Crónicas que tratam temas da cultura, da literatura, da política, da sociedade portuguesa e das realidades actuais do mundo em que vivemos. Em outros textos mais curtos farei considerações sobre temas de grande actualidade.
Crónicas que tratam temas da cultura, da literatura, da política, da sociedade portuguesa e das realidades actuais do mundo em que vivemos. Em outros textos mais curtos farei considerações sobre temas de grande actualidade.
António Sérgio de Sousa Júnior (1883-1969) foi um insigne pensador e político português, que foi considerado pelo historiador Joel Serrão como o maior ensaísta português de todos os tempos. O seu ensaísmo aborda temas diversificados que se estendem da filosofia à economia, mediante um padrão humanista com um racionalismo de tendência materialista.
Arrancou com a sua prolífera atividade ensaísta no movimento cultural Renascença Portuguesa, escrevendo e polemizando na revista A Águia ao lado de figuras como Teixeira de Pascoaes, Jaime Cortesão, Leonardo Coimbra ou Fernando Pessoa.
Este pensador recebeu uma formação intensamente militar no Colégio Militar e na Escola Naval, além de ter passado também pela Escola Politécnica, uma vez que no seu seio familiar pontuavam muitos militares[1]. Iniciou a atividade profissional como oficial da Marinha, mas cedo abandonou a carreira militar por ter jurado fidelidade ao rei D. Manuel II.
Durante os primórdios do regime republicano, concorre como assistente de filosofia da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa mas como não foi escolhido, ingressou no Instituto Jean-Jacques Rosseau, em Genebra, entre 1914 e 1916, onde estudou com a sua mulher, Luísa Epifâneo da Silva, as tendências pedagógicas da Escola Nova, impulsionadas por Éduard Claparéde, que lhe permitiu influenciar a reforma do ensino do ministro João Camoesas.
Desde o início do regime republicano colabora em diversas revistas (A Águia, Pela Grei, Seara Nova e Lusitânia), com o intuito de fazer ressurgir a Nação da letargia instalada, que a contaminava já no fim do regime da monarquia liberal. Aliás, as suas funções na direção da revista Seara Nova conduziram-no a abraçar o Ministério da Instrução Pública, o que fará com grande convicção. Depois desta experiência política, e com o singrar da ditadura militar, é levado ao exílio em França de 1926 a 1933.
Em 1945, quando termina a 2ª Guerra Mundial, abre-se a expectativa de modificação do regime Salazarista, em virtude da derrota dos autoritarismos de extrema-direita consubstanciada na rendição das potências do Eixo, e então António Sérgio integra o Movimento de Unidade Democrática, juntamente com uma plêiade de eminentes figuras públicas como Alves Redol, Norton de Matos, Bento de Jesus Caraça, Fernando Lopes Graça, Ferreira de Castro, Miguel Torga, Vitorino Magalhães Godinho, Francisco Salgado Zenha, entre muitos outros.
Como afoito oposicionista, apoiou as candidaturas presidenciais de Norton de Matos e de Humberto Delgado e, logo nessas ocasiões, foi encarcerado, como em outras vezes anteriores, pelo ímpeto das suas convicções democráticas.
António Sérgio, no decorrer do seu valoroso labor intelectual, manteve uma veia polemista, esgrimindo argumentos com múltiplas figuras públicas. O seu escorreito pensamento, que se manifestou nos livros que escreveu e na sua acção, centrou-se na reforma das mentalidades, na compreensão do sentido da História de Portugal e na ideia de uma escola autónoma centrada numa educação cívica.
Nesta medida, foi o introdutor na historiografia portuguesa da perspetiva económica e social, na abordagem de acontecimentos como a Revolução de 1383-85 ou da conquista de Ceuta de 1415, o que nos manifesta o seu paradigma racionalista de pendor materialista. A proibição pela censura salazarista de publicar uma História de Portugal, incómoda para os registos narrativos oficiais, truncou a cultura portuguesa do seu potencial criativo em termos historiográficos.
Na sua larga obra ensaística preocupou-se com o aprofundamento de uma democracia efetiva, que devia ter por base uma opinião pública esclarecida e uma elite diversificada. Na verdade, no exílio, nos anos da ditadura militar, continuou a publicar os Ensaios e a advogar o rápido regresso de Portugal à democracia.
O seu aceso espírito crítico levou-o a levantar inúmeras polémicas com autores filiados noutras correntes espirituais distantes da sua mundividência (bergsonianos, neorromânticos, integralistas, católicos ou marxistas), considerando-se um livre pensador, mas estando, em abono da verdade, condicionado pelo seu paradigma ideológico.
Com efeito, era um adepto fervoroso dos regimes democráticos, que tinham de se reformar, como lhe ensinou a experiência da 1ª república[2] e, talvez, o malogro das democracias liberais europeias pós-Grande Guerra. Estes regimes tinham de passar pela reforma das escolas de modo a permitir, que ao longo de gerações, a evolução das mentalidades coletivas e a formação de elites patriotas, manifestassem atitudes cívicas desprendidas de intereses partidários. Deste modo, considerava que as democracias só podiam amadurecer se contrariassem os dogmas mentais ou preconceitos, daí a sua absoluta predileção pelo método polemista, e procedessem de maneira experimental.
O seu hercúleo trabalho em prol da cultura manifestou-se na direção das revistas Pela Grei e Seara Nova e como diretor da Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira. De facto, o seu papel pedagógico foi, tal como Faria de Vasconcelos, um difusor dos métodos pedagógicos da Escola Nova, designadamente o método de Maria Montessori, centrados nas aprendizagens dos alunos.
O seu magistério intelectual permeou e influenciou, através de uma convivência frequente, uma geração mais nova de figuras, que o tratavam como mestre, como Agostinho da Silva, Barahona Fernandes, Raul Lino, Rui Grácio ou Mário Soares.
A sua formação pedagógica na Suiça irá fazê-lo criticar a escola tradicional e os métodos diretivos do ensino português, que com a escola salazarista se arrastaram por longas décadas, propondo uma escola de aprendizagens centrada no educando que visasse autonomizar os indivíduos, com vista à produtividade económica, singular e coletiva.
Das suas ideias peregrinas destacam-se o ensino como catapulta para a regeneração nacional, em ambiente de acentuada decadência desde os anos 90 do século XIX, e para a criação de uma elite humanista empenhada numa democracia socialmente progressista. Neste registo reflexivo, insere-se o seu combate por um cooperativismo que fomentasse uma economia social, tendo sido um dos grandes inspiradores das cooperativas de habitação, entre outras[3]. Existindo, assim, ainda hoje em dia a Cooperativa António Sérgio para a Economia Social como entidade pública criada em sua homenagem.
Em conclusão, António Sérgio concebia que a autenticidade da educação e da cultura só era possível em regimes democráticos, valorizando plenamente as liberdades de pensamento e de ação dos indivíduos. Desta forma, a sua linha política situa-se num socialismo proudhoniano, influenciado pelas ideias de Antero de Quental, que combateu o corporativismo salazarista e os excessos do socialismo soviético, advogando um cooperativismo saudável para uma economia de base social. Na sua profícua capacidade de síntese, encontrou, no modelo eclético de junção da democracia liberal com o socialismo cooperativista, a alternativa para os desvios desmedidos dos autoritarismos, salazarista e do socialismo soviético.
[1] António Campos Matos, Diálogo com António Sérgio, Lisboa, Editorial Presença, 217 p.
[2] Sérgio Campos Matos, “António Sérgio (1883-1969)”, in Dicionário Enciclopédico da História de Portugal, vol. 2, Lisboa, Publicações Alfa, 1990, pp. 222-223.
[3] "(...) O cooperativismo é um movimento de ascensão moral, de reforma social, que se serve, como instrumento, das necessidades económicas dos homens. (...)", in António Sérgio, “Sobre o socialismo de Oliveira Martins", Ensaios, tomo VIII, p. 235.
Ruy Coelho, um polivalente compositor, maestro, pianista e crítico musical, agora redescoberto pelo investigador Edward Luiz Ayres de Abreu, foi votado ao esquecimento pela sociedade portuguesa, na segunda metade do século XX, devido, provavelmente, às inúmeras polémicas em que se envolveu com músicos portugueses eruditos e, talvez, também à colaboração que manteve com o Estado Novo. A prova disso está no facto de José Saramago, durante o PREC, o ter saneado de crítico musical do Diário de Notícias.
No entanto, outros factores complementares explicam, também, esse esquecimento (nas palavras deste investigador): a falta de um agente artístico que tenha promovido, na segunda metade do século XX, a sua obra e a inexistência de partituras editadas que facilitassem a interpretação musical.
Deste modo, apesar do seu colaboracionismo com o regime de Salazar, a sua obra revelou uma excepcional riqueza estética na diversidade de géneros e de influências estilísticas que cultivou.
O seu espólio histórico foi doado pela família à Biblioteca Nacional de Portugal a 18 de maio de 2011, tendo agora sido redescoberto e apresentado ao público com uma pequena exposição dos seus pertences e com a realização de concertos nesta Biblioteca, sendo duas das suas obras tocadas pela Orquestra Metropolitana de Lisboa nos dias 18 e 25 de Julho de 2014.
A formação musical começou na terra natal, na Banda Filarmónica de Alcácer do Sal. Continuou depois no Conservatório de Lisboa de 1904 a 1909 e terminou no estrangeiro sob a influência de Engelbert Humperdinck, Max Bruch, Arnold Schoenberg e Paul Vidal. Esta rica formação irá traduzir-se na polivalência das suas obras musicais e nas múltiplas influências estilísticas assimiladas.
A imensa versatilidade cultural fê-lo aproximar-se de compositores como Igor Stravinsky ou Manuel de Falla, e tanto de técnicas mais modernistas como a atonalidade ou mais tradicionalistas como os princípios neoclássicos de composição.
No regresso a Portugal, aproxima-se, inicialmente, dos artistas e dos escritores da geração da revista Orpheu, em particular colaborando com José de Almada Negreiros e José Pacheco em diversos bailados. O conhecimento das orientações programáticas e cívicas do movimento Renascença Portuguesa através de autores como Afonso Lopes Vieira ou António Correia de Oliveira incutiu-lhe um espírito patriótico que tentou impregnar em muitas das suas composições.
As suas obras musicais abarcam diversos géneros como as óperas, as sinfonias, as músicas para bailados e filmes (Alla-Arriba! e Camões,de 1942 e 1946, realizados por Leitão de Barros), concertos para piano e música de câmara. As composições de timbre patriótico refloresceram com a utilização de elementos ligados ao folclore, com as evocações historicistas e com as óperas cantadas em português, das quais se tornou um indefectível defensor. Foi, inclusivamente, o autor do hino da cidade de Lisboa.
É errado pensar-se que a sua obra traduz o ideário do Estado Novo. Colaborou com este regime autoritário como é evidente, tal como tinha colaborado, anteriormente, com o regime da 1ª República. Por exemplo, em 1913, apresentou no Teatro S. Carlos a Sinfonia Camoneana nº 1 (inspirada na obra de Gustav Mahler) com uma grandiosa orquestra de 500 músicos, tendo sido esta peça precedida por uma Conferência de Teófilo de Braga e, ainda, no mesmo ano apresentou a sua ópera Serão da Infanta com libreto deste prestigiado republicano. No mesmo espírito pragmático, irá compor uma ópera D. João IV para as Comemorações Centenárias da Independência de Portugal, em 1940, para o Salazarismo.
A forte personalidade enredou-o em múltiplas polémicas com músicos e eruditos portugueses, que prejudicaram a sua afirmação nacional, designadamente com compositores como Luís de Freitas Branco, José Vianna da Mota, Júlio Neuparth, Fernando Lopes-Graça, colaboradores da Seara Nova, entre outras figuras prestigiadas da cultura portuguesa. Algumas dessas controvérsias incidiram sobre as obras alheias ou a organização do teatro lírico nacional. Ajudando-o nesta campanha por uma ópera nacional, cantada em português, esteve o tenor alentejano Tomás Alcaide. Contudo, o excesso de acrimónia crítica em relação aos seus conterrâneos influenciou a forma preconceituosa como foi ajuizada, na época, a sua obra.
Ruy Coelho fez apresentações das suas composições durante a 1ª República e o Estado Novo no país. Todavia, o excesso de colaboracionismo político e a veia polemista impediram que fosse reconhecido pela sociedade portuguesa, pois o seu inegável mérito artístico é, claramente, independente da sua colaboração com estes dois regimes políticos. Revelou qualidades ecléticas ao experimentar diversos géneros e estilos musicais, mais ou menos vanguardistas, mas ressalvando neles um elevado padrão estético. Apesar de ter feito apresentações da sua obra por várias regiões do país, sobretudo no centro e sul de Portugal continental e na Madeira, foi mais reconhecido como um original compositor em vários países europeus e sul-americanos.
Em suma, a rica obra musical de Ruy Coelho encontra-se injustamente esquecida pois continua inédita, na sua grande maioria, em termos de partituras, de discografia e de exibição em concertos actuais. Daí o papel relevante que estão a assumir as investigações de Edward Luiz Ayres d’ Abreu e as divulgações da Biblioteca Nacional de Portugal e da Orquestra Metropolitana de Lisboa ao proporcionarem, ao público português, a redescoberta das suas valorosas composições.
Os jornais diários, como é seu timbre, fizeram um acompanhamento constante desta magna guerra conhecida como Grande Guerra e depois baptizada pelos historiadores como I Guerra Mundial. Na ausência de outros meios de comunicação social, que cobrissem estes acontecimentos cruciais, a imprensa revelava, então, um papel fundamental na influência da opinião pública.
A intervenção de Portugal na Grande Guerra foi alvo de uma acesa polémica política, pois já em julho de 1914 começaram os primeiros conflitos militares entre as tropas portuguesas e alemãs a norte de Moçambique, o que se reflectiu naturalmente na imprensa do país.
Espelho das divergências relativas à intervenção portuguesa no conflito mundial foi o fosso que se abriu entre os apoiantes, da posição favorável à entrada na guerra, que se encontravam sobretudo no Partido Democrático e no Partido Evolucionista e que contava com o apoio político de figuras proeminentes como Afonso Costa, João Chagas, José Norton de Matos e Bernardim Machado e do outro lado estavam outras forças partidárias e figuras prestigiadas favoráveis à posição de neutralidade como o general e ministro Alfredo Freire de Andrade, Sidónio Pais e Manuel de Brito Camacho. Na verdade, após alguma polémica, a 23 de novembro de 1914, o Congresso da República autoriza Portugal a intervir ao lado dos Aliados.
Algumas correntes, políticas, antagonistas das decisões republicanas ou do Partido Democrático como o Partido Unionista, os socialistas, os monárquicos e os católicos sustentaram uma posição de neutralidade.
No momento da entrada de Portugal na Guerra constituiu-se um movimento de apoio à beligerância portuguesa que ficou conhecido como União Sagrada que reunia o Partido Democrático, o Evolucionista, o Unionista e o Socialista. No entanto, com os desaires militares no decorrer de 1917 e até ao verão de 1918 os Unionistas e os Monárquicos sustiveram uma posição de abandono de Portugal da Guerra como o fez a Rússia.
As posições da imprensa portuguesa foram maioritariamente favoráveis à participação de Portugal na “conflagração internacional”, como na altura os periódicos lhe chamavam. A imprensa republicana, de forte implantação urbana, defendeu na sua maioria a tese intervencionista, enquanto a imprensa monárquica com redutos sobretudo nas províncias susteve a tese de neutralidade. No entanto, não nos esqueçamos que a censura de guerra impediu uma completa liberdade de imprensa, sobretudo nos momentos difíceis da participação portuguesa nos palcos de guerra, entre 1917 e 1918.
A linha editorial da revista Ilustração Portuguesa era claramente a favor da entrada de Portugal na Guerra ao lado dos Aliados, tanto mais que a Alemanha já tinha invadido partes fronteiriças das colónias portuguesas de Angola e de Moçambique.
A 6 de agosto de 1914 O Século dando conta da entrada da Inglaterra na guerra afirmou que Portugal, dada a sua aliança diplomática multissecular, não se poderia manter neutral e deveria auxiliar esta potência, uma vez que a Inglaterra tinha um potencial geoestratégico muito importante para a salvaguarda dos interesses coloniais portugueses. A tese intervencionista é, também, sustentada na defesa do ideal da liberdade dos povos protagonizada pelos Aliados, numa posição assumida pelo Congresso da República.
Em 1917 foi publicada em Paris, durante vários meses, uma revista intitulada Portugal na Guerra, que foi dirigida por Augusto Pina. Esta publicação, quinzenal ilustrada, é uma fonte inesgotável para compreender algumas dificuldades atravessadas pelas tropas portuguesas na Flandres, pois mostra os momentos mais importantes do conflito, bem como o envolvimento dos contingentes portugueses nas operações militares dos Aliados.
O jornal republicano A Capital afirmou, no início da Guerra, o dever de Portugal intervir ao lado dos Aliados e, em particular, da Inglaterra devido aos compromissos diplomáticos e à necessidade de pugnar pela causa da liberdade. Faz-se, concomitantemente, uma crítica aberta das posições favoráveis à neutralidade que são sustentadas por alguns setores da sociedade portuguesa.
Os monárquicos sustentaram a neutralidade na Guerra, talvez por essa ser uma decisão essencialmente republicana que geraria muitos sofrimentos e inegáveis dispêndios financeiros. O jornal “A Monarchia” é boa testemunha deste posicionamento. O jornal “A Lucta” dirigido por Manuel Brito Camacho, órgão do partido Unionista, defendeu também a posição de neutralidade.
De seguida, apresento algumas gravações, designadamente de uma tertúlia em que tive o prazer de participar intitulada Portugal na Grande Guerra realizada na Biblioteca Municipal de Sesimbra no dia 21 de junho de 2014.
Várias personalidades, entre 1909 e 1928, defenderam a tese de que era preciso tornar eficiente o sistema adiministrativo colonial português sob o risco de potências estrangeiras, legitimadas por mandato da Sociedade das Nações com o pretexto de que o país era incapaz de administrar correctamente as suas colónias, se apoderarem das funções de soberania nas colónias portuguesas.
O ex-deputado da 1ª República José Ferreira Dinis em 1928[1] atacou a tendência centralizadora e a homogeneização administrativa impostas pelas Bases Orgânicas da Administração Colonial de 1926 incrementadas pelo ministro João Belo, assegurando que era fundamental conciliar a eficiência do sistema com o princípio republicano de descentralização administrativa.
Deste modo, propôs que fossem implementados os princípios da descentralização e da autonomia financeira das colónias, embora se devesse aplicar, para salvaguardar a eficácia do sistema, o preceito de rigorosa superintendência e de fiscalização pela metrópole.
Censurou a tese oficial que restringiu os poderes dos governos coloniais e impôs um modelo único de estrutura governativa nas diferentes colónias, o que na sua óptica contrariava os princípios de descentralização administrativa e de heterogeneidade das estruturas administrativas coloniais.
Na opinião de José Ferreira Dinis, a descentralização administrativa colonial, embora declarada na Constituição de 1911 e na Lei Orgânica das Colónias de 1914 do ministro Almeida Ribeiro, só teve expressão prática no início dos anos 20, mas acabou por falhar com a eclosão da crise colonial de 1924-1925 por não ter sido aplicado o princípio subsidiário da superintendência e da fiscalização pelo poder metroplitano[2].
De facto, Ferreira Dinis revela um juízo valorativo crítico ao considerar que o defeito não residia na doutrina da 1ª República, mas na falta da sua integral aplicação. Denunciou, assim, que o governo da Ditadura Militar embora fizesse a propaganda dos mesmos princípios, na verdade invertia de forma dissimulada a doutrina colonial que vinha sendo pregada na sociedade portuguesa desde o I Congresso Colonial Nacional em 1901[3].
Em 1922 na altura em que se discutia a Convenção comercial entre a União Sul-Africana e Moçambique, cujo representante português era Alfredo Freire de Andrade, Lourenço Cayolla[4] salientou ser necessário tornar a administração colonial mais eficaz na protecção dos interesses económicos portugueses. Na realidade, nos anos 20 Moçambique passou a depender economicamente em grande escala da África do Sul, porque se estabeleceram relações comerciais estreitas entre estas regiões devido à mão-de-obra Moçambicana a trabalhar no Estado vizinho e à utilização do porto de Lourenço Marques para o escoamento dos produtos sul-africanos.
Assim, Lourenço Cayolla preconiza a tese de que o novo acordo entre a África do Sul e Moçambique deveria ser mais equilibrado na repartição de benefícios, porque a anterior Convenção de 1909 tinha sido amplamente desvantajosa uma vez que permitiu a emigração sazonal ilimitada de indígenas moçambicanos para trabalhar no Traansvaal, saindo prejudicada a agricultura de Moçambique e o patriotismo dos indígenas. Na sua perspectiva, os malefícios deste acordo desigual faziam perigar a soberania portuguesa em Moçambique e daí a necessidade de que a nova negociação estipulasse um tratado mais justo.
Por outras palavras, na sua opinião um dos malefícios da Convenção de 1909 tinha sido a ausência da fixação de um limite ao contingente de indígenas que iam trabalhar para as minas do Rand, o que empobreceu a força produtiva de Moçambique com a perda de mão-de-obra na agricultura, e também tinha contribuído para “desnacionalizar” os indígenas que passaram a apreciar a capacidade de realização dos sul-africanos.
De facto, no seu modo ver este acordo teve para esta colónia consequências negativas, dado que a fuga autorizada da mão-de-obra indígena de Moçambique para o Transvaal provocara o declínio económico da colónia e a perda de patriotismo dos autóctones[5]. Com efeito, Lourenço Cayolla temia que a manter-se um compromisso do género do anterior com as novas negociações de 1922 se poderia encaminhar este território para o abismo da independência, quer fosse pela integração na União Sul-Africana ou pela simples desvinculação da soberania ao Estado português.
Destes autores, e dos que se seguem, subjaz a tese heterodoxa de que era imperioso tornar eficaz o sistema administrativo colonial português, porque as críticas das sumidades internacionais e da opinião pública europeia eram unânimes na reprovação desta gestão colonial. Foram, pois, estas individualidades que alertaram para a necessidade de reformar a estrutura administrativa colonial em aspectos que pensavam ser mais defeituosos. Todos fazendo críticas pontuais à política colonial executada pretendiam contribuir para aperfeiçoar o funcionamento da máquina administrativa de modo a retirar legitimidade às cobiças estrangeiras sobre as colónias portuguesas.
Estes doutrinadores chamavam a atenção para o facto da participação portuguesa na Grande Guerra de 1914-1918 ter salvaguardado a integridade do império colonial português, não obstante novas ameaças externas se fazerem sentir sobre as possessões lusitanas e, por consequência, a simples estratégia da ocupação militar das colónias ser, claramente, insuficiente.
O Professor Gonçalo Santa-Rita descreve num artigo duma publicação da Escola Superior Colonial a conjuntura de ameaças e perigos expansionistas que as colónias portuguesas sofreram de 1884 a 1919 e alerta no sentido de prevenir novas ameaças externas que podiam manifestar-se se não soubessemos salvaguardar os nossos interesses de soberania nas colónias. Exemplificando, afirma que no Congo na década de 80 do século XIX o nosso país foi esbulhado pela Bélgica da margem norte do Zaire, que de 1894 a 1915 a Alemanha colocou em perigo territórios de Moçambique e de Angola e que na época, não obstante as garantias recebidas com a colaboração na vitória na Grande Guerra, potências como a Bélgica e a África do Sul pretendiam anexar áreas do norte e do sul de Angola e do sul de Moçambique.
O general Alfredo Freire de Andrade, chefe da delegação portuguesa que presidia às negociações de 1922 de Moçambique com a África do Sul destinada a actualizar a Convenção de 1909, tinha a opinião heterodoxa de que não se devia impôr à União Sul-Africana um limite máximo de recrutamento de trabalhadores moçambicanos, porque isso poderia levar o país vizinho a exigir nas negociações contrapartidas demasiado elevadas e incitar à fuga ilegal de indígenas[6]. Tem, pois, uma posição contrária à expressa oficialmente pelo titular do poder executivo, o Alto-Comissário Manuel Brito Camacho[7], que considerava importante impôr um limite máximo de recrutamento de trabalhadores moçambicanos, dado que estes eram necessários ao desenvolvimento agrícola de Moçambique. Não se deveria, por isso, dispensar um número ilimitado de trabalhadores à África do Sul.
Freire de Andrade, em correspondência oficial trocada com Brito Camacho nesta data, assume como negociador-chefe do processo destinado à actualização da Convenção com a União Sul-Africana posições políticas concretas e não apenas atitudes doutrinárias. Numa carta que envia a Brito Camacho a 16 de Maio de 1922 constatam-se pontos interessantes da sua opinião em relação ao modo de administrar Moçambique[8]. Em primeiro lugar, reputava que o Banco Nacional Ultramarino devia ajudar a regularizar a situação monetária em Moçambique, mas não deveria introduzir na circulação fiduciária do território notas da União Sul-Africana. Em segundo lugar, considerava que era desejável pedir um empréstimo em Londres para a colónia, fazendo crer ao país vizinho que o importante era este dinheiro emprestado e não tanto as verbas que entravam da União. Em terceiro lugar, concordava com Brito Camacho que a emigração indígena para as minas do Rand devia provir dos distritos do Sul do Save[9], uma vez que nesta região a mão-de-obra era menos necessária à produção agrícola.
Por conseguinte, constata-se que os debates da eficácia do sistema colonial português perpassam por estas primeiras décadas do século XX, uma vez que o aparelho Estadual estava a ser montado. O exemplo de Moçambique é bem emblemático das problemáticas que foram debatidas.
[1] José de Oliveira Ferreira Dinis, “A evolução da política colonial portuguesa”, in Boletim da Agência Geral das Colónias, nº 34, Abril de 1928, pp. 3-13.
[2] As seguintes citações fundamentam estas análises: “(...) Perfeitas que fossem [ as leis coloniais ], não podiam elas dar-nos resultados apreciáveis, com a crise que as colónias atravessam, quando em execução, e pela maneira como a metrópole se desinteressou da fiscalização que a lei lhe impunha. A metrópole, representada pelo poder executivo ou pelo Ministério das colónias, não exerceu, durante a sua vigência, a menor fiscalização, nem orientou como igualmente lhe competia a política colonial. (...) No entanto, as bases orgânicas de 2 de Outubro de 1926 não estão dentro daqueles princípios, excedem-nos e atraiçoamo-nos, não realizando o que eles exprimem. Excedem e atraiçoam o objectivo de uma maior eficácia na superintendência e fiscalização da metrópole, porque substituíram a superintendência e a fiscalização, por uma intervenção directa que tolhe os movimentos das colónias e embaraça a acção dos governadores, absolutamente contrária aos princípios de descentralização administrativa e autonomia financeira. (...)” Ibidem, pp. 10 e 12.
[3] Por outras palavras, Ferreira Dinis criticou a reforma orgânica de 1926 de proclamar a descentralização administrativa colonial e de na prática através dos mecanismos institucionais se consagrar um reforço da centralização e da homogeneização da estrutura administrativa colonial.
[4] Lourenço Cayolla, “Moçambique e a África do Sul”, in Revista Colonial, Ano X, nº 9, Março de 1922, pp. 263-264.
[5] Estas afirmações podem inferir-se das seguintes passagens deste artigo de Lourenço Cayolla: “(...) Bastam estas palavras para se ver que (...) ainda nos sugeitavamos em 1909 a novas imposições e concordavamos com novas clausulas que feriam profundamente os nossos interesses e direitos. (...) Devido às facilidades que mantivemos para a emigração dos indígenas, esta, a não ser com uma ligeira inflexão nos anos da guerra, não deixou de seguir uma linha ascensional, do que tem resultado a diminuição e a degenerescência duma população que tanto precisavamos desenvolver para assegurarmos a prosperidade daqueles territórios e evitar a desnacionalização daqueles povos, desnacionalização agravada ainda pelas alterações das suas instituições, usos e práticas tradicionais e que já se reflecte gravemente na sua atitude para com os representantes da mãe-pátria. (...) Precisamos ainda acentuar mais nitidamente as desastrosas consequências que desse abuso nos tem resultado e referimo-nos a outras cláusulas da Convenção que se vai substituir, no desejo de acautelarmos os nossos representantes para que estes evitem a sua repetição. (...)” Ibidem, p. 263.
[6]Documentos trocados entre o general Freire de Andrade e o Alto Comissário da República Brito Camacho, datados de 17 de Abril a 21 de Julho de 1922, Confidencial, 1923, 44 p.. Estes documentos tratam-se de uma avolumada correspondência entre Freire de Andrade e o Alto Comissário de Moçambique Brito Camacho referentes ao processo de negociação com a África do Sul com vista a actualizar a Convenção que tinha sido estabelecida em 1909. Estes textos servem para dilucidar as posições administrativas que o lúcido Freire de Andrade aconselhava ao governante Brito Camacho, tanto mais que ele já tinha sido governador geral de Moçambique e conhecia em profundidade a sua realidade empírica.
[7] Brito Camacho temia as ambições imperialistas do General Smuths, primeiro-ministro da União Sul-Africana, cujas expectativas consistiam em anexar territórios moçambicanos. Na renegociação da Convenção foram tratados essencialmente dois assuntos: o contingente de mão-de-obra indígena fornecido às minas do Rand e a pretensão sul-africana de arrendar o porto de Lourenço Marques e a linha férrea de Ressano Garcia. Ele encarava as ambições hegemónicas da União sobre os territórios vizinhos, designadamente Moçambique, como uma ameaça real à integridade da colónia, daí as cautelas que demonstrou em aceitar arrendar essas infra-estruturas de transporte à soberania da União, quiçá temendo que isso pudesse suscitar o início dum processo de transição da soberania sobre esses territórios. Todavia, outro dos interesses portugueses nesta negociação era o de regular a emigração sazonal de indígenas para a África do Sul de modo a não prejudicar os lucros económicos da colónia, portanto talvez as intenções planeadas por Camacho fossem diminuir o volume emigratório ou aumentar as contrapartidas financeiras dadas pela União a Moçambique. ( in João Fernandes, Brito Camacho – algumas reflexões acerca da sua obra colonial, Lisboa, Edição da Seara Nova, 1944, pp. 26-27 ).
[8] Freire de Andrade não estava de acordo neste momento com a “expropriação” ou a venda do Caminho de Ferro e do Porto de Lourenço Marques à África do Sul, como o aspirava o general Smuts, mas contudo julgava conveniente investir no seu aperfeiçoamento e na sua dinamização desde que esta suscitasse algumas contrapartidas económicas, que tornassem rentáveis os investimentos e as melhorias a implementar.
[9] É interessante salientar que Brito Camacho se opôs tenazmente às ambições anexionistas da União Sul-Africana sobre o sul de Moçambique, daí as negociações sobre a Convenção nesta data terem sido infrutíferas, pois só se chegou a acordo em 1933. Por seu turno, o governante da potência vizinha, general Smuths, achava inevitável que, mais cedo ou mais tarde, Moçambique se tornaria independente de Portugal, porque esta sujeição política atrasava o seu desenvolvimento. Camacho considerava esta argumentação sofística e inaceitáveis as pretensões da União, uma vez que por detrás escondiam ambições futuras mais vastas. Deste modo, opinou que se devia acabar com a exportação de trabalhadores para o Transvaal rentabilizando-os antes na produção agrícola moçambicana. “(...) O general Smuths pretendia o arrendamento do porto de Lourenço Marques e da linha de Ressano Garcia, por noventa e nove anos, e de resto nada lhe interessava a mão de obra indígena a fornecermos ao Rand. (...) Quando nos convencermos de que vale mais trabalhar a terra que alugar trabalhadores; (...) quando assim fôr, nem sequer o tráfego do Transvaal nos fará falta, porque viveremos muito bem sem ele. (...)” ( in João Fernandes, Brito Camacho – algumas reflexões acerca da sua obra colonial, Lisboa, Edição Seara Nova, 1944, pp. 26,27 e 31 ).
Livro de Manuel de Brito Camacho (Lisboa 1923) - Exposição Colonial Portuguesa (Porto 1934)
Analisando os quadros cronológicos verificamos que o grande debate das teses coloniais portuguesas decorreu entre 1919 e 1931 na época em que se fazia sentir uma profunda crise administrativa nas colónias de Angola e de Moçambique, em que se complexificavam as instituições administrativas coloniais e em que existia uma notória instabilidade política na 1ª República e mesmo na Ditadura Militar, o que tornou possível uma discussão muito ampla e uma grande multiplicidade de teses propostas para fazer funcionar a máquina administrativa colonial em construção. Podemos detetar nas cronologias quatro grandes fases do aparecimento das teses coloniais.
1ª Fase - De 1919 a 1923, quando se concretiza o regime dos Altos Comissários, manifestam-se sobretudo teses descentralizadoras moderadas na metrópole que visavam sugerir aperfeiçoamentos pontuais do sistema administrativo colonial e teses anticoloniais parciais ou totais que fervilharam, em particular, em Moçambique e em Angola. Estas teses anticoloniais foram defendidas por colonos empreendedores descontentes com as políticas laborais protecionistas das populações nativas promovidas por José Maria Norton de Matos e Manuel de Brito Camacho.
2ª Fase - No ano de 1924 tornou-se aguda a crise financeira em Angola e em Moçambique, o que deu lugar à destituição destes dois Altos Comissários, dando origem à prevalência conjuntural da tese heterodoxa centralizadora de fiscalização da estrutura administrativa colonial, pois os seus defensores pensavam que só assim se conseguiriam evitar novas situações de rutura financeira. Esta tese foi especialmente ventilada no II Congresso Colonial Nacional realizado na Sociedade de Geografia de Lisboa.
3ª Fase – De 1925 a 1930 foram predominantes as teses descentralizadoras radicais ou descentralizadoras técnicas, porque começou a haver descrença no princípio da descentralização moderada que levará à mudança oficial para o princípio centralizador com a política colonial do comandante João Belo durante o início da Ditadura Militar. Assim, aquelas teses extremistas visaram aprofundar a operacionalização do mecanismo descentralizador no sentido de salvar este princípio das críticas que sofrera desde a crise colonial Angolana. Também, neste período, foi prevalecente no sul de Moçambique a tese anticolonial pan-africanista devido à pressão das ambições hegemónicas geo-estratégicas sul-africanas do carismático general Smuts.
4ª Fase – De 1930 a 1945 foi dominante a tese ortodoxa imperial centralizadora proposta pelo Acto Colonial em 1930 e o debate doutrinário restringiu-se praticamente ao III Congresso Colonial Nacional e a uma ou outra tese que passaram à revelia do controlo do regime autoritário. Com a institucionalização do Estado Novo em 1932 as instituições repressivas do regime e a inculcação da doutrina do regime através de fortes meios propagandísticos obstaculizaram a fácil circulação de teses coloniais heterodoxas.
Em 1930-31 duas grandes figuras do regime Republicano atacaram o espírito centralizador daquele diploma. Com efeito, Bernardino Machado, ex-presidente da República, escreveu em 1930 um opúsculo afirmando que se consagrava uma “inconstitucional escravização das colónias” e José Maria Norton de Matos escrevendo no Primeiro de janeiro propôs em 1931 a tese heterodoxa de uma descentralização federalista para o império colonial português que compatibilizasse a integridade da soberania portuguesa no ultramar com o princípio da transferência de competências para os orgãos coloniais.
Contudo, foi talvez em Moçambique de 1930 a 1945 que se manifestou a principal tese colonial heterodoxa, anticolonial pan-africanista que defendia a integração económica ou mesmo política de Moçambique na União Sul-Africana, acarinhada por alguns grupos de colonos que mantinham relações económico-comerciais com o país vizinho. De facto, o impacto que esta tese heterodoxa teve nesta colónia resultou da influência do projeto ambicioso de Smuts que pretendia que se formasse uma União Pan-Africana que ligasse economicamente os Estados livres do sul de Àfrica, daí o apoio que receberam as teses heterodoxas que pugnavam pela libertação de Moçambique da soberania portuguesa.
Por outro lado, um outro fator explica a vitalidade destas teses heterodoxas anticoloniais que circularam em Moçambique, pois o facto de existir uma mentalidade segregacionista na África do Sul[1] encorajou os colonos capitalistas a pretenderem associar-se ao país vizinho e a desvincular-se dos critérios humanistas seguidos pela metrópole portuguesa na relação laboral com os autóctones[2].
[1] Não nos podemos esquecer que este segregacionismo larvar perante os negros que existia na sociedade sul-africana veio a desembocar na criação do regime do “Apparthaid” em 1948.
[2] Convém também lembrar que o auge da circulação das teses anticoloniais ( emancipalista e pan-africanista ) sucederam entre 1922 e 1924 entre grupos de colonos com interesses económicos em Angola e em Moçambique, na altura em que os Altos Comissários Norton de Matos e Brito Camacho procuraram proteger os autóctones dos abusos laborais dos patrões brancos.