[2] Não pretendo, de forma alguma, insinuar que o quadro de valores do regime Salazarista era edificante, mas apenas que se vivia numa estrutura de valores estáveis embora muito questionáveis à luz dos valores democráticos. Esta problemática é, aliás, das mais complexas que perpassa as nossas sociedades contemporâneas.
[3] É muito interessante e sugestivo o romance realista de Arturo Pérez-Reverte (A rainha do Sul, Lisboa, Edições Asa, 2003) que aborda a textura de impunidade do narcotráfico que circula com facilidade vinda da Amércia do Sul entrando pelo sul de Espanha, via Marrocos, fornecendo os “mercados negros” europeus.
[4] Nicolau Maquiavel, O Príncipe, Porto, Porto Editora, 2009.
[5] Como já o antevia o Professor Adriano Moreira na viragem do milénio, atente-se nas suas palavras avisadas: “(…) De modo que nos encontramos numa situação de total falta de ordem, porque se disfuncionou o sistema dos Pactos Militares, sem capacidades sabidas para retomar o modelo observante da Carta da ONU, procurando implantá-lo como modelo observado, mas obrigados a recorrer aos planos de contingência como meio de enfrentar os picos mais desafiantes desta ‘anarquia madura’ da comunidade internacional, como lhe chamou Buzan. (…)” ( Adriano Moreira, “A ética nas relações internacionais”, in Estudos da Conjuntura Internacional, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 2000, p. 287.
[6] Como, aliás, o fiscalista Henrique Medina Carreira e o Professor Nuno Crato nos sublinham até à exaustão no excelente programa de Mário Crespo intitulado “Plano Inclinado”.
[7] Aldous Huxley, Admirável mundo novo, Lisboa, Livros do Brasil. 1981.
[8] Milton Friedman, Liberdade para escolher, Mem Martins, Publicações Europa-América, 1982.
[9] Raymond Aron, As etapas do pensamento sociológico, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1991, p. 499.
À pertinente pergunta do jornalista Daniel Oliveira no Arrastão (http://www.arrastao.org/) às dúvidas da União Europeia de auxiliar as finanças da Grécia considero que o princípio da coesão social Europeia recomenda a ajuda da União Europeia à Grécia, mas é lícito ironizar, com a dúvida implícita na questão colocada pelo jornalista, ao sugerir jocosamente se não seria melhor passar a chamar à Grécia - Banco Helénico de Investimentos. A Europa está, efectivamente, com receio de, ao mesmo tempo, perder a sua coesão monetária e daí, presumivelmente, os obstáculos impostos pelo Tratado de Lisboa como nos diz o Professor José Medeiros Ferreira no "Cortex Frontal" (http://www.cortex-frontal.blogspot/).
Estamos perante este incontornável paradoxo que nos deixa perplexos face às hesitações dos políticos Europeus. Na verdade, "o velho continente", em termos históricos e demográficos, desde o fim do século XX que procura reafirmar-se como grande superpotência após a reconfiguração internacional ocorrida nos anos 90. Este é o argumento que leva alguns a pensar que é necessário continuar a alimentar a ilusão de que o sistema financeiro Europeu tem credibilidade, pois sem o projecto de relançamento económico e político este continente entrará em crise face à emergência das novas potências mundiais. Só que a questão, de fundo, é a falta de credibilidade do sistema financeiro internacional, que não garante a ética pública antes a corrompe, fazendo depender os líderes políticos mundiais que não conseguem soltar amarras das teias perniciosas do sistema... Nuno Sotto Mayor Ferrão www.mil-hafre.blogspot.com