O PADRE ANTÓNIO VIEIRA UM PRECURSOR DO ESPÍRITO LUSÓFONO NO SÉCULO XVII
O Padre António Vieira (1608-1697) foi, talvez, o mais remoto fundador do espírito lusófono[1]. Nos seus Sermões, do Maranhão, condenou a escravização dos índios do Brasil, desde 1653, o que contribuiu para potenciar o intercâmbio cultural e social lusófono. Esta denúncia pública, que teve eco nas suas obras publicadas, das discriminações sociais abriu caminho na mentalidade portuguesa para a paulatina aceitação do fenómeno da miscigenação.
Convém reter alguns dados biográficos que nos ajudam a compreender o seu espírito lusófono. Nascendo em Lisboa no seio de uma família humilde, teve entre os seus antecedentes uma avó materna mulata e cedo se dirigiu ao Brasil com os seus pais. Na região da Baía formou-se no Colégio dos Jesuítas, sendo ordenado sacerdote em 1635 e passando a exercer o cargo de professor de teologia desde 1638.
O momento decisivo da sua vida foi, contudo, a integração na Comitiva oficial que recebeu D. João IV, em 1641, no Brasil. Desde cedo se tornou valido do rei, tendo sido nomeado pregador e confessor régio, ministro sem pasta e diplomata, o que lhe permitiu alcançar a partir desses anos a fama.
Quando sucede a mudança de reinado de D. João IV para o seu filho, Afonso VI, após o período de regência de D. Luísa de Gusmão, a sua situação altera-se profundamente. Desta forma, a partir desta altura torna-se perseguido pelo Tribunal do Santo Ofício por proteger os cristãos-novos e os índios das atitudes desprezivas dos católicos e dos colonos[2].
Em vida alcança as luzes da ribalta ao publicar os seus Sermões em Portugal e em Roma, tornando-se um expoente da prosa barroca ao estimular a autoestima nacional, bastante rarefeita com o domínio filipino, mediante a energia e o misticismo profético da sua verve galvanizadora. Deste modo, procurou, também, nos seus textos levantar a moral nacional, precisamente no momento em que a incerteza da salvaguarda da independência nacional ainda se mantinha.
O Padre António Vieira valendo-se da sua acuidade crítica, além de denunciar os maus tratos que os colonos davam aos índios, soube também fazer eco junto das autoridades das ameaças externas, a que o Brasil esteve sujeito no seu tempo, designadamente do expansionismo holandês que neste século foi capaz de estender as malhas tentaculares do seu império colonial à América do Sul.
Neste contexto de ameaças externas, a que esteve especialmente atento com a sua sensibilidade diplomática, Vieira fundou um pensamento utópico colonial, sendo nesta medida um precursor da utopia lusófona.
De facto, pretendeu defender uma vivência colonial que se estribasse na dignidade da pessoa humana, decorrente da sua percepção de uma antropologia cristã, que deveria respeitar os direitos dos índios. De modo que esta percepção evidencia um sentido de alteridade social, que aponta para a faceta universalista do português.
Este autor concebe um V Império que será deixado pelos portugueses à Humanidade num futuro moldado pelos parâmetros da cultura portuguesa, pela capacidade lusa de assumir um desígnio universalista e pelo anseio cristão de um mundo onde seja possível compaginar a felicidade pessoal e a harmonia social.
Na verdade, esta espiritualidade de Vieira aberta a um universalismo da relação com o outro ser humano de diversos padrões culturais antecipa o sentimento lusófono que se consubstancia nos nossos dias.
Contudo, após o falecimento do rei D. João IV, o Tribunal do Santo Ofício condenou-o ao silêncio devido à aparente heresia das suas visões proféticas carregadas de um sebastianismo, de um futuro V Império e de uma ética refundadora das relações laborais entre colonos e ameríndios brasileiros.
Com efeito, o Padre António Vieira transmitiu nos seus textos, como político e pregador, aos seus contemporâneos a vivência brasileira numa refinada prosa de sabor barroco, nomeadamente censurando, como ardente missionário, a forma cruel como os índios eram tratados pelos colonos. Assim, chama a atenção para dois milhões de índios que estavam em péssimas condições laborais, tendo difundido os seus textos impressos em Portugal, que mais tarde chegarão também ao Brasil.
[1] Miguel Real retrata a figura do Padre António Vieira num romance fascinante (Miguel Real, O sal da terra, Matosinhos, QuidNovi, 2008, 331 p.).
[2] António Dias Miguel, “Padre António Vieira”, Dicionário Enciclopédico da História de Portugal, Lisboa, Edições Alfa, 1990, p. 329.
Nuno Sotto Mayor Ferrão