Crónicas que tratam temas da cultura, da literatura, da política, da sociedade portuguesa e das realidades actuais do mundo em que vivemos. Em outros textos mais curtos farei considerações sobre temas de grande actualidade.
Crónicas que tratam temas da cultura, da literatura, da política, da sociedade portuguesa e das realidades actuais do mundo em que vivemos. Em outros textos mais curtos farei considerações sobre temas de grande actualidade.
Em 1930 depois do golpe de Estado angolano liderado por Almeida d’ Eça contra Salazar e antes da promulgação do Acto Colonial, no início de Maio no III Congresso ColonialNacional,proclama-se a tese descentralizadora vertical, ou seja, afirma-se a necessidade da distribuição de competências administrativas coloniais chegar aos governadores de província e de distrito. Na verdade, esta tese preocupava-se com o descontentamento dos colonos que tinham aspirações autonomistas e, concomitantemente, manifestava uma crítica silenciosa ao espírito centralista deste diploma em discussão na sociedade portuguesa à época.
Por exemplo, os professores universitários Manuel Rodrigues, José Gonçalo Santa-Rita e alguns membros da Sociedade de Geografia defenderam a ideia que se devia desconcentrar poderes na administração colonial, alargando as competências aos administradores regionais ( governadores de província e de distrito ), mas não efectuar uma autêntica descentralização, porque as colónias portuguesas eram de exploração e não de povoamento.
Segundo a opinião de José Santa-Rita, expressa em 1930, o processo de descentralização administrativo estava inconcluído, porque, a seu ver, eram insuficientes os poderes delegados nos governadores subalternos, sendo assim necessário disseminar também poderes pelos pequenos administradores regionais, visto que as competências administrativas tinham sido sobretudo transferidas para os governadores-gerais ou para os Alto-Comissários.
O professor doutor Manuel Rodrigues, docente da cadeira de Administração Colonial, na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, no ano lectivo de 1919-1920, expressou uma posição política heterodoxa, do ponto de vista formal e não de conteúdo, ao preconizar que nas colónias portuguesas se devia desconcentrar poderes na administração colonial, atribuindo poder decisório a funcionários de vários graus hierárquicos enviados pelo governo central para as colónias, mas não descentralizá-la, já que isto implicaria delegar em assembleias locais os negócios coloniais[1]. Argumentava que como as colónias portuguesas eram de exploração e os colonos constituíam uma fatia social minoritária da população seria aconselhável a desconcentração de poderes administrativos à descentralização. O seu mérito para o debate, da altura, foi apenas o de acrescentar esta pequena “nuance” conceptual[2].
O professor da Escola Superior Colonial José Santa-Rita aconselhava em intervenção no III Congresso Colonial Nacional em 1930[3] a necessidade de reestruturar o sistema administrativo colonial fundamentando que o processo descentralizador estava inacabado. Assegurava categoricamente que as ineficácias administrativas coloniais que tinham provocado algumas crises no passado recente resultavam deste facto, pois do seu ponto de vista a delegação/desconcentração administrativa de competências não chegava aos governadores subalternos ( de província e de distrito ), dado que eram juridicamente encarados pelos governadores-gerais como burocratas e não como micro-decisores. Portanto, parecia- lhe que a transmissão de poderes da metrópole, decorrente da lógica descentralizadora, deveria implicar também a disseminação de atribuições aos pequenos administradores regionais das colónias[4].
Nuno Sotto Mayor Ferrão
[1] Na acepção do académico Manuel Rodrigues descentralizar significava, pois, conferir um alto grau de autonomia administrativa, o que nos ajuda a compreender a diversidade de significações que o conceito de descentralização da administração colonial teve neste período de estruturação do Estado Colonial consoante a posição ideológica do doutrinador fosse protagonizada por um cientista ou por um político.
[2] À semelhança de outros cientistas da época Manuel Rodrigues dividiu os sistemas coloniais em três tipos ( regime de sujeição, regime de assimilação e regime de autonomia ). Num preciosismo académico distinguiu os métodos de desconcentração e de descentralização administrativa, definindo um como o mecanismo de atribuir as decisões a funcionários enviados pelo poder central para as colónias, enquanto o outro consistia em delegar em assembleias locais os negócios coloniais. A sua doutrina sustentava que nas colónias de povoamento, em que os colonos fossem quantitativamente maioritários em relação aos indígenas, se poderia privilegiar o sistema descentralizador; mas que nas colónias de exploração em que os colonos eram minoritários, se devia desconcentrar poderes administrativos. O que significa que, para as colónias portuguesas na época, o professor Manuel Rodrigues defendia a adopção deste segundo sistema. A prova, aliás, de que esta asserção doutrinária vingou foi a promulgação do regime dos Altos Comissários de Angola e de Moçambique que vigorou de 1920 a 1930 como mecanismo de descentralização da administração colonial.
[3] José Gonçalo da Costa Santa-Rita, “Grande divisão administrativa das Colónias”, in 3º Congresso Colonial Nacional, Lisboa, Edição da Sociedade de Geografia de Lisboa, 1934, 6 p..
[4] O professor José Santa-Rita considerava que a descentralização não tinha descido toda a estrutura administrativa até à base institucional, tendo havido excessivos poderes conferidos aos governadores-gerais e aos Altos Comissários, mas não aos governadores subalternos das províncias e dos distritos. Salientou que era preciso reestruturar ao nível da divisão administrativa das colónias a compartimentação de Angola, que estava seccionada em duas grandes zonas com centros administrativos em Luanda e em Mossamedes, porque na sua óptica as diferenças geográficas e económicas entre estas regiões não seriam suficientes para justificar esta partilha. Contudo, quanto a Moçambique concordava com a sua divisão administrativa em duas grandes zonas, a norte na região de Tete e a sul na região de Lourenço Marques, porque razões de diferenciação geográficas e económicas a fundamentavam. Cf. Idem, Ibidem, 6 p..
Em janeiro de 1930Francisco Cunha Leal, como Governador do Banco de Angola, ventilou a tese descentralizadora monetarista como desejável para as colónias. Na verdade, recomendou que se criassem diversos bancos coloniais que recebessem a competência de emitir moeda própria. Esta tese técnica foi defendida dentro do espírito republicano, da necessidade da autonomia financeira das colónias, mas resultou da conjuntura deficitária das contas de Angola. Foi sustentada numa polémica pública que Cunha Leal travou com Salazar, na altura ministro das Finanças e ministro interino das Colónias.
Na opinião de Cunha Leal, o princípio de autonomia financeira devia ser respeitado, mas devia estar dependente de uma autoridade financeira e não exclusivamente dum organismo político. Esta tese descentralizadora monetarista, do seu ponto de vista, era o meio de evitar crises financeiras, como as que tinham ocorrido em meados dos anos 20 em Angola e em Moçambique, sem se recorrer ao critério da subordinação da política colonial ao crivo do ministro das finanças, como pretendia Salazar, numa lógica de equilíbrio orçamental e de centralização absoluta.
Por outras palavras, Cunha Leal defendeu a tese heterodoxa, contra a tese oficial de Salazar[1], de que deveriam ser criados outros bancos coloniais com capacidade de emitir moeda própria, sediados nas colónias[2], com o objetivo de se superar o sistema monetário unitário centrado no Banco Nacional Ultramarino, de forma a poder-se cumprir o princípio da autonomia financeira e monetária para que as autoridades locais pudessem pedir com liberdade empréstimos ao estrangeiro e lançar novas moedas.
Esta tese descentralizadora monetarista pressupunha critérios diferentes de emissão de moedas em função dos distintos sistemas monetários e, também, que as crises conjunturais de uma colónia não fossem pagas por outras, porque isto, a seu ver, seria inevitável no sistema de banco único emissor de moeda. Com efeito, este instrumento de política monetária que defendeu permitiria, do seu ponto de vista, a independência financeira ultramarina e opunha-se à lógica centralista e subjugadora das contas coloniais prevalecente no espírito do ministro das finanças. Cunha Leal acusou Salazar de o perseguir à custa desta polémica e da sua política financeira ser uma traição ao espírito republicano. Para evidenciar a veracidade, desta polémica colonial, atentemos nas seguintes passagens:
“(...) Enfrentaram-se então as duas teses da conveniência de haver um só, ou mais do que um banco emissor para as colónias portuguesas ... Entendeu-se que não convinha abranger, como até essa data, um único organismo de emissão para todo o extensissimo domínio ultramarino, colónias de tão diferentes sistemas monetários (...) Entendeu-se também que era difícil, senão impossível reunir na direção desse Banco único as capacidades diretivas suficientes para atender à intrincada complexidade de interesses tão diversos, espalhados a esmo pelas sete partidas do mundo. (...) Na existência destes saldos, que teriam de ser transferidos pelo Banco Ultramarino, na hipótese da sua liquidação, encontrou Quirino, em favor da manutenção do privilégio emissor deste, um outro argumento que logo o Dr. Oliveira Salazar repetiu com fidelidade de discípulo sem autonomia mental. (...)”[3]
Nesta linha de análise se inseriu um ensaio de intervenção cívica de Cunha Leal[4], escrito a propósito da polémica relativa às diretrizes económicas coloniais tida entre Salazar, ministro das finanças, e Filomeno da Câmara, governador geral de Angola, em fevereiro e março de 1930. O verrinoso orador Cunha Leal fustigou a política financeira colonial de Salazar ao discordar do critério da formulação de orçamentos para cada uma das colónias, dado que esta realidade tinha conduzido a diminutos investimentos no fomento económico ultramarino.
Em alternativa, pensava que a metrópole deveria subsidiar as despesas de investimento das colónias, contestando frontalmente a estratégia financeira de Salazar que preceituava o equilíbrio orçamental e a poupança ao nível das despesas como fórmulas correctas de saneamentofinanceiro nacional. Esta conceção de austeridade financeira explica que Cunha Leal tenha depreciado esta orientação governativa que passava por eliminar os défices dos orçamentos coloniais com evidente prejuízo das verbas de fomento económico. Neste sentido, tomou posição nesta polémica afirmando que Filomeno da Câmara não conseguiu cumprir o preceito de equilíbrio orçamental previsto para Angola, porque as fontes de receitas escasseavam e as necessidades de despesas de investimento eram avultadas.
Por conseguinte, considerou que só seria aceitável o critério do equilíbrio orçamental nas colónias se a metrópole injetasse subsídios destinados a despesas de investimento e se isto fosse compaginável com uma descentralização administrativa monetarista, isto é, com liberdade de política monetária colonial.
[1] A tese oficial sustentada por Salazar consistia na noção de que era preferível que existisse um único banco emissor de moeda, o Banco Nacional Ultramarino, o que prevaleceu durante o Estado Novo, porque esta seria a solução economicamente menos dispendiosa e asseguraria um melhor controlo do poder central em relação às contas coloniais.
[2] Franscico Cunha Leal, História do conflito entre um ministro das finanças e um governador do banco de Angola, Lisboa, Edição do Autor, 1930, pp. 67,91 e 94.
[3] Idem, Ibidem, pp. 67 e 91. [ Continuação da citação do texto :] “(...) pergunto à consciência dos que conhecem as colónias se é razoável, se é honesto amarrar, durante 30 anos sem recurso o futuro de quase todo o nosso ultramar às vicissitudes da vida dum Banco. Faz o dr. Oliveira Salazar, porventura uma pálida ideia do que pode ser ao fim desse período, a situação das colónias portuguesas que, de ano para ano sofrem transformações colossais ? (...)” ( Ibidem, p. 94 )
[4] Francisco Cunha Leal, Oliveira Salazar, Filomeno da Câmara e o Império Colonial Português, Lisboa, Edição do Autor, 1930, 180 p.. Cunha Leal neste livro escrito em abril-maio de 1930 satirizou a atitude política de Salazar de dar hegemonia ao critério financeiro e descreveu a sua passagem pelo Ministério das Colónias. Criticou a linha oficial colonial encetada por este governante ao impôr também às colónias a eliminiação dos seus défices orçamentais, porque pensava que essa contenção financeira poria em causa a necessidade de mais receitas para fundos de investimento no desenvolvimento das economias coloniais, em particular em Angola. Depreende-se das suas reflexões políticas, críticas do “statuo quo” ditatorial e da filosofia colonial atinente, que ansiava por um golpe popular que depusesse o ditador das Finanças e permitisse instaurar uma democracia dinâmica. Para compreender a polémica política entre Salazar e Filomeno da Câmara este documento ensaístico é essencial. Resumindo o teor da controvérsia: o autor afirma que este apresentou como Alto Comissário de Angola àquele um orçamento equilibrado, sem todavia o cumprir na prática por ter menos receitas e mais despesas que as orçamentadas. Deste modo, concluiu ser inaceitável a ideia da existência de orçamentos separados para as colónias e para a metrópole, pois reputava a responsabilidade da metrópole subvencionar as grandes colónias de Angola e de Moçambique, visto que as suas necessidades de crescimento e os seus recursos eram insuficientes para garantir os indispensáveis progressos económicos.
A tese descentralizadora federalista surgiu no início da década de 1930 pela conjugação de vários factores do contexto histórico português. Esta solução administrativa colonial significava uma tentativa de compromisso político entre a crítica frontal ao excessivo centralismo consagrado no Acto Colonial e a aceitação de que a descentralização dos Altos Comissários fora também exagerada.
Deste modo, o mecanismo da centralização fiscalizadora salvaguardaria o risco da perda da soberania portuguesa face a cobiças coloniais estrangeiras e a pretensões emancipalistas dos colonos, mas, concomitantemente, permitia a implementação de uma descentralização moderada, satisfatória para os princípios da comunidade internacional e para a tradição ideológica do republicanismo português.
O grande ideológo desta tese foi o general José Maria Norton de Matos que a formulou, com base na sua experiência de Alto Comissário de Angola[1] e na sua percepção crítica da estratégia centralista do Acto Colonial, que a divulgou primeiramente no jornal Primeiro de Janeiro em 1931. Assim, na sua perspectiva heterodoxa fazia sentido erguer um sistema colonial federalista que compabilizasse uma moderada descentralização administrativa com a garantia da unidade de soberania nacional entre a metrópole e as colónias[2].
Com efeito, sem defender uma descentralização administrativa colonial radical censurou a dissimulada centralização político-administrativa e o conceito dualitário, de império colonial e de metrópole, estabelecido no Acto Colonial. Revela, de forma subjacente à sua argumentação técnica, uma posição colonial heterodoxa ao sustentar que deveria existir uma unidade nacional entre a metrópole e as colónias e que conviria reflectir numa política indígena assimilacionista em que os nativos do ultramar deveriam receber progressivamente o estatuto de cidadania. Por consequência, distanciou-se do critério segregacionista em vigor desde 1929 consignado durante a Ditadura Militar ao ser promulgado o Estatuto Político, Civil e Criminal dos Indígenas de Angola e de Moçambique.
Pensou que era necessário concretizar uma unidade económica entre a metrópole e as colónias que garantisse o fim das barreiras alfandegárias entre as diversas parcelas do império português. Teve, pois, uma estratégia moderada ao propôr que se consubstanciasse uma unidade de acção política entre a metrópole e as colónias que seria preservada pela metrópole como centro dum Estado Federal, aglutinador de todo o império português, pois do seu ponto de vista os limites da pátria portuguesa compreendiam as fronteiras ultramarinas. Por outras palavras, condenava a doutrina colonial oficial centralista e a lógica económica do “pacto colonial”, mas também divergia do modelo descentralizador de “self-government” do império britânico. Assim, a sua tese descentralizadora federalista inspirou-se no modelo administrativo colonial francês.
Na seguintes citação nota-se essa crítica à política do Acto Colonial e a concepção alternativa que propôs:
“(...) não lhes [ às colónias ] será permitido promulgar medidas que afectem directa ou inderectamente a vida das outras colónias ou da metrópole ou que prejudiquem as relações das colónias entre si e as de todas elas com a metrópole, porque medidas dessa natureza poderiam destruir a unidade nacional. Mas, apesar destas restrições que a Nação tem de impôr, o exercício por parte dela, da unidade de acção não deverá destruir as autonomias administrativas e financeiras da metrópole e dos territórios ultramarinos. Temos de voltar, com pequenas alterações, às leis de orgânica colonial, que o Parlamento da República votou. (...)”[3].
Em suma, esta tese descentralizadora federalista conciliando a descentralização administrativa colonial com um Estado unificador do império português representou uma reacção ideológica à política centralista de António de Oliveira Salazar e, ao mesmo tempo, uma resposta às ameaças internas e externas que pairavam sobre a soberania colonial portuguesa.
[2] José Maria Norton de Matos, “ A questão colonial”, in Boletim da Agência Geral das Colónias, ano 7º, Julho de 1931, nº 73, pp. 262-274. Das seguintes passagens se depreende esta tese descentralizadora federalista: “(...) A unidade nacional e as consequentes unidades territorial, económica e de acção acabarão de vez com o erro funesto do ‘pacto colonial’, porque fatalmente farão desaparecer como ficou formulado, quaisquer interesses exclusivos de uma porção da nação que prejudiquem o integral e harmónico desenvolvimento do conjunto, isto é, da nação inteira e una. Desta forma, não se seguirá o caminho trilhado pela Inglaterra que acabou, é certo, com os efeitos do pacto colonial, mas sendo obrigada para o conseguir a separar em vez de unir, a construir uma instável comunidade de nações (...) As províncias ultramarinas, como as da metrópole, não poderão realizar empréstimos no estrangeiro sem o consentimento do Governo Central, não terão liberdade plena no que respeita a regimes monetários, alfandegários, etc, porque a isso se opõe a unidade económica; não terão completa autonomia no que se refere a concessões de terrenos, de portos de caminhos de ferro, direitos mineiros ou outros, porque tais concessões podem contrariar a unidade territorial; (...)” Ibidem, pp. 262 e 264.
Retrato do Professor Doutor Adriano Moreira que figura na galeria dos antigos Presidentes da Sociedade de Geografia de Lisboa
Adriano José Alves Moreira foi nomeado por António de Oliveira Salazar em 1961 para a pasta do Ultramar. Teve neste cargo uma intensa actividade legislativa em que se destacaram o Código do Trabalho Rural e a extinção do Estatuto do Indigenato e visitou os territórios ultramarinos com uma grande aclamação popular[1]. Em fins de 1962 defendendo a autonomia progressiva das colónias entra em divergência profunda com o Presidente do Conselho de Ministros que não aceita a continuação desta sua estratégia reformista da política ultramarina por achar que isso o colocava em causa, tendo Adriano Moreira, numa destas reuniões desavindas, dito a António de Oliveira Salazar: “Acaba de mudar de ministro”[2].
No contexto da guerra colonial que se desencadeou em Angola em 1961 Adriano Moreira foi obrigado pela força das circunstâncias históricas e das suas convicções a revogar o Estatuto do Indigenato e a atribuir a cidadania a todos os habitantes do império colonial português. Se tivermos em conta que em 1953 com a Carta Orgânica das Províncias Ultramarinas se previa a transitoriedade do Estatuto do Indigenato, que o sistema luso-tropicalista apontava para o sentido da igualdade na troca das relações culturais entre colonizador português e o colonizado e que o agudizar das tensões entre colonos e autóctones impunha uma medida que contribuisse para a pacificação do espírito insubmisso dos nativos africanos compreende-se a oportunidade desta decisão política.
Em suma, esta medida pode equiparar-se à resolução do Imperador Caracala no Império Romano em 212 d.C. ao decidir integrar no estatuto de cidadania todos os habitantes livres do império para apaziguar revoltas em algumas províncias mais contestatárias da autoridade romana. Assim, uma vez que já estava consagrado o princípio da tendência do igual tratamento a dar a colonizadores e a colonizados como ideologia do luso-tropicalismo e a lei geral a explicitava impunha-se perante a premência dos acontecimentos de sublevação nas províncias Africanas a tomada desta decisão.
Nuno Sotto Mayor Ferrão
[1] César Oliveira, “Adriano José Alves Moreira”, in Dicionário de História do Estado Novo,vol. II, Lisboa, Editora Bertrand, 1996, pp. 628-629.
Comandante João Belo, ministro das colónias (1926-1928)
Os propagandistas da tese da autonomia administrativa colonial apareceram, sobretudo, no momento em que se dava uma reviravolta centralista da administração colonial com a política do ministro João Belo e posteriormente do Acto Colonial, nos anos de 1926 a 1930. Consideravam os adeptos da tese autonomista que o fracasso do sistema descentralizador da administração colonial portuguesa se ficava a dever à insuficiente distribuição de competências junto dos orgãos locais. Como os seus defensores eram colonos ou homens de grande vivência colonial entendiam que para resolver os problemas específicos dos teritórios ultramarinos seria necessário uma grande proximidade entre os decisores e as sociedades coloniais[1]. Daí a contestação que fizeram ao modelo centralista e ao modelo dos Altos Comissários avaliado como uma minguada descentralização e a opção que defenderam inspirava-se no modelo administrativo imperial britânico.
Uma das mais interessantes teses de reformulação do sistema administrativo colonial português foi a sugestão do engenheiro Virgílio de Lemos, em 1930 em pleno debate do Acto Colonial[2], ao defender a ideia autonómica duma administração ultramarina com Parlamentos coloniais representativos das populações locais, a exemplo do que acontecia com o modelo administrativo imperial britânico de “self-government”. Achava, também, que os governadores se deveriam tornar cargos de nomeação administrativa com períodos pré-definidos de desempenho, o que na sua aceção garantiria uma maior independência face ao poder metropolitano[3].
Na verdade, este autor considera que Portugal nunca concedeu uma real autonomia ao sistema de administração colonial, nem mesmo com a institucionalização do regime dos Altos Comissários, dado que os poderes de decisão foram atribuídos a altos funcionários representantes do governo central e não às populações das colónias[4]. Nesta lógica de raciocínio, propôs que se seguisse o exemplo do sistema inglês, no qual cada colónia dispunha de legislação própria elaborada pelos representantes diretos das populações locais, o que constituiria um mecanismo institucional mais democrático. Assim, fez a distinção entre uma verdadeira e uma falsa autonomia, afirmando que uma era proveniente do poder dado às populações das colónias, enquanto a outra era oriunda dum poder concedido aos governadores, sendo por isso uma descentralização imposta de cima para baixo.
Segundo esta convicção ideológica, deste engenheiro colonial, Portugal deveria seguir o exemplo do modelo administrativo britânico, porque este tipo de autonomia colonial lhe traria as seguintes vantagens: satisfazer-se-iam melhor as aspirações das populações coloniais dado poderem fazer-se ouvir na Assembleia legislativa; os projetos de fomento far-se-iam em função das necessidades sentidas pelas colónias e não mediante os interesses impostos pelo governo central; e a estrutura administrativa colonial estaria mais imunizada às crises políticas da metrópole que tanto afetaram o império português na década de 1920.
Em resumo, o seu parecer foi no sentido de que às colónias fosse dada uma efetiva autonomia, e não de ordem fictícia como a que tinha existido com o regime dos Altos Comissários, de forma que os poderes administrativos decorressem da vontade das forças económicas vivas das colónias e não do funcionalismo público dependente das orientações de Lisboa. É nesta medida que propôs que se criasse, para cada colónia que tivesse requisitos mínimos, uma Assembleia que representasse os interesses sociais da colónia com a faculdade de fazer leis, embora estas pudessem ser vetadas pelo governo central. Por outro lado, sugeriu igualmente que o governador tivesse uma função meramente executiva e fosse eleito por prazos fixos, o que a seu ver diminuiria as intromissões do poder central na administração local das colónias.
Neste contexto, Vírgilio de Lemos ajuizou que o sistema português de administração colonial era uma solução mista, das tendências centralizadora e descentralizadora, marcada pela distribuição repartida de poderes entre o governador e o governo central. Estas análises interpretativas podem ser inferidas das seguintes passagens deste seu texto lido no III Congresso Colonial Nacional:
“(...) Cuidamos que poderia ser dada autonomia real a algumas das nossas colónias ( adiante mencionaremos as vantagens que, em nosso entender, daí adviriam ). Os Conselhos legislativos passariam a Assembleias legislativas e o governo, do qual um governador seria o responsável, não poderia comparecer na Assembleia, e desempenharia o seu cargo por prazos limitados. (...) No que respeita à essência da autonomia propriamente dita, deviamos equiparar a nossa Província de Moçambique à Rhodesia do Sul ( população 35 000 europeus, 900 000 indígenas ) cujas dimensões e proporções são comparáveis às daquela nossa grande colónia. A Rhodésia do Sul é realmente autónoma. Faz como quer as suas próprias leis, muito embora estas possam ser rejeitadas pelo governo do Império. (...) “.[5].
Alguns periódicos coloniais, em particular em Moçambique, foram porta-vozes das teses da autonomia administrativa colonial. Numa crónica de 13 de fevereiro de 1929 do jornal O Colonial[6] sustenta-se, em critica aberta o centralismo colonial da Ditadura Militar, a necessidade de dotar mecanismos de autonomia colonial por meio da transferência de poderes para representantes diretos das sociedades coloniais, rejeitando contudo que no futuro Moçambique se pudesse tornar independente.
Afirmava o cronista a necessidade de implementar uma descentralização administrativa completa, diferente da instaurada com o regime dos Altos Comissários, que teria de passar pela atribuição de competências a representantes das sociedades coloniais, ao invés de fazer-se uma mitigada ou falsa descentralização através da delegação de poderes da metrópole nos governadores ou em outros representantes do poder central, porquanto na opinião do jornalista este mecanismo correspondia a uma “escravização” das colónias aos interesses da metrópole[7]. Deste ponto de vista, só através desta genuína descentralização administrativa se conseguiria o progresso das colónias, o afastamento da desonrosa acusação internacional da prática esclavagista nas sociedades coloniais portuguesas e, por consequência, o distanciamento do perigo da alienação do património colonial português por potências estrangeiras.
José Benedito Gomes, médico e professor na Escola de Medicina de Nova Goa, pensava em finais de 1929 que os territórios do império colonial deviam ser designados por “províncias ultramarinas” e que se devia concretizar uma descentralização com um regime de autonomia administrativa colonial de “self-government”, em que os orgãos locais fossem os verdadeiros definidores dos caminhos políticos[8]. Este autor, embora se tenha debruçado, mormente, na estruturação da administração colonial do Estado da Índia, teceu algumas considerações gerais. A sua tese deve ser vista como uma crítica à tendência centralista consagrada com as políticas de João Belo (1926-1928) e de Oliveira Salazar (1930), embora se insiram numa corrente alargada de contestação dos pressupostos do Acto Colonial que alguns oradores do III Congresso Colonial Nacional realçaram. Com efeito, achava que devia ser implementada uma descentralização administrativa colonial que consagrasse um regime de “self-government” e que os funcionários públicos coloniais deveriam poder ser eleitos para alguns dos cargos de representação popular no Conselho de Governo do Estado da Índia.
Domingos Cruz, antigo parlamentar da 1ª República, criticou em 1928 o espírito centralista das novas Bases Orgânicas da Administração Colonial, promulgadas por João Belo[9]. Preconiza num ensaio político escrito nesta data a ideia de que para estimular o desenvolvimento económico-social das colónias eram necessários grandes investimentos financeiros, com inevitáveis desequilíbrios orçamentais, e uma administração descentralizada que reforçasse os poderes dos orgãos locais, pois no futuro as colónias deviam criar Parlamentos locais[10].
Na verdade, justificou o desequilíbrio orçamental e o despesismo como tendo sido fatores necessários à obra de fomento em Angola de Norton de Matos, precisamente no momento em que sob os auspícios do ministro das finanças se privilegiava a contenção financeira como superior critério de ação política. Na sua perceção heterodoxa defenderá o restabelecimento dos Conselhos Legislativo e de Governo em Angola, salientando num espírito autonomista que aquele orgão deveria no futuro em função do desenvolvimento social transformar-se num Parlamento colonial.
Nuno Sotto Mayor Ferrão
[1] António Ennes na década de 1890 como Comissário Régio de Moçambique dirá que as colónias deviam ser governadas localmente e não dos gabinetes da metrópole.
[2] Vírgilio de Lemos tomou uma posição crítica no momento em que estava a ser discutida no 3º Congresso Colonial a pertinência e a oportunidade do Acto Colonial, tendo discordado que a correta estratégia para solucionar os problemas coloniais portugueses fosse reforçar o grau de centralização do sistema administrativo. Assegurou que as dificuldades verificadas nas colónias resultariam, pelo contrário, da insuficiência do grau de descentralização conferido.
[3] Virgílio César de Lemos, “Administração geral das Colónias”, in 3º Congresso Colonial Nacional, Lisboa, Ed. Sociedade de Geografia de Lisboa, 1930, pp. 1-8.
[4] “(...) A que se pode referir a autonomia dum país ? Supomos que se refere, não à competência do Governador para fazer leis, mais ou menos assistido por Conselhos, mas ao reconhecimento da competência desse país para fazer, por si próprio, as suas leis. Consideradas sob este ponto de vista, as nossas colónias não tiveram autonomia , até que o regime, chamado entre nós dos Altos Comissários, veio aumentar muito os poderes do governo da Colónia e diminuir ( se era possível ) concomitantemente, a autonomia real da Colónia. (...)” Idem, Ibidem, p. 3.
[5] Vírgilio César de Lemos, op. cit., pp. 3,4 e 7. [ Cont. da citação do texto] “(...)Quem consultar as nossas Bases Orgânicas das Colónias vê na Base VII o que é que compete ao Congresso da República; ao Ministro das Colónias; e ao Governador Geral. Mas nada encontra que possa competir à própria colónia! Demos um exemplo: se os habitantes da província de Moçambique quizerem, só por si, a promulgação duma medida, pode ser o mesmo que não quererem nada visto que essa medida, se não fôr da vontade do governador, não será promulgada, seja essa medida embora justa. (...)”.
[6] “Descentralização pelo progresso e prosperidade das colónias”, in O Colonial, 13 de fevereiro de 1929, p. 1.
[7] Das seguintes passagens se depreendem estas conceções administrativas heterodoxas: “(...) Cumpre-nos cimentar a unidade do grande Portugal, tornando dia a dia mais intimos os laços entre a mãe-pátria e as colónias. (...) Mas só dentro dum regime confiantemente descentralizador esta obra de unificação progressiva se pode realizar com feliz êxito. (...) A ditadura, recuando, revertendo às tradições militaristas dos coloniais do engrandecimento do poder real, que (...) compreendiam a descentralização à maneira de Eduardo Costa, como uma concentração também imperialista, de poderes nas mãos dos governadores, imagem do despotismo do Terreiro do Paço, desgrega feudalisticamente a livre contextura da República Portuguesa d’ áquem e d’ além mar. (...)” (Ibidem, p. 1).
[8] José Beneditino Gomes, “Memória sobre a administração civil. Grande divisão administrativa. Preparação dos funcionários coloniais”, in Congresso Colonial Nacional de 8 a 15 de maio de 1930 – Atas das sessões e teses, Lisboa, Edição Sociedade de Geografia de Lisboa, 1934, 19 p..
[9] Domingos Cruz, A crise de Angola, Lisboa, Imprensa Lucas e Companhia, 1928, pp. 111 e 112.
[10] “(...) Impõe-se por isso restabelecer as Bases Orgânicas da Administração Colonial, com espírito descentralizador que animou os primeiros diplomas nesse intuito publicados, embora introduzindo-se-lhes aquelas correções que a práctica tenha aconselhado, no sentido de se reservar para a metrópole a orientação superior em matéria de administração geral e a fiscalização dos atos dos governos provinciais. (...) Nestes princípios, importa restabelecer os Conselhos Legislativo e do Governo. Os primeiros como embriões de futuros parlamentos locais que hão de vir a ser, quando os aglomerados sociaisrespectivos atingirem maior e necessária plenitude, e também como orgãos de colaboração que a lei previa para aquelas medidas em que convenha a Colónia pronunciar-se. (...)”(Ibidem, pp. 111-112).
Marcelo José das Neves Alves Caetano (1906-1980) foi um proeminente jurista, académico e político português. Licenciou-se em Direito na Universidade de Lisboa em 1927 e aí se doutorou em 1931. Aderiu, desde jovem, às teses conservadoras do Integralismo Lusitano e prestou assessoria jurídica a António de Oliveira Salazar, desde 1929. Nos anos 30 começou a destacar-se pelos seus estudos jurídicos e históricos ( no âmbito da História do Direito e das Instituições, do Direito Administrativo e do Direito Colonial ) e em 1940, com 34 anos, é designado Comissário Nacional da Mocidade Portuguesa.
De 1944 a 1947 abraça a pasta das Colónias, mas assume um tom crítico em relação à política interna de Salazar. Em 1949 torna-se Presidente da Câmara Corporativa, em 1955 Salazar chama-o para o cargo de Ministro da Presidência e em 1961-1962, já afastado das lides políticas, exerce o cargo de Reitor da Universidade de Lisboa e acaba por se demitir por considerar excessiva a actuação das autoridades policiais face à agitação dos jovens universitários. Em Setembro de 1968, face à debilidade física de Salazar, é nomeado Presidente do Conselho de Ministros e ocupa o lugar até à Revolução do 25 de Abril de 1974. Perante o evento revolucionário, exila-se no Brasil até à sua morte[1].
Ao contrário do que sustenta a moderna historiografia portuguesa, Marcelo Caetano, como Ministro das Colónias de Setembro de 1944 a Fevereiro de 1947, não procurou apenas na sua política implementar os princípios da descentralização administrativa e do desenvolvimento económico das colónias[2]. Na verdade, no discurso que pronunciou no início do seu périplo africano, em Junho de 1945, preconizou a necessidade de construir um sistema federal[3], de que o Almirante Sarmento Rodrigues será um fiel continuador, que possibilitasse a correcta coordenação dos dois pólos governativos coloniais ( o metropolitano e o local ). Daí subscrever que as Conferências de Governadores e a regularidade das viagens ministeriais às colónias eram fundamentais à ajustada coordenação dos pólos decisórios.
O contexto anticolonialista que pairou na Ásia durante e após a segunda guerra mundial, o apoio declarado das superpotências ( EUA e URSS ) ao fenómeno descolonizador e a ideologia da liberdade política e social exaltada pela Carta das Nações Unidas de 1945 foram os factores históricos incitadores da necessidade de mudar a aparência da política colonial portuguesa, tendo este ambiente internacional hostil levado o Ministro Marcelo Caetano a defender a tese federalista para o império português. Foi sob a pressão internacional dos princípios enunciados na Carta da ONU, do dever das potências colonizadoras de fazerem caminhar as colónias para a autonomia administrativa, ou mesmo para a sua independência, e do dever de serem tomados em conta os interesses das populações nativas, que se constituíram o conjunto de necessidades que influenciaram a alteração estratégica da política colonial portuguesa no fim do conflito mundial.
Porém, Marcelo Caetano argumentou ser inaceitável a independência das colónias portuguesas, no contexto do pós-guerra, devido ao facto do atraso civilizacional das colónias africanas recomendar apenas a equiparação dos interesses dos colonizadores e dos indígenas e do facto das Nações Unidas aconselharem, do seu ponto de vista, o desenvolvimento da autonomia administrativa e da participação das populações autóctones no governo local, mas não recomendar a concessão da independência das colónias no caso de territórios que revelassem ainda imaturidade política, social e económica, o que a seu ver se verificava na maioria das colónias lusas.
Por conseguinte, foi perante esta conjuntura, hostil, anticolonialista que Marcelo Caetano como Ministro das Colónias sustentou retoricamente a tese federalista para o império português, com os objectivos de garantir a continuação da soberania de Portugal sobre a maioria das suas colónias por longo tempo ( dado o atraso civilizacional das mesmas ) e, simultaneamente, de dar resposta aos princípios declarados legais pela comunidade internacional, em sede das Nações Unidas, designadamente os princípios fundamentais da “descentralização administrativa” e da “dignificação dos interesses das populações nativas”[4], mas Salazar resistiu sempre a esta tese política.
Nuno Sotto Mayor Ferrão
[1] Fernando Rosas, “Marcelo José das Neves Alves Caetano”, in Dicionário Enciclopédico da História do Estado Novo, Lisboa, Bertrand Editora, 1996, pp. 110-113.
[2] Vasco Pulido Valente, “Marcelo Caetano”, in Dicionário de História de Portugal, Coord. António Barreto e Maria Filomena Mónica, Lisboa, Ed. Figueirinhas, 1999, vol. VII, p. 202. Defende o autor a interpretação que Marcelo Caetano estava não só preocupado com a simples descentralização administrativa colonial, mas essencialmente centrado em harmonizar um poder governativo das colónias reforçado com um poder central que em certas matérias deveria ser preponderante, de forma a garantir a uniformização de critérios políticos.
[3] “(...) Disse um dos maiores espíritos do nosso escol de colónias que ‘as colónias se governam nas colónias’. Não me parece o asserto de todo o ponto exacto. Muitas circunstâncias e conveniências da política ultramarina só podem ser devidamente apreciados na capital do Império, lá onde se abarcam os horizontes mais largos do futuro da Nação, se cruzam todas as informações do Mundo e se dispõe dos instrumentos de actuação diplomática e técnica para intervir no devido lugar e a tempo oportuno. A verdade é que as colónias se governam nas colónias e na metrópole, e tanto melhor quanto mais perfeitamente se consiga que sejam as mesmas pessoas a ver nos dois pólos da governação os problemas a resolver. Daí, a instituição das conferências dos governadores, a reatar brevemente, e a regularidade das viagens ministeriais às colónias. (...)” ( Marcelo Caetano, Alguns discursos e relatórios – viagem ministerial a África em 1945, Lisboa, Agência Geral das Colónias, 1946, p. 8).
[4] Das seguintes passagens se comprova a veracidade desta inédita interpretação do pensamento colonial de Marcelo Caetano: “(...) Na verdade, as populações nativas ( sic – de África ) entregues a si próprias nunca saberiam sair do estado de barbárie e de carência em que ainda se encontram, e o seu verdadeiro interesse é o de colaborar com o colonizador mesmo quando pareça não resultar para elas dessa colaboração qualquer proveito directo e imediato. ( ...) Ficou pois assente que, segundo o critério das Nações Unidas, se as potências coloniais devem sempre procurar encaminhar os territórios não-metropolitanos para um regime de auto-administração em que sejam ouvidos os desejos de todas as classes da população, não é contudo objectivo necessário da tarefa colonizadora a independência das colónias.(...)” Marcelo Caetano, “As tendências contemporâneas”, in Portugal e o direito colonial, Lisboa, s.e., 1948, pp. 217 e 221.
Armindo Rodrigues de Sttau Monteiro (1896-1955)[1], pai de Luís de Sttau Monteiro, foi um importante professor universitário, diplomata, empresário e político do Estado Novo. Foi ministro das colónias, ministro dos negócios estrangeiros e embaixador de Portugal em Londres durante a 2ª Guerra Mundial. Apoiou o golpe de Estado do 28 de Maio de 1926 que degolou o regime pluripartidário da 1ª República, porque fustigou criticamente o descalabro financeiro deste regime. Em 1921 tinha-se Doutorado, com uma tese intitulada “Orçamento Português”, na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa.
A sua intervenção pública começou a destacar-se com a sua integração na delegação que liquidou a dívida de guerra à Inglaterra em 1926-1927 e a sua posterior colaboração com António de Oliveira Salazar, desde 1928, até aos anos da 2ª Guerra Mundial. O seu relevante papel político encontra-se inscrito na contribuição que concedeu à redacção dos textos jurídicos fundamentais do Estado Novo e à criação da mítica colonial.
Na segunda metade dos anos 30, a sua intervenção como diplomata irá levá-lo a polemizar com Salazar, mas a sua anglofilia irá permitir-lhe ser agraciado pela Monarquia Britânica com a honorífica “Ordem do Banho” na presença de Winston Churchill e de Robert Anthony Eden. No início dos anos 40, no estrangeiro era visto como um possível substituto de Salazar, capaz de levar o país de regresso às lides democráticas.
Durante o início do Estado Novo, como ministro “das terras de além-mar”, considerou que a doutrina colonial portuguesa se deveria inspirar na experiência histórica do país, em vez de procurar imitar os modelos administrativos estrangeiros. Meditou na necessidade de haver uma estabilidade no rumo doutrinário da administração colonial enaltecendo a vantagem de se criar uma doutrina única que garantisse a coerência entre as opções do governo central e as emanadas dos decisores coloniais[2]. Assim, concebia que a harmonia administrativa nas colónias dependia duma doutrina colonial única que valesse, no longo prazo, para vários ministros e várias colónias, pois esta fórmula permitiria articular de forma habilidosa os interesses comuns e específicos, de cada colónia, sem conflitualidade institucional.
Frisou ter sido excessivo o grau de autonomia administrativa colonial consagrado na 1ª República, daí a sua rejeição de que os administradores coloniais devessem tomar, primeiro, em linha de conta as necessidades das colónias, porquanto do seu prisma a prioridade devia ser o interesse geral da nação, baseado num poder central forte, e numa intensa fiscalização e coordenação da máquina administrativa colonial que assegurasse uma eficácia e uma coerência governativa imperial[3].
Na verdade, a doutrina imperial de Armindo Monteiro resultou da percepção nacionalista de que os interesses coloniais do país seriam melhor defendidos perante as ameaças externas através dum sistema politicamente centralizado[4]. Esta concepção desdobra-se em quatro princípios coloniais fundamentais, a saber:
a centralização da administração colonial era a garantia da solidariedade nacional entre as várias partes do império português;
o equilíbrio das finanças de cada colónia deveria condicionar as suas capacidades de investimento;
havia a conveniência de conciliar a centralização política que salvaguardava os interesses comuns com a descentralização da administração colonial que proporcionaria a satisafação dos interesses locais;
as regras de funcionamento da administração colonial deviam ser uniformizadas em conformidade com a concepção imperial.
Armindo Monteiro concebia os autóctones africanos como racial e civilizacionalmente inferiores aos metropolitanos. Deste modo, meditava que a política indígena devia proteger os direitos dos nativos dos abusos de alguns empresários pouco escrupulosos e que, concomitantemente, lhes deveria impor o dever moral de trabalhar. Por outro lado, achava que o Estado e os colonos deveriam contribuir para o aperfeiçoamento civilizacional dos indígenas, enquadrando-os dentro de hábitos culturais europeus.
Nuno Sotto Mayor Ferrão
[1] Júlia Leitão de Barros, “Armindo Rodrigues de Sttau Monteiro”, in Dicionário de História do Estado Novo, coordenação Fernando Rosas e J.M. Brandão de Brito, vol. II, Lisboa, Editora Bertand, 2000, pp. 622-623.
[2] Armindo Monteiro, “Necessidade de uma doutrina colonial portuguesa”, in Antologia Colonial Portuguesa, vol. I, Lisboa, 1946, pp.-243-254
[3] Idem, “As grandes directrizes da governação ultramarina portuguesa no período que decorreu entre as duas guerras mundiais”, in História da Expansão Portuguesa no Mundo, dir. António Baião e Manuel Múrias, Lisboa, Editorial Ática, 1940, pp. 431-454. Na opinião de Armindo Monteiro não houve preocupação na gestão financeira colonial de 1921 a 1926, o que se reflectiu no descalabro económico de Angola proveniente dos elevados défices e dos constantes pedidos de empréstimos. Este cenário calamitoso aconteceu, a seu ver, devido à falta de uma gestão sustentável no desenvolvimento económico do Ultramar, que tinha de partir de uma aplicação moderada dos recursos nacionais. Por esta razão, criticou o facto da autonomia colonial ter possibiltado desmesurados investimentos em obras de fomento que quebraram os equílibrios financeiros das contas anuais, o que obrigou à paragem das obras públicas e a um endividamente exorbitante em Angola. Como reacção a esta tendência despesista ficou consagrado no Acto Colonial o princípio de que o ministro das colónias tinha a competência de fiscalizar os orçamentos coloniais, no sentido de evitar novas situações de ruptura financeira.
[4] Pedro Aires Oliveira, Armindo Monteiro – uma biografia política, Lisboa, Bertrand Editora, 2000, pp. 89-97.
A 28 de Maio de 1926, faz amanhã oitenta e cinco anos, surgiu o golpe de Estado, que Salazar cunhou de revolução nacional, potenciador da sua ascensão política. A conjuntura de crise social, política e económica da 1ª República tornou possível o emergir das opressivas ditaduras, militar e salazarista.
Como cidadão afirmo que, se não nos acautelamos dada a similitude circunstancial que a pátria portuguesa hoje vive, corremos o risco de nos deixarmos cair num caminho de estreitamento das liberdades se optarmos por um modelo de desenvolvimento centrado na produtividade económica e na capacidade da sociedade civil como nos propõe o PSD de Pedro Passos Coelho. Se o mundo já vive sob uma didatura financeira, como nos diz o lúcido Stéphane Hessel no seu Manifesto[1], corremos o risco de a legitimar completamente se alinhamos no radicalismo ideológico do PSD com o qual o Professor Marcelo Rebelo de Sousa, numa sensibilidade mais social-democrata, não se identifica plenamente por não ser um liberal.
Num registo historiográfico, saliento que António de Oliveira Salazar advogou de acordo com a doutrina inscrita no Acto Colonial que a política ultramarina devia ser orientada por uma matriz nacionalista. No seu pressuposto essencial a unidade política do Estado Português tinha absoluta correspondência com os limites fronteiriços da nação, os quais se estenderiam do Minho a Timor. A sua perspectiva ideológica encarava a acção colonizadora como a autêntica vocação do país. Não obstante, a clarificação e a propaganda intensa, moldada por outros matizes ideológicos, desta ideia só surge com a revisão Constitucional de 1951 que integra o Acto Colonial neste texto jurídico e altera o conjunto lexical usado pelo regime.
Salazar reputava como fundamental para reforçar esta estratégia política de unificação, advinda da realidade espiritual herdada de séculos anteriores, consolidar como meios de acção o incentivo ao intercâmbio económico entre a metrópole e as colónias e a promoção da cristianização dos povos autóctones coloniais[2]. Sustentou, também na fundação do Estado Novo, como ideia-chave a noção de que as diversas parcelas coloniais formariam uma unidade imperial, dando azo ao aparecimento do termo de “império colonial português” e impulsionando a formação de um espaço económico português de dimensão internacional, no sentido de estimular as transacções comerciais dentro do espaço imperial[3].
[2] António de Oliveira Salazar, “A Nação na política colonial”, in Ibidem, vol.I, Antologia Colonial Portuguesa, Lisboa, Agência Geral das Colónias, 1946, pp. 326-334.
[3] Ruy de Sá-Carneiro, A política colonial do Estado Novo, Lisboa, Agência Geral das Colónias, 1949, 26 p.
Italo Calvino sempre foi um dos meus escritores predilectos pelo seu potencial criativo. Há muito em comum entre José Gomes Ferreira e Italo Calvino: uma escrita criativa e um clima surrealista que os tolhe, o papel “antifascista” dos dois contra, respectivamente, Benito Mussolini e António de Oliveira Salazar, um mesmo ideário comunista, a que Italo Calvino renuncia em 1957, e um ano comum de cerramento das pálpebras (1985).
Quando comecei a ler “As Aventuras de João Sem Medo” de José Gomes Ferreira, escritas em 1933 e terminadas em 1963, logo me apercebi do paralelismo estético existente entre estes dois magistrais escritores latinos. Ambas as obras literárias, de prosa, são um hino à imaginação, tal como a nona Sinfonia de Ludwig van Beethoven é um hino à alegria e à generosidade da Humanidade. Neste ambiente de crise Ética e Económica, em que vivemos, as visões generosas destes dois escritores são exultantes. Sem esquecer, todavia, o legado intervencionista que os seus exemplos de vida nos legaram.
É, certo, que existem diferenças nas suas carreiras, pois o escritor português seguiu mais a veia poética e o escritor italiano mais a via ensaística, embora ambas paralelas às narrativas de contos e de romances. Quero-vos apresentar dois magníficos documentários feitos sobre as obras destes dois escritores.
Italo Calvino escreveu uma trilogia literária fantástica intitulada respectivamente “O Barão Trepador”(1957), “O visconde cortado ao meio”(1952) e “O Cavaleiro Inexistente”(1959). A imaginação e o sentido alegórico que subjaz às suas obras e, em particular, no livro do visconde que está preso por duas consciências antagónicas dão-nos um universo que entra no carácter simbólico do onírico. Esta é, com efeito, a ponte que liga as duas margens do universo temático surrealista da literatura portuguesa e italiana. Igualmente, o esteio criativo deste género de literatura é a defesa da escrita intuitiva que torne emergente o inconsciente dos escritores numa proposta estética que se alavanca no ideário da Psicanálise.
Contudo, afigura-se-me que José Gomes Ferreira quis refundar um universo mitológico que partindo das histórias populares, para crianças, as superasse pelo tom poético imprimido às coisas banais, enquanto Italo Calvino pretendendo respeitar o património imaterial dos contos de fadas quis criar histórias imaginativas com forte sentido alegórico. Neste sentido, a escrita de José Gomes Ferreira emerge de forma mais clara como uma sátira política, às ditaduras (militar, salazarista ou caetanista), ou social, à mentalidade pessimista dos portugueses.
Em suma, nos arremedos narrativos surrealistas destes dois escritores espreita a alegria das cores fantasistas e das mensagens simbólicas que devem unir os criadores literários aos seus leitores. Vale, pois, bem a pena uma incursão por este património imaterial da Cultura Latina.
Nos anos vinte, do século passado, pairaram inúmeras ameaças internacionais à soberania colonial portuguesa. Deste modo, foram aparecendo diversos cenários que representaram ameaças específicas, consoante as conjunturas nacionais e internacionais vividas. Contudo, duas fortes críticas à soberania portuguesa nas suas colónias perpassaram os diversos fóruns internacionais e as opiniões públicas estrangeiras entre as duas guerras mundiais (1919-1945).
No momento em que Portugal se libertava das campanhas de pacificação nas colónias africanas, urgia enraizar a autoridade do Estado nas colónias, em conformidade com o critério internacionalmente aceite desde a Conferênia de Berlim de 1884-1885 e confirmada na Convenção de Saint-Germain-en-Laye de 1919. Assim, desde o fim da 1ª República que o país enfrentava uma firme contestação internacional à sua legitimidade colonial. Com efeito, aparecem duras críticas da opinião pública internacional à deficiente gestão colonial portuguesa, ou seja, à incapacidade do Estado português fazer valer a sua autoridade nas colónias e de lhes garantir meios de desenvolvimento[1].
Por outro lado, outros países colonizadores, cobiçosos das colónias portuguesas, acusavam-nos de continuar a “prática da escravatura”, em Angola e em Moçambique, devido ao aproveitamento desumano da mão-de-obra autóctone. Em função destes pretensos defeitos administrantes de Portugal surgem cobiças estrangeiras à posse das colónias portuguesas.
A especificidade Moçambicana, no quadro colonial português, nos anos vinte ficou-se a dever a um conjunto de factores endógenos e exógenos. Em primeiro lugar, verificaram-se estreitas relações comerciais entre a África do Sul e Moçambique devido à mão-de-obra moçambicana usada nas minas da região do Rand e à utilização do porto de Lourenço Marques como local de embarque dos produtos de exportação sul-africanos, o que era uma situação que já vinha do início do século XX e, designadamente, da Convenção de 1909 com o Estado do Traansval. Em segundo lugar, houve um ambiente favorável à “desnacionalização”, da mentalidade das populações em Moçambique, caracterizado pela autoridade exercida em certas regiões desta colónia por parte de Companhias Majestáticas e pelo peso significativo que as comunidades estrangeiras tiveram neste território ao ponto de existirem periódicos publicados noutras línguas como o Lourenço Marques Guardian.
É neste contexto específico que se explica a pretensão da União Sul Africana de anexar Moçambique, o que deu origem a teses controversas que emergiram nesta colónia chegando alguns grupos da sociedade moçambicana a defender ideias radicais e profundamente heterodoxas de desvinculação do Estado Português, porque tinham interesses e negócios estreitos com alguns Estados vizinhos. Daí que, por exemplo, os políticos sul-africanos presentes na Conferência de Paz de 1919 em Paris, Louis Botha e Jan Christiaan Smuts, tenham pressionado Portugal para que cedesse a estratégica cidade de Lourenço Marques à União Sul-Africana[2].
Na verdade, nos anos trinta a União Sul-Africana continuou sob o impulso do carismático general Smuts a pretender incoporar Moçambique no seu território e disso estavam bem conscientes os políticos portugueses. Por exemplo, em 1939 o ministro das colónias, José Vieira Machado temia, em desabafo de consciência com António de Oliveira Salazar[3] em pleno conflito mundial, que a União, sob pretexto de que Moçambique se encontrava militarmente indefesa, se aproveitasse para garnecer a sua defesa e se apoderasse subrepticiamente das funções de soberania de Portugal dando por consumado um facto há muito desejado.
Na mesma década, pairou o perigo da Alemanha ou da Inglaterra anexaram o norte de Moçambique com o apoio explícito de habitantes da colónia. Já nos anos quarenta, Smuts protagonizou a defesa de uma União Pan-Africana que ligasse economicamente os Estados livres do Sul de África, o que foi um factor impulsionador das ideias emancipatórias de Moçambique do domínio português. Na realidade, a possibilidade de independência estaria escorada em fortes conexões económicas com os países vizinhos.
Em resumo, estes factos históricos configuraram ameaças reais e imaginárias à soberania portuguesa nas colónias africanas e, em particular, a Moçambique que pairaram nesta conjuntura da primeira metade do século XX.
Nuno Sotto Mayor Ferrão
[1] Talvez a mais importante voz critica tenha sido a do sociólogo norte-americano Edward Ross que publicou um relatório que apresentou à Sociedade das Nações em 1925, que alcançou um notável êxito mediático, denunciando muitos erros e incapacidades da administração colonial portuguesa da época.
[2] José Medeiros Ferreira, Portugal na Conferência de Paz – Paris, 1919, Lisboa, Quetzal Editores, 1992, p. 31.
[3]Carta do ministro das colónias J. Vieira Machado a Salazar de 17 de Novembro de 1939, in Arquivo Oliveira Salazar/ Correspondência Oficial/ Ultramar – Pasta 9 A, ff. 94-103 ( Arquivo Nacional da Torre do Tombo).
O professor e investigador Filipe Ribeiro de Meneses, autor do livro agora publicado em Portugal com o título Salazar – Biografia Política[1], afirmava ontem na televisão que o ofício de Historiador exige, deontologicamente, uma aproximação à objectividade. Na verdade, como nos disse, com sentido crítico, o testemunho hagiográfico de Franco Nogueira[2] sobre Salazar tem um valor indesmentível como testemunho memorialístico, no entanto como estudo histórico não tem a necessária distância ideológica e afectiva para se aproximar de uma visão mais imparcial. A vantagem deste estudo mais recente, como salientava no outro dia Francisco Seixas da Costa no seu blogue Duas ou três coisas no texto intitulado "Salazar", advém deste jovem investigador pertencer a uma outra geração com instrumentos metodológicos mais aperfeiçoados que lhe permitiu elaborar uma investigação mais insuspeita. Estou, pois, muito curioso em ler esta obra de grande fôlego.
Vem isto a propósito de um antigo artigo do Historiador Henrique Barrilaro Ruas sobre o regicídio e a República em que a sua visão se deixou cair num parcialismo que tem a ver com o facto de ter sido monárquico e de ter pertencido, na época em que escreveu o artigo “O Regicídio à luz da História Política” ao Partido Popular Monárquico, e inclusive ter sido deputado na Assembleia da República pela Aliança Democrática nos anos de 1979-1983. Deste modo, este autor sentencia a República, como uma das raízes do mal-estar da pátria portuguesa, quando nos diz: “(…) Monstruoso como crime, o Regicídio de 1 de Fevereiro de 1908 é a revelação de que um sistema político imposto ideologicamente por «iluminados» não pode perdurar sem conduzir à morte os homens singulares, e da própria comunidade política.(…)”[3].
Com efeito, a República, que dentro de poucos dias iremos celebrar como cidadãos orgulhosos da nossa pátria, tem de ser vista sem visões ideologicamente parciais, por parte dos Historiadores, para que cada cidadão no íntimo da sua consciência e das suas convicções possa fazer as suas escolhas com uma fundamentação realista, baseada numa sólida Cultura Histórica, e não manipulado por uma qualquer ordem de interesses. A República tem de ser perspectivada ora com os óculos do investigador, ora com os óculos do cidadão, uma vez que se quer que este seja participante de uma democracia autêntica. Nesta medida, a Exposição “Viva a República” patente na Cordoaria Nacional, em Lisboa, até, pelo menos, ao fim de Novembro de 2010 merece uma visita, para quem está interessado em conhecer melhor esse período histórico, por ter sido levada a cabo por prestigiados especialistas da temática.
Desta forma, há que separar o campo Historiográfico do campo da intervenção cívica. E, aliás, no campo da intervenção cívica devem ser declarados os interesses e as convicções que se estão defender por uma questão de honestidade e probidade intelectual. É legítimo sustentarem-se todos os argumentos com transparência, mas sem se ocultarem as reais motivações ideológicas, os interesses políticos ou económicos que estejam por detrás. O grande Historiador da Cultura, Joel Serrão, escrevendo sobre Antero e Herculano no Jornal das Letras[4], no início dos anos 80, enfatizou as preocupações éticas que moldaram as obras destes dois intelectuais. Em suma, só as preocupações metodológicas de rigor intelectual e a transparência ética podem garantir intervenções científicas e cívicas de insuspeitado valor.
Nuno Sotto Mayor Ferrão
[1] Filipe Ribeiro de Meneses, Salazar - Biografia Política, Lisboa, Edições Dom Quixote, 2010.
[3] Henrique Barrilaro Ruas, “O Regicídio à luz da História Política”, in Ensaio – Folha de Cultura e Opinião, nº 2, Fevereiro-Março de 1981, p. 3.
[4] Joel Serrão, “Antero e Herculano”, in Jornal de Letras, Artes e Ideias, Director José Carlos Vasconcelos, Ano I, nº 10, 7 a 20 de Julho de 1981, pp. 6-7.
Em Braga, a 28 de Maio de 1936, António de Oliveira Salazar, Presidente do Conselho de Ministros, fez um discurso de explícito enaltecimento ao Golpe de Estado de 28 de Maio de 1926, liderado pelo General Manuel Gomes da Costa, que pôs fim ao regime democrático da Primeira República. Este discurso de propaganda política é uma síntese perfeita dos principais vectores ideológicos do regime do Estado Novo que Salazar arquitectou e liderou. Na sua voz castiça, de tom monocórdico, pressente-se a sua formação de seminarista que do “púlpito”, ‘Magister dixit’, criticava o caos político-social que, a seu ver, prevaleceu no anterior regime (1910-1926).
Salazar rodeado de militares e de políticos, ao lado do Arcebispado de Braga, profere esta súmula política perante uma parada de marinheiros e do povo que cenicamente o aclama. Os eixos ideológicos do seu pensamento aparecem enunciados de forma simples: o valor de Deus e das virtudes que lhe são inerentes; o sentimento nacionalista orgulhoso dos seus heróis; o papel da Autoridade no harmonioso e hierarquizado relacionamento da sociedade civil; a importância da família tradicional e da moral incutida aos seus membros; a relevância do trabalho e do dever como contributos para uma sociedade mais desenvolvida.
Na sua perspectiva Tomista[1], a concretização destes valores ideológicos foram possíveis devido aos interesses nacionais defendidos pelo Golpe de Estado[2], acima assinalado, de que se comemorava o décimo aniversário. Assim, este facto genésico, na sua mesclada linguagem de ex-seminarista e ex-lente coimbrão, permitiu quase, como diria o Dr. Pangloss do “Cândido” de Voltaire, estabelecer na pátria portuguesa “o melhor dos mundos possíveis” que conduziu à retórica nacionalista de que o “país era um jardim à beira-mar plantado”[3].
É nesta medida que se permitiu falar da ordem e da paz social conquistadas pela pátria, não obstante as revoltas juguladas que, entretanto, se manifestaram nos anos 30.
Foi nesse sentido que pôde frisar que se vivia sob um Estado Forte, com um chefe determinado, que permitiu com leis e instituições repressivas salvaguardar o funcionamento de uma administração honesta, a recuperação da economia dos abalos da Grande Guerra (1914-1918) e do colapso capitalista universal de 24 de Outubro de 1929, a constituição de uma organização corporativa que pôs fim às infindáveis lutas sindicais e a restituição da dignidade de um império colonial que se tornou fonte de auto-estima nacional[4] através de uma organização centralista da Administração das colónias e de uma propaganda interna e externa que muito ficou a dever a Henrique da Malta Galvão.
Este discurso de Salazar é, pois, a síntese perfeita do seu discurso dos anos 30 durante a edificação jurídica, ideológica e institucional do Estado Novo e, para mais, no momento em que a conjuntura internacional ainda não colocava grandes resistências[5] às suas opções políticas internas e externas.
[1] Doutrina filosófica de São Tomás de Aquino que influenciou fortemente o pensamento de A. Oliveira Salazar, como nos ensinou o Professor João Medina ( João Medina, "Deus, pátria e família: ideologia e mentalidade do Salazarismo", in História de Portugal, dir. João Medina, vol. XII, Lisboa, Edições Ediclube, 1993, pp. 29-33).
[2] António de Oliveira Salazar denomina Revolução Nacional esse acontecimento histórico pelo simbolismo que lhe queria atribuir.
[3] “Jardim da Europa à beira-mar plantado” é um verso de um poema de Tomás Ribeiro (1831-1901), intitulado “A Portugal” publicado em 1862 no seu livro D. Jaime.
[4] Foi célebre o lema inserido em cartaz propagandístico imperial que afirmava: “Portugal não é um país pequeno”.
[5] A política do “orgulhosamente sós”, de A. Oliveira Salazar, aparecerá apenas a seguir à 2ª Guerra Mundial em função do desmoronamento das estruturas coloniais das fragilizadas potências Europeias.
“Almirante Manuel Maria Sarmento Rodrigues (1899-1979) – curta evocação histórica, dez anos depois das Comemorações Centenárias do seu nascimento”
Em 1998 fui convidado pela Câmara Municipal de Freixo de Espada-à-Cinta (terra natal do Almirante), sob proposta da Comissão de Honra das Comemorações do Centenário do nascimento de Manuel Maria Sarmento Rodrigues, a escrever sobre esta figura histórica uma obra biográfica. Este dignificante convite foi-me endereçado na sequência da defesa da minha Tese de Mestrado[1] a 27 de Maio de 1998 na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, o que encarei como um cativante desafio intelectual.
A presente crónica não pretende traçar nenhuma resenha biográfica, pois aliás já o fiz nessa obra que me foi encomendada[2], no entanto quero evocar algumas facetas mais relevantes desta eminente figura pública que se destacou como oficial da Marinha de Guerra, como governador colonial, como político, como professor, como conferencista, etc. Na actualidade como principais registos públicos evocativos da memória do Almirante Sarmento Rodrigues temos a obra biográfica da minha autoria, a minha Tese de Mestrado, a obra que reúne depoimentos de personalidades que o conheceram[3] e o busto edificado junto da Câmara Municipal de Freixo de Espada-à-Cinta em 1999 durante as Comemorações Centenárias do seu nascimento.
No sentido de preservar o seu nome na memória colectiva do povo português existe, no nosso país, com esta designação onomástica uma ponte sobre o rio Douro, em Barca d’ Alva, uma rua em Lisboa, outra em Bragança e um Prémio científico destinado a impulsionar a investigação da história das actividades marítimas portuguesas atribuído pela Academia de Marinha.
É legítimo afirmar que uma das primeiras grandes aprendizagens que moldaram o seu espírito enérgico foi o serviço que prestou, em 1922, como adjunto de navegação no Cruzador “República” na missão de apoio marítimo à primeira travessia aérea do Atlântico Sul realizada por Gago Coutinho e Sacadura Cabral. A colaboração nesta experiência inédita granjeou-lhe a longa amizade do Almirante Gago Coutinho e imprimiu na sua alma a percepção da necessidade de um risco aventureiro.
Durante a sua vida conviveu com importantes figuras de prestígio nacional e internacional, tendo manifestado uma impressionante faceta “diplomática” que soube aproveitar no exercício de cargos públicos para mobilizar indispensáveis sinergias na concretização de projectos. Com efeito, teve estreita convivência afectiva com muitos marinheiros, técnicos, eruditos, com quem aprendeu e colaborou no exercício dos seus múltiplos serviços públicos.
De entre alguns dos seus amigos, mais próximos e mais influentes, destaco: o Almirante Gago Coutinho, estudioso das questões náuticas das Descobertas Portuguesas; o Almirante Quintão Meireles, seu conterrâneo; o jornalista Norberto Lopes, seu companheiro de estudo das primeiras letras; o General Norton de Matos, seu grande inspirador como governador colonial; o historiador Jaime Cortesão, estudioso das Descobertas marítimas quinhentistas; os médicos Fernando da Fonseca e Reynaldo dos Santos, sendo, respectivamente, o primeiro seu médico pessoal e o segundo estudioso da arte Manuelina; o engenheiro Trigo de Negreiros; o professor Adriano Moreira; o Almirante Pinheiro de Azevedo; o jornalista Raul Rego, etc.
No desenrolar da 2ª Guerra Mundial (1939-1945) teve uma extraordinária acção humanitária ao dirigir o Contra-torpedeiro “Lima” na busca e no salvamento de 110 náufragos do Paquete inglês “Ávila Star” que fora torpedeado pelas forças navais alemãs, corria o ano de 1942, ao largo do arquipélago dos Açores. No ano seguinte, Sarmento Rodrigues voltou no comando desse navio a proceder à busca e ao salvamento de 118 náufragos dos navios norte-americanos “Julia Ward Howe” e “City of Flint” atingidos, presumivelmente, por submarinos alemães. Nesta missão de socorro o seu navio, sob a impetuosidade natural de uma violenta tempestade alcançou a invulgar inclinação de 67º, esteve em risco de naufragar, tendo havido, pois, perigo de vida na prossecução desta nobre acção humanitária.
Ele relata-nos este valoroso episódio marítimo no seu requintado opúsculo, de recorte literário clássico, intitulado “O Nosso Navio”[4]. Aliás, no contexto histórico de belicosidade mundial escreveu um aprofundado livro de estudo de estratégia militar sobre a batalha marítima entre os Aliados e os Alemães[5], com base na sua vivência de socorro a náufragos da guerra e nas informações técnicas que foi recolhendo, que catapultou a sua reputação militar entre os camaradas de armas.
É interessante saber que Sarmento Rodrigues foi lançado na vida político-administrativa ultramarina pelo Professor Marcello Caetano, na altura Ministro das Colónias, após ter escrito alguns artigos na “Revista Militar” sobre estratégias da administração ultramarina e ter frequentado com notoriedade os primeiros anos do Curso de Administração da Escola Superior Colonial. Por outro lado, Sarmento Rodrigues, já como Ministro das Colónias, no início dos anos 50, aquilatando o valor intelectual do, jovem e promissor, jurista Adriano Moreira colocou-o a trabalhar consigo, tendo-lhe encomendado a realização do estudo intitulado “O problema prisional do Ultramar”. Este trabalho de investigação veio a receber o Prémio Abílio Lopes do Rego, em 1953, atribuído pela Academia das Ciências de Lisboa.
Convém sublinhar que Sarmento Rodrigues foi uma das figuras públicas que mais impulsionou, durante o Estado Novo, a celebração das Descobertas marítimas portuguesas do século XV[6] ao apoiar investigadores como Avelino Teixeira da Mota, Armando Cortesão e Charles Boxer (que o chega a tratar em carta que lhe dirigiu de “seu anjo da guarda”)[7] e ao promover iniciativas em prol da memória colectiva com as Comemorações do V Centenário do Descobrimento marítimo da Guiné em 1947, enquanto Governador da colónia, e ao presidir em 1960, como Director da Escola Naval de Guerra, em Lisboa ao IV Colóquio Internacional de História Marítima e também em idêntico cargo à Comissão Ultramarina das Comemorações do V Centenário da Morte do Infante D. Henrique que, designadamente, edificou o emblemático monumento do Padrão dos Descobrimentos, que se tornará um dos “ex-libris” da cidade, que já tinha existido numa versão prévia, em materiais efémeros, durante a Exposição do Mundo Português de 1940[8].
A sua fulgurante carreira política teve considerável eco na opinião pública, pela aura carismática que o envolveu, como aliás a imprensa da época nos mostra. Com efeito, Sarmento Rodrigues desempenhou os cargos de Governador da Guiné de 1945 a 1949, de Ministro das Colónias/ do Ultramar de 1950 a 1955 e de Governador-geral de Moçambique de 1961 a 1964, sob proposta do Ministro, do Ultramar, Adriano Moreira. Neste posto assistiu, com preocupação e com sentido de polemista, ao alastrar da guerra colonial a este território, apesar do seu carisma junto de grande parte das populações de Moçambique.
Como Ministro das Colónias, Sarmento Rodrigues, perante o adverso contexto internacional descolonizador, que enfrentou no pós-guerra, sustentou, como ideólogo,iniciando a edificação, de forma incipiente devido à intransigência do Presidente do Conselho de Ministros – António de Oliveira Salazar, como já o defendi academicamente, do “sistema jurídico-ideológico federal-lusotropicalista” delineado como estratégia governativa para apaziguar os sentimentos anticolonialistas das populações dos territórios, rebaptizados, de ultramarinos que desembocou na consagração transitória, em 1953, do regime do indigenato. Na verdade, foi já o Professor Adriano Moreira em 1961, como Ministro do Ultramar, a pôr fim a este discriminatório regime jurídico das populações africanas do país.
Na verdade, este “sistema federal-lusotropicalista” consagrou uma tentativa de harmonização entre o princípio da descentralização da administração ultramarina, que tão grande indignação deixou em Armindo Monteiro[9], ex-Ministro das Colónias, e o mecanismo de centralização política. Em concomitância, apadrinhou a doutrina Lusotropicalista de Gilberto Freyre[10] que se incorporou na ideologia colonial do Estado Novo. Com efeito, a nação portuguesa passou a ser concebida como um território que se estendia do “Minho a Timor” e com esta estratégia política criaram-se as condições doutrinárias para uma tendencial igualdade de oportunidades e de direitos entre instituições e populações, ultramarinas e metropolitanas, e, simultaneamente, incentivou-se o intercâmbio cultural e técnico entre o Ultramar e a Metrópole[11].
Cumpre, agora, elucidar os fundamentos pelos quais Sarmento Rodrigues foi politicamente “ostracizado” pelo regime Salazarista nos anos 60. Ele ingressou na Loja Renascença da Maçonaria Portuguesa em 1923, conjuntamente com José Gomes Ferreira, embora durante a vigência deste regime político tenha permanecido, formalmente, afastado dela. Contudo, as suas posições liberais, dentro do regime, e os seus contactos com muitos oposicionistas da ditadura fizeram com que fosse, principalmente, na década de 1960 atentamente vigiado pela PIDE[12].
Este seu perfil liberal, inspirado na matriz ideológica Republicana, tornou-o ansiado e pensado, por muitas relevantes figuras públicas, como o desejado Presidente da República em 1965[13] para transfigurar o “statu quo” político, tendo existido, efectivamente, um movimento de pré-candidatura. No entanto, pelo seu círculo de influências a Polícia Internacional de Defesa do Estado suspeitava-o Grão-Mestre da Maçonaria Portuguesa (como surge explícito nos documentos históricos da PIDE/DGS) e conluiado com uma corrente conspirativa contra o regime, daí que António Oliveira Salazar o tenha impedido, nessa altura, de continuar a exercer cargos políticos.
Em pleno contexto da guerra colonial, no seu início, teve, também, algumas afirmações ideológicas polémicas para os parâmetros conservadores da ala “ortodoxa” do regime. Deste modo, em 31 de Outubro de 1962, numa reunião extraordinária do Conselho Ultramarino, Sarmento Rodrigues sustentou o reforço da descentralização ultramarina, dentro da sua concepção federalista, mediante o fortalecimento das competências dos Governadores-gerais das nossas grandes colónias[14] e chegou, mesmo, a equacionar a hipótese de que num futuro, mais ou menos distante, a capital de Portugal pudesse vir a passar para Angola ou Moçambique[15].
Sarmento Rodrigues foi também um benemérito nas ajudas que prestou ao desenvolvimento da sua terra natal, fortemente marcada pela interioridade transmontana. Para esse efeito, levou importantes figuras do regime e da cultura portuguesa a visitar a localidade de Freixo de Espada-à-Cinta e alojou-as na sua casa. Assim, conseguiu, com estes esforços “diplomáticos”, que a sua vila ficasse mais bem servida de redes viárias e que o Património Histórico-Cultural local fosse preservado. Designadamente, garantiu que a bela Igreja Matriz, de traça Manuelina, tenha sido restaurada sob o impulso de Baltazar de Castro[16].
Além da sua vasta experiência de marinheiro e de político, Sarmento Rodrigues foi publicamente reconhecido pelo seu valor intelectual, tendo publicado várias dezenas de livros e opúsculos e inúmeros artigos em jornais e revistas nacionais e estrangeiras. Alguns autores de prestígio da cultura portuguesa dedicaram-lhe livros seus[17]. Deste modo, teve um notável percurso intelectual como, aliás, nos evidenciam as suas publicações e as suas infindáveis conferências e discursos, proferidos em vários países, marcados por aprofundados conhecimentos históricos, literários, navais e políticos, como tivemos oportunidade de constatar, compulsando parte do espólio bibliográfico da sua Biblioteca, e como nos testemunhou vivamente o Professor Doutor Adriano Moreira[18].
A sua envergadura intelectual foi determinada pela extensa vivência humanista, cheia de nobilitantes experiências profissionais, de variados contactos com eminentes figuras da Cultura portuguesa, de vastas leituras e de muito labor na produção de textos. Assim, os seus textos, que tanto nos aparecem num estilo mais literário nos seus discursos políticos como num estilo mais técnico nas suas conferências, nacionais e internacionais, tiveram uma indesmentível projecção pública que lhe auferiu um imenso carisma junto da sociedade portuguesa.
Com efeito, numa segunda fase da sua vida, a partir de 1942 com cerca de 43 anos, começou a publicar diversos textos enriquecendo o seu notável percurso académico[19]. Foi, nesta fase de amadurecimento intelectual, que no ano lectivo de 1949-1950 exerceu funções docentes na Escola Superior Colonial, que nos anos de 1957 a 1961 ocupou o lugar de Director da Escola Naval de Guerra, que em 1960 e em 1969 se tornou, respectivamente, membro correspondente e, depois, efectivo da Academia das Ciências de Lisboa, que em 1970 se converteu em Presidente do Centro de Estudos de Marinha, que em 1977 foi agraciado com o título de membro honorário do Instituto de Estudos Políticos do Liechtenstein e, por fim, culminando este valoroso trajecto académico tornou-se no primeiro Presidente da Academia de Marinha em 1978.
Efectivamente, o Almirante Sarmento Rodrigues alcançou, no terceiro quartel do século XX, um invulgar prestígio nacional e internacional junto da opinião pública[20], daí que tenha recebido em vida inúmeras condecorações, títulos honoríficos, homenagens[21] e missões diplomáticas de natureza científica, como o exercício da Vice-Presidência do Congresso Internacional de Roma para a Coordenação das pesquisas científicas em África em 1958, ou equivalentes incumbências de carácter oficial, como quando foi enviado como Embaixador extraordinário de Portugal à independência da República do Congo em 1960.
Em conclusão, é legítimo reconhecer que o Almirante Sarmento Rodrigues merece ser recordado como uma personalidade de invulgar envergadura e um distinto cidadão da República Portuguesa[22], de firmadas qualidades de acção e de pensamento, que se inscreveu por direito próprio nas páginas da História de Portugal do século XX[23].
Na verdade, revelou excepcionais capacidades e competências de coordenação de indivíduos nos serviços públicos que prestou, de mobilização de saberes e de vontades de pessoas com distintas mundividências ideológicas e que, não obstante, se tenha confrontado com algum insucesso por não ter conseguido concretizar, cabalmente, o seu projecto de renovação do sistema imperial português, entre 1950 e 1964, devido à simultaneidade dos “ventos internacionais da História” e às intransigentes posições do Presidente do Conselho de Ministros, António de Oliveira Salazar, e da ala mais conservadora do Estado Novo.
Contudo, apesar destas contrariedades conjunturais, do ponto de vista cultural e estrutural soube somar retumbantes sucessos, selados pela opinião pública, ao desenvolver e colaborar em organismos de estudo[24], impulsionar investigadores de história marítima, dirigir e participar em instituições e congressos científicos em prol das suas grandes paixões públicas: a Marinha de Guerra e o Ultramar[25].