Crónicas que tratam temas da cultura, da literatura, da política, da sociedade portuguesa e das realidades actuais do mundo em que vivemos. Em outros textos mais curtos farei considerações sobre temas de grande actualidade.
Crónicas que tratam temas da cultura, da literatura, da política, da sociedade portuguesa e das realidades actuais do mundo em que vivemos. Em outros textos mais curtos farei considerações sobre temas de grande actualidade.
Ruy Coelho, um polivalente compositor, maestro, pianista e crítico musical, agora redescoberto pelo investigador Edward Luiz Ayres de Abreu, foi votado ao esquecimento pela sociedade portuguesa, na segunda metade do século XX, devido, provavelmente, às inúmeras polémicas em que se envolveu com músicos portugueses eruditos e, talvez, também à colaboração que manteve com o Estado Novo. A prova disso está no facto de José Saramago, durante o PREC, o ter saneado de crítico musical do Diário de Notícias.
No entanto, outros factores complementares explicam, também, esse esquecimento (nas palavras deste investigador): a falta de um agente artístico que tenha promovido, na segunda metade do século XX, a sua obra e a inexistência de partituras editadas que facilitassem a interpretação musical.
Deste modo, apesar do seu colaboracionismo com o regime de Salazar, a sua obra revelou uma excepcional riqueza estética na diversidade de géneros e de influências estilísticas que cultivou.
O seu espólio histórico foi doado pela família à Biblioteca Nacional de Portugal a 18 de maio de 2011, tendo agora sido redescoberto e apresentado ao público com uma pequena exposição dos seus pertences e com a realização de concertos nesta Biblioteca, sendo duas das suas obras tocadas pela Orquestra Metropolitana de Lisboa nos dias 18 e 25 de Julho de 2014.
A formação musical começou na terra natal, na Banda Filarmónica de Alcácer do Sal. Continuou depois no Conservatório de Lisboa de 1904 a 1909 e terminou no estrangeiro sob a influência de Engelbert Humperdinck, Max Bruch, Arnold Schoenberg e Paul Vidal. Esta rica formação irá traduzir-se na polivalência das suas obras musicais e nas múltiplas influências estilísticas assimiladas.
A imensa versatilidade cultural fê-lo aproximar-se de compositores como Igor Stravinsky ou Manuel de Falla, e tanto de técnicas mais modernistas como a atonalidade ou mais tradicionalistas como os princípios neoclássicos de composição.
No regresso a Portugal, aproxima-se, inicialmente, dos artistas e dos escritores da geração da revista Orpheu, em particular colaborando com José de Almada Negreiros e José Pacheco em diversos bailados. O conhecimento das orientações programáticas e cívicas do movimento Renascença Portuguesa através de autores como Afonso Lopes Vieira ou António Correia de Oliveira incutiu-lhe um espírito patriótico que tentou impregnar em muitas das suas composições.
As suas obras musicais abarcam diversos géneros como as óperas, as sinfonias, as músicas para bailados e filmes (Alla-Arriba! e Camões,de 1942 e 1946, realizados por Leitão de Barros), concertos para piano e música de câmara. As composições de timbre patriótico refloresceram com a utilização de elementos ligados ao folclore, com as evocações historicistas e com as óperas cantadas em português, das quais se tornou um indefectível defensor. Foi, inclusivamente, o autor do hino da cidade de Lisboa.
É errado pensar-se que a sua obra traduz o ideário do Estado Novo. Colaborou com este regime autoritário como é evidente, tal como tinha colaborado, anteriormente, com o regime da 1ª República. Por exemplo, em 1913, apresentou no Teatro S. Carlos a Sinfonia Camoneana nº 1 (inspirada na obra de Gustav Mahler) com uma grandiosa orquestra de 500 músicos, tendo sido esta peça precedida por uma Conferência de Teófilo de Braga e, ainda, no mesmo ano apresentou a sua ópera Serão da Infanta com libreto deste prestigiado republicano. No mesmo espírito pragmático, irá compor uma ópera D. João IV para as Comemorações Centenárias da Independência de Portugal, em 1940, para o Salazarismo.
A forte personalidade enredou-o em múltiplas polémicas com músicos e eruditos portugueses, que prejudicaram a sua afirmação nacional, designadamente com compositores como Luís de Freitas Branco, José Vianna da Mota, Júlio Neuparth, Fernando Lopes-Graça, colaboradores da Seara Nova, entre outras figuras prestigiadas da cultura portuguesa. Algumas dessas controvérsias incidiram sobre as obras alheias ou a organização do teatro lírico nacional. Ajudando-o nesta campanha por uma ópera nacional, cantada em português, esteve o tenor alentejano Tomás Alcaide. Contudo, o excesso de acrimónia crítica em relação aos seus conterrâneos influenciou a forma preconceituosa como foi ajuizada, na época, a sua obra.
Ruy Coelho fez apresentações das suas composições durante a 1ª República e o Estado Novo no país. Todavia, o excesso de colaboracionismo político e a veia polemista impediram que fosse reconhecido pela sociedade portuguesa, pois o seu inegável mérito artístico é, claramente, independente da sua colaboração com estes dois regimes políticos. Revelou qualidades ecléticas ao experimentar diversos géneros e estilos musicais, mais ou menos vanguardistas, mas ressalvando neles um elevado padrão estético. Apesar de ter feito apresentações da sua obra por várias regiões do país, sobretudo no centro e sul de Portugal continental e na Madeira, foi mais reconhecido como um original compositor em vários países europeus e sul-americanos.
Em suma, a rica obra musical de Ruy Coelho encontra-se injustamente esquecida pois continua inédita, na sua grande maioria, em termos de partituras, de discografia e de exibição em concertos actuais. Daí o papel relevante que estão a assumir as investigações de Edward Luiz Ayres d’ Abreu e as divulgações da Biblioteca Nacional de Portugal e da Orquestra Metropolitana de Lisboa ao proporcionarem, ao público português, a redescoberta das suas valorosas composições.
Estas breves considerações alicerçam-se em alguns dados estatísticos que recolhi no útil site “Pordata” e analisei com algum cuidado. Embora a temática não seja inédita, julgo que desvendo alguns dados interessantes e algumas questões dignas de reflexão.
A Cultura humanista no nosso país e na Europa, nas últimas décadas, tem sido alvo da opressão dominante do paradigma tecnocrático dos políticos actuais e de outros factores sistémicos, que irei referir. O drama da empregabilidade tem reduzido os candidatos estudantis com vocação para as Humanidades, o que se tem revelado um problema, dado que as perspectivas humanistas têm sido secundarizadas e com estas condicionantes perde-se, nas nossas sociedades, sob pressão dos consumismos materialistas, a noção da necessidade da formação integral do Ser Humano[1].
A crise das Humanidades acompanha o esquecimento a que público português tem votado a Biblioteca Nacional de Portugal. Vejamos que, nos dados abaixo apresentados, não obstante o número de livros disponíveis tenha sido multiplicado por cinco (por arredondamento), o número de leitores, tendo variado neste período em estudo, permanece em cifras bastante idênticas comparando os números de leitores de 1960 e de 2008 (respectivamente 41.304 e 42.453).
Desta forma, o aumento da escolaridade da maioria da população portuguesa (sucessivamente de 4 anos do ensino primário, 6 anos do ensino primário e preparatório, 9 anos dos três ciclos do ensino básico até aos 12 anos previstos actualmente pelo Estado Português) tem conduzido a menores níveis de literacia, devido a uma complexidade de factores, como afirmam até à exaustão o fiscalista Henrique de Medina Carreira e o matemático Nuno Crato no programa “Plano Inclinado” da SIC-Notícias. Em suma, a democratização do ensino tem gerado mais pessoas escolarizadas, com mais anos de frequência escolar, mas menos capacitadas para ler, pensar, calcular e escrever com facilidade e correcção.
A imprensa acompanha estes baixos índices de literacia dos portugueses, uma vez que os jornais têm aumentado os seus leitores à custa dos diários gratuitos, da diminuição da densidade informativa e do aumento do espaço destinado às imagens que tornam mais apelativa a leitura a todos os portugueses. Com efeito, aumentam os recursos e os meios de informação e de divulgação da cultura, mas diminui a qualidade dos serviços prestados.
O fenómeno tecnocrático das nossas sociedades tem correspondência com a falta de formação ideológica dos nossos cidadãos que tem esvaziado as democracias Ocidentais do exercício da plena liberdade dos cidadãos pela força da “musculatura técnica”, naquilo a que os politólogos designam por “democracias musculadas”. Ora este facto tem potenciado o crescente divórcio entre os cidadãos e os políticos[2], porque os primeiros sentem que as suas escolhas contam pouco e que tudo já está, mais ou menos, predeterminado pelos constrangimentos das instituições comunitárias e das instituições financeiras.
As políticas culturais portuguesas, das últimas décadas, têm investido em equipamentos e infra-estruturas que concorrem para potenciar a democratização da cultura, mas convém reparar no facto do número de Bibliotecas crescer mais significativamente do que o número dos seus utilizadores. Em 1960 as Bibliotecas do país não chegavam a uma centena, enquanto em 2003 ultrapassavam já um milhar, tendo crescido 11.4 vezes. No mesmo período, o número de utilizadores situava-se em 1960 abaixo de um milhão de utilizadores, enquanto em 2003 o número de utilizadores pouco passava dos oito milhões e meio, tendo crescido 9 vezes[3].
Com efeito, tem havido uma efectiva democratização da cultura com o aumento do número de livros publicados e com idêntico fenómeno ao nível do número de edições e tiragens anuais das publicações periódicas, mas este aumento tem correspondido a critérios comerciais, ou seja, a oferta livreira tem aumentado devido às operações de “marketing” e aos títulos sensacionalistas que permitem grandes tiragens. Exemplo emblemático, desta tendência, foi o livro de Carolina Salgado que teve uma tiragem excepcionalmente elevada[4].
A publicação de livros entre 2000 e 2008, segundo os dados estatísticos que consultei, de acordo com os registos de títulos no Depósito Legal tem um crescimento anual de 3,3%, tendo os valores absolutos passado de 14066 em 2000 para 17778 em 2008. Assim, afigura-se-me que, eventualmente, tenham ocorrido tiragens maiores e mais edições de “best sellers nos últimos anos”, contudo a maioria das vezes prevalece a lógica econométrica de mercado de uma sociedade devassada pela iliteracia de consumos e gostos culturais qualitativamente questionáveis.
Em suma, tem-se verificado um avanço exponencial da cultura de massas em Portugal entre 1960 e 2008 com a construção de grandes espaços comerciais a venderem livros em quantidades impensáveis, com os espectáculos de música, dança, variedades a serem frequentados hoje em dia pela maioria da população, enquanto em 1960 estes espectáculos ao vivo eram muito raros e os espectadores, pelo restrito número, pertenciam às classes médias e às elites. Este fenómeno é, claramente, louvável, mas urge passar a outra etapa do amadurecimento das democracias europeias.
A solução para a iliteracia e para se superar a apatia política dos cidadãos passa por revalorizar os agentes e os estabelecimentos culturais que nos apresentam produtos de qualidade literária, estética e filosófica, porque, como muito bem diz o Dr. Mário Soares num excelente ensaio de história política, urge encontrar um novo paradigma político-cultural[5] que permita à Humanidade responder à ingente crise múltipla que as nossas sociedades nesta Era da Globalização Neoliberal enfrentam.
Acrescento, em conclusão, que só com o ressurgimento das Humanidades será possível encontrar esse novo paradigma que permita uma formação mais sustentada dos cidadãos no plano das suas bagagens culturais e das suas consciências éticas. Será, pois, com um renovado modelo político-cultural, de que deve fazer parte o combate, sem tréguas, à iliteracia e o desassombrado impulso às Humanidades, que será possível responder aos grandes desafios do presente e do futuro, pois só com estas variáveis será exequível, ao país e ao mundo, salvaguardar a formação integral dos cidadãos e a plena preservação do nosso “habitat” natural rumo a mundo melhor.
Nuno Sotto Mayor Ferrão
Anexo - dados extraídos do site Pordata
Biblioteca Nacional: livros e leitores
Livro
Indivíduo
Tempo
Livros
Leitores
1960
469.644
41.304
1961
476.345
34.867
1962
480.531
33.861
1963
488.972
32.502
1964
500.508
28.928
1965
505.675
30.983
1966
515.276
16.696
1967
533.998
17.557
1968
551.997
14.730
1969
561.702
13.400
1970
568.333
31.238
1971
582.253
38.367
1972
595.236
42.982
1973
608.764
37.489
1974
628.479
34.838
1975
658.585
58.232
1976
675.151
83.107
1977
693.060
67.219
1978
711.416
71.018
1979
728.711
65.104
1980
753.388
55.546
1981
773.984
56.301
1982
793.651
60.142
1983
816.437
36.638
1984
1.022.743
36.906
1985
2.026.763
53.286
1986
2.055.457
70.528
1987
2.084.991
67.780
1988
2.106.207
68.604
1989
2.139.644
65.099
1990
2.153.324
43.433
1991
2.175.385
40.492
1992
2.198.505
64.142
1993
2.222.436
64.484
1994
2.242.869
68.863
1995
2.260.420
70.548
1996
2.282.409
67.209
1997
2.303.996
61.054
1998
2.325.174
66.082
1999
2.348.660
x
2000
2.391.554
69.341
2001
2.415.429
62.454
2002
2.489.018
57.764
2003
2.505.074
58.546
2004
2.519.626
52.782
2005
2.533.067
49.193
2006
2.552.427
52.629
2007
2.593.837
43.386
2008
2.643.570
42.453
Fonte de Dados: BNP Fonte: PORDATA Última actualização: 2010-02-22 13:21:21
[1] Bento XVI, Encíclica – Caridade na verdade, Prior Velho, Edições Paulinas, 2009, pp. 109-120.
[2] Vide A nova primavera do político, org. Michel Wievieorka, Lisboa, Editora Guerra e Paz, 2007. Este livro que recolhe o contributo de vários intelectuais europeus fala, precisamente, do afastamento entre os cidadãos e os políticos e da premente necessidade de reabrir o debate para a indispensável reinvenção do “Welfare State”.
[3] Segundo os dados disponibilizados pelo site “Pordata”, cuja iniciativa pertenceu a António Barreto: em 1960 existiam no país 89 Bibliotecas e em 2003 já se contabilizaram 1018, enquanto o número de utilizadores no mesmo período passou de 957 113 para 8 641 276.
[4] Carolina Salgado e outros, Eu, Carolina – A história verdadeira, Lisboa, Edições Dom Quixote, 2006.
[5] Mário Soares, Elogio da política, Lisboa, Sextante Editora, 2009, pp. 80-87.