Crónicas que tratam temas da cultura, da literatura, da política, da sociedade portuguesa e das realidades actuais do mundo em que vivemos. Em outros textos mais curtos farei considerações sobre temas de grande actualidade.
Crónicas que tratam temas da cultura, da literatura, da política, da sociedade portuguesa e das realidades actuais do mundo em que vivemos. Em outros textos mais curtos farei considerações sobre temas de grande actualidade.
“(...) Psicologicamente notável é a deslocação da ‘paixão’ política para a pesquisa médico-científica – uma decisão consciente de descobrir novas rotas no mar ignoto dos meios de diagnóstico e de tratamento. (...)”.
Barahona Fernandes, Egas Moniz, pioneiro de descobrimentos médicos, Amadora, Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, 1983, p. 133.
António Caetano de Abreu Freire Egas Moniz foi uma personalidade polifacetada como académico, médico, escritor e político, tendo vivido no contexto do fim da monarquia constitucional a meados do regime salazarista. Com as suas descobertas neurológicas tornou-se o nome mais importante das ciências médicas portuguesas do século XX.
No final do século XIX, formou-se no Colégio Jesuíta de S. Fiel mas acabou por se afastar da prática da religião católica, sem se deixar contaminar pelo vírus anticlerical das hostes republicanas, que veio a enfileirar. Socialmente descendeu de uma família da nobreza provinciana da Beira Litoral. Apesar desses pergaminhos nobiliárquicos, foi educado no culto do trabalho, como era tradicional na época, o que se vincou na sua vivência com a emigração dos familiares mais próximos.
Formou-se em Medicina na Universidade de Coimbra, em 1898, com média final de 16 valores. Entretanto, em 1901, prestou provas de doutoramento na mesma instituição com uma dissertação que versou as vivências sexuais, num contexto sócio-histórico de repressão dos impulsos libidinosos, onde foi aprovado com 17 valores, tornando-se lente nesta Universidade e, dez anos mais tarde, transferindo-se para a Universidade de Lisboa. Nesta altura, foi promovido a professor catedrático de Neurologia, após uma intensa formação com o seu Mestre Augusto Rocha e de um estágio em Paris.
Na conjuntura finissecular, foi-se impregnando de espírito liberal no contacto com a juventude da época. Descontente com os rumos políticos do país, que colocaram Portugal à beira da bancarrota e do desespero patriótico, aproximou-se dos críticos do rotativismo parlamentar, dado que os partidos do statu quo colocavam os homens à frente das ideias políticas.
Neste sentido, iniciou a sua atividade política como deputado, em 1903, na Monarquia Constitucional, como seguidor da disssidência Progressista de José Alpoim. Nesta conjuntura, foi várias vezes deputado e assumiu-se contra o radicalismo da ditadura de João Franco, tendo-se transformado num indefectível do regime republicano, com o aprofundar da crise do regime monárquico.
Com a instauração da República, tornou-se deputado na Assembleia Constituinte em 1911, destacando-se pelas suas qualidades oratórias. Foi, ainda, várias vezes deputado na 1ª República. Em 1916, foi preso no conturbado contexto político-social, salientando-se pelo seu antagonismo a Afonso Costa. Ideologicamente, foi um liberal moderado, que sustentou o reatamento das relações diplomáticas com a Santa Sé, uma vez que tinha ficado bastante incomodado com o anticlericalismo primário de Afonso Costa.
Em 1917, tornou-se o principal dirigente do Partido Centrista, logo integrado no Partido Nacional Republicano como suporte da afirmação política de Sidónio Pais. Nesta época, foi líder parlamentar do grupo sidonista no Governo, embora se tenha afastado das prepotências cesaristas de Sidónio Pais, fazendo-nos lembrar da atitude do atual dirigente turco Recep Erdogan com as suas ambições presidencialistas. Mas, no âmbito do consulado sidonista, foi ainda Secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros e veio a desempenhar o cargo de Presidente da Delegação Portuguesa à Conferência de Paz de Paris em 1918-1919.
Desgostoso com o rumo político português, resolve apostar na investigação científica. Nesta sua caminhada, obteve um inegável sucesso com as suas pesquisas médicas pioneiras nos campos da neurologia e da psiquiatria com as técnicas da angiografia cerebral (arteriografia), em 1927, e a leucotomia pré-frontal, em 1935, que permitiram respetivamente diagnosticar tumores cerebrais e aplicar a neurocirurgia à cura de certas psicoses. Depois destes retumbantes êxitos técnico-científicos, foi distinguido com o Prémio Nobel da Fisiologia e Medicina em 1949.
Escreveu vasta obra ligada à ciência médica e muitos ensaios ligados à arte, patenteando o seu pendor humanista tão típico nestas gerações de médicos.
As suas técnicas cirúrgicas inovadoras foram ensaiadas no Hospital Júlio de Matos e no Hospital de Santa Maria. A técnica da leucotomia foi alvo de grande polémica pública, mas facultou a compreensão aprofundada das bases cerebrais da vida psíquica normal e patológica.
Contudo, o seu prestígio começou em 1927 como inventor da técnica da arteriografia cerebral, já com 53 anos, que permitiu diagnosticar com precisão doenças e tumores cerebrais. Foi - segundo o reputado psiquiatra Barahona Fernandes - um dos primeiros neuropsiquiatras a divulgar, em Portugal, a doutrina psicanalítica de Sigmund Freud e as suas virtudes terapêuticas. Egas Moniz, com as suas descobertas técnico-científicas, concedeu um notável impulso à neurocirurgia.
Este médico, professor, investigador morou em Lisboa num palacete estilo D. João V, na Avenida Luís Bivar, repleto de uma rica biblioteca e recheado de requintadas obras de arte. Foi uma personalidade multifacetada que tanto resolvia os problemas triviais do quotidiano como se extasiava com os aspetos sublimes da arte e da natureza, sabendo manter um espírito estóico ante as dificuldades vivenciais e uma energia singular no seu percurso de investigador científico.
Possuidor de uma vasta cultura humanista, tão distante das visões tecnocráticas preponderantes nos dias de hoje, debruçou-se nos seus ensaios sobre figuras históricas carismáticas como Camilo Castelo Branco, o Papa João XXI, José Malhoa ou Maurício de Almeida. De facto, escreveu muito, além dos temas médicos, tendo abordado escritores e artistas, alguns por especial interesse no tema da loucura humana, mas muitos outros por mera motivação estética, evidenciando a sua mentalidade de investigador em trabalhos como Júlio Dinis e a sua obra.
Aos 74 anos escreveu as suas memórias de investigador no incontornável livro (essencial para compreender as suas invenções técnico-científicas) intitulado Confidências de um investigador científico. Trabalhou até à derradeira hora, então com 81 anos, na clínica particular e no hospital, além de ter presidido durante vários anos à Academia das Ciências de Lisboa.
Em conclusão, Egas Moniz desconstruiu o complexo de inferoridade dos portugueses em termos científicos com as suas descobertas médicas. Afirmou-se como um médico humanista preocupado com o bem-estar psíquico dos seus semelhantes, que eram muitas vezes remetidos para manicómios. No tempo da Ditadura Salazarista, opôs-se a este regime autocrático pelo facto deste oprimir as liberdades individuais, embora sem grande ativismo político nestas décadas finais da sua vida.
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Barahona Fernandes, Egas Moniz, pioneiro de descobrimentos médicos, Amadora, Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, 1983, 169 p..
Sérgio Campos Matos, “António Caetano de Abreu Freire Egas Moniz”, in Dicionário Enciclopédico da História de Portugal, s.l., Publicações Alfa, 1990, pp. 201-202.
Alfredo Augusto Freire de Andrade (1859-1929) foi um oficial do Exército Português, um político e um professor que marcou a sociedade portuguesa do seu tempo. Esteve desde os seus 31 anos muito ligado à colónia de Moçambique integrando a Comissão que definiu as fronteiras deste território. Formou-se em Geologia em Paris em 1888 e foi professor na Escola do Exército e na Faculdade de Ciências de Lisboa na Escola Politécnica. Durante o regime monárquico foi ajudante de campo do rei e chefe de gabinete do Comissário Régio, António Enes, de 1894 a 1895 em Moçambique.
Foi nesta época governador interino de Lourenço Marques e Governador Geral de Moçambique de 1906 a 1910. Aderindo ao Partido Republicano Português após a revolução de 5 de outubro veio a exercer alguns cargos diplomáticos de relevo. Foi Ministro dos Negócios Estrangeiros em 1914, representou Portugal na Conferência de Paz em Paris em 1918-1919, na Sociedade das Nações nos anos 20 e presidiu, em 1921, à delegação portuguesa às negociações comerciais com a União Sul-Africana[1].
O general Freire de Andrade levantou momentaneamente a tese da alienação do porto e do caminho de ferro de Lourenço Marques à União Sul-Africana em 1919 durante a Conferência de Paz em Paris[2], porque esta infraestrutura onerava o Tesouro Público da pátria portuguesa e servia, sobretudo, o território do país vizinho. Esta sua posição despolutou alguma controvérsia na sociedade portuguesa, porque representava uma conceção contrária à ideia generalizada da inalienabilidade dos territórios coloniais portugueses que vingou no contexto da primeira Guerra Mundial (1914-1918), a tal ponto que os territórios de Quionga, em Moçambique, voltaram à soberania portuguesa no contexto do pós-guerra depois de terem estado sob controle dos alemães desde 1898.
Por conseguinte, esta perspetiva de Freire de Andrade era bastante heterodoxa, dado que segundo o ponto de vista oficial se reputava inadmissível o abandono ou a alienação de partes dos territórios coloniais, uma vez que desde o fim do século XIX se concebeu que o país estava unido de “forma sacralizada” ao seu império colonial. Assim, quaisquer parcelas por insignificantes que fossem geo-estrategicamente eram para as entidades portuguesas inegociáveis, nomeadamente na medida em que essa cedência podia constituir um precedente grave para as ambições anexionistas da União Sul-Africana. No entanto, este prestigiado militar e diplomata achava que a venda destas infraestruturas de transporte ferroviário de Moçambique poderiam render ao país um bom encaixe financeiro, sem perda significativa em termos de soberania sobre esses territórios[3]
Nuno Sotto Mayor Ferrão
[1] “Alfredo Augusto Freire de Andrade”, in Parlamentares e Ministros da 1ª República, Coord. A.H. Oliveira Marques, Lisboa, Edição Assembleia da República, 2000, p. 92.
[2] José Medeiros Ferreira, Portugal na Conferência de Paz – Paris, 1919, Lisboa, Quetzal Editores, 1992, p. 24.
[3] Na realidade, em 1922 aquando do exercício de delegado português para a renegociação da Convenção entre Moçambique e a União Sul-Africana Freire de Andrade mudou um pouco a sua posição, afirmando que seria preferível que uma companhia portuguesa privada administrasse o porto e o caminho de ferro de Lourenço Marques, porque dessa forma seriam acautelados os interesses financeiros e de soberania do Estado português e também os interesses económicos da União Sul-Africana. Concebia, portanto, uma solução diferente para o problema da falta de manutenção daqueles equipamentos infraestruturais daquele que tinha proposto em 1919. Cf. Alfredo Freire de Andrade, Relatório Reservado, Lisboa, Composto e Impresso Rua Eugénio dos Santos 118 Lisboa, 1922, p. 23.
Nos anos vinte, do século passado, pairaram inúmeras ameaças internacionais à soberania colonial portuguesa. Deste modo, foram aparecendo diversos cenários que representaram ameaças específicas, consoante as conjunturas nacionais e internacionais vividas. Contudo, duas fortes críticas à soberania portuguesa nas suas colónias perpassaram os diversos fóruns internacionais e as opiniões públicas estrangeiras entre as duas guerras mundiais (1919-1945).
No momento em que Portugal se libertava das campanhas de pacificação nas colónias africanas, urgia enraizar a autoridade do Estado nas colónias, em conformidade com o critério internacionalmente aceite desde a Conferênia de Berlim de 1884-1885 e confirmada na Convenção de Saint-Germain-en-Laye de 1919. Assim, desde o fim da 1ª República que o país enfrentava uma firme contestação internacional à sua legitimidade colonial. Com efeito, aparecem duras críticas da opinião pública internacional à deficiente gestão colonial portuguesa, ou seja, à incapacidade do Estado português fazer valer a sua autoridade nas colónias e de lhes garantir meios de desenvolvimento[1].
Por outro lado, outros países colonizadores, cobiçosos das colónias portuguesas, acusavam-nos de continuar a “prática da escravatura”, em Angola e em Moçambique, devido ao aproveitamento desumano da mão-de-obra autóctone. Em função destes pretensos defeitos administrantes de Portugal surgem cobiças estrangeiras à posse das colónias portuguesas.
A especificidade Moçambicana, no quadro colonial português, nos anos vinte ficou-se a dever a um conjunto de factores endógenos e exógenos. Em primeiro lugar, verificaram-se estreitas relações comerciais entre a África do Sul e Moçambique devido à mão-de-obra moçambicana usada nas minas da região do Rand e à utilização do porto de Lourenço Marques como local de embarque dos produtos de exportação sul-africanos, o que era uma situação que já vinha do início do século XX e, designadamente, da Convenção de 1909 com o Estado do Traansval. Em segundo lugar, houve um ambiente favorável à “desnacionalização”, da mentalidade das populações em Moçambique, caracterizado pela autoridade exercida em certas regiões desta colónia por parte de Companhias Majestáticas e pelo peso significativo que as comunidades estrangeiras tiveram neste território ao ponto de existirem periódicos publicados noutras línguas como o Lourenço Marques Guardian.
É neste contexto específico que se explica a pretensão da União Sul Africana de anexar Moçambique, o que deu origem a teses controversas que emergiram nesta colónia chegando alguns grupos da sociedade moçambicana a defender ideias radicais e profundamente heterodoxas de desvinculação do Estado Português, porque tinham interesses e negócios estreitos com alguns Estados vizinhos. Daí que, por exemplo, os políticos sul-africanos presentes na Conferência de Paz de 1919 em Paris, Louis Botha e Jan Christiaan Smuts, tenham pressionado Portugal para que cedesse a estratégica cidade de Lourenço Marques à União Sul-Africana[2].
Na verdade, nos anos trinta a União Sul-Africana continuou sob o impulso do carismático general Smuts a pretender incoporar Moçambique no seu território e disso estavam bem conscientes os políticos portugueses. Por exemplo, em 1939 o ministro das colónias, José Vieira Machado temia, em desabafo de consciência com António de Oliveira Salazar[3] em pleno conflito mundial, que a União, sob pretexto de que Moçambique se encontrava militarmente indefesa, se aproveitasse para garnecer a sua defesa e se apoderasse subrepticiamente das funções de soberania de Portugal dando por consumado um facto há muito desejado.
Na mesma década, pairou o perigo da Alemanha ou da Inglaterra anexaram o norte de Moçambique com o apoio explícito de habitantes da colónia. Já nos anos quarenta, Smuts protagonizou a defesa de uma União Pan-Africana que ligasse economicamente os Estados livres do Sul de África, o que foi um factor impulsionador das ideias emancipatórias de Moçambique do domínio português. Na realidade, a possibilidade de independência estaria escorada em fortes conexões económicas com os países vizinhos.
Em resumo, estes factos históricos configuraram ameaças reais e imaginárias à soberania portuguesa nas colónias africanas e, em particular, a Moçambique que pairaram nesta conjuntura da primeira metade do século XX.
Nuno Sotto Mayor Ferrão
[1] Talvez a mais importante voz critica tenha sido a do sociólogo norte-americano Edward Ross que publicou um relatório que apresentou à Sociedade das Nações em 1925, que alcançou um notável êxito mediático, denunciando muitos erros e incapacidades da administração colonial portuguesa da época.
[2] José Medeiros Ferreira, Portugal na Conferência de Paz – Paris, 1919, Lisboa, Quetzal Editores, 1992, p. 31.
[3]Carta do ministro das colónias J. Vieira Machado a Salazar de 17 de Novembro de 1939, in Arquivo Oliveira Salazar/ Correspondência Oficial/ Ultramar – Pasta 9 A, ff. 94-103 ( Arquivo Nacional da Torre do Tombo).