Crónicas que tratam temas da cultura, da literatura, da política, da sociedade portuguesa e das realidades actuais do mundo em que vivemos. Em outros textos mais curtos farei considerações sobre temas de grande actualidade.
Crónicas que tratam temas da cultura, da literatura, da política, da sociedade portuguesa e das realidades actuais do mundo em que vivemos. Em outros textos mais curtos farei considerações sobre temas de grande actualidade.
Matilde Rosa Lopes de Araújo nasceu, em Lisboa, a 20 de junho de 1921, ao tempo da 1ª República numa quinta dos avós, em Benfica e, por isso, neste ano de 2021, celebramos o primeiro Centenário do seu nascimento. Estudou no tempo da Ditadura Militar e do Estado Novo, tendo beneficiado de preceptores em casa. Teve uma formação musical, frequentando o Curso Superior do Conservatório em Lisboa, daí, talvez, a sua propensão para a criação poética como musicalidade. Matilde tinha dois irmãos e nunca se casou, nem teve filhos.
Em 1946, terminou o seu curso na Faculdade de Letras da Universidade Clássica de Lisboa, tendo-se licenciado em Filologia Românica com uma tese sobre o jornalismo[1]. Como estudante, foi aluna de Jacinto de Prado Coelho e de Vitorino Nemésio e colega e grande amiga de Sebastião Salgado, poeta de renome, tendo com ele trocado, com muita frequência, correspondência desde 1944. Travou, também, amizade com outros estudantes da Faculdade de Letras de Lisboa como David-Mourão Ferreira, Helena Cidade Moura, Maria de Jesus Barroso e Urbano Tavares Rodrigues[2].
Começou a sua atividade literária aos 22 anos com o livro de ficção A Garrana, cujo enredo versava sobre o tema da eutanásia. Enquanto estudante universitária publicou este livro, assim como alguns artigos com que colaborou na revista Mundo Literário.
Foi professora da disciplina de Português e de Literatura Portuguesa na Escola Industrial Fonseca Benevides, em Lisboa e, também, em escolas no Barreiro, no Porto, em Portalegre, em Elvas, além de ter sido formadora de professores na Escola do Magistério Primário de Lisboa.
Em 1965, a autora, como membro da Direção da Sociedade Portuguesa de Escritores, viu as instalações deste grémio literário serem invadidas por agentes da PIDE, que demitiu a direção em bloco, porquanto esta tinha premiado o trabalho literário do angolano José Luandino Vieira, em pleno contexto da guerra colonial, que se encontrava preso no campo de concentração do Tarrafal.
No âmbito da sua intervenção cívica, dedicou-se à defesa dos Direitos das Crianças através de alguns dos seus livros e mediante a intervenção em organismos como a UNICEF-Portugal e o Instituto de Apoio à Criança. Esta preocupação cívica e literária, na sua poesia, com as crianças que sofrem aproximam-na das correntes neorrealistas. Nos seus poemas aparecem muitas vezes abordagens centradas na intimidade do eu, mas com uma preocupação com as fragilidades e dificuldades do Outro, em especial, pelos que são vítimas de marginalização social[3].
Afirmou-se como escritora de dezenas de livros de contos e de poesias, tanto para adultos como para crianças, entre 1943 e 2008, com publicações nacionais e estrangeiras. Os seus livros trataram os temas da infância dourada, da infância agredida e da infância projeto. Reflectiu sobre a importância da literatura infanto-juvenil e a educação do sentimento poético na criança. O seu primeiro livro infantil intitulado O Livro da Tila, de 1957, foi alvo de transposição musical, através das composições de Fernando Lopes-Graça, tornando-se uma das suas obras-primas.
Recorre, nos seus livros infantis, a uma sensibilidade especial, relativamente ao mundo das crianças que esteve patente nas inúmeras referências ao brinquedo, ao jogo simbólico, às histórias tradicionais, às canções infantis, às lengalengas, às rimas popularizadas entre as crianças e ao encantador mundo de animais humanizados, fundamentais na literatura infantil desde As Fábulas de Jean de la Fontaine, datadas do século XVII, que terá certamente influenciado a autora, como o reconhece José António Gomes.
Subjacente à sua poesia infanto-juvenil encontra-se a noção de que as crianças garantem, pela sua simplicidade e autenticidade, uma alavanca para um futuro ridente, votado ao progresso social de uma sociedade mais livre, igualitária e respeitadora das diferenças. No entanto, a estética poética, presente na sua obra, está marcada por um cunho tradicionalista e classicizante, que carrega a leveza de um lirismo encantatório[4]. A sua poesia transporta uma sensibilidade atenta ao cosmos, em perfeita comunhão com a natureza, com os seres vivos numa dialética franciscana com Deus.
O seu labor intenso na escrita e o seu prestígio foram reconhecidos, em 1980, com o Grande Prémio de Literatura para Crianças da Fundação Calouste Gulbenkian; em 1991, no Brasil, com o prémio para o melhor livro estrangeiro atribuído ao livro O Palhaço Verde pela Associação Paulista de Críticos de Arte e, em 2003, com o grau honorífico de Grande Oficial da Ordem do Infante D. Henrique atribuído pelo Presidente da República, Jorge Sampaio. Por fim, em 2004, recebeu o Prémio Carreira da Sociedade Portuguesa de Autores.
Foi, também, uma colaboradora de jornais nacionais, regionais e de revistas, de que realço os seguintes periódicos A Capital, República, Diário de Lisboa, Diário de Notícias, Comércio do Funchal, Jornal do Fundão, Seara Nova e Colóquio/Letras, entre outros.
Das dezenas de obras publicadas, ao longo de uma longa carreira de 65 anos, de 1943 a 2008, destaco as mais conhecidas: O livro de Tila, de 1957; O Palhoço Verde, de 1960; O Sol e os meninos dos pés frios, de 1972; Fadas Verdes, de 1994; O Chão e a Estrela, de 1997. Nas suas obras perpassam realidades e sentimentos como a alegria, o amor, a amizade, a infância, a velhice, a paz, o perdão e a morte.
A 6 de julho de 2010, Matilde Rosa Araújo faleceu com 89 anos em Lisboa. O seu corpo esteve em câmara ardente na Sociedade Portuguesa de Autores, tendo seguido para o talhão dos artistas no Cemitério dos Prazeres.
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[1] Matilde Rosa Araújo, A reportagem como género: génese do jornalismo através da constante histórico-literária (tese de licenciatura em Filologia Românica), Lisboa, Ed. M. Araújo,1946.
[4] Fernando J. B. Martinho, «A Poesia Portuguesa dos Anos 50», in AA.VV., A Phala – Edição Especial – Um Século de Poesia, Lisboa, Assírio & Alvim, 1988, p. 118-25.
Joaquim Zeferino, pescador da Ericeira, com uma tez curtida pelo Sol e pela Vida aprestava-se a embarcar para uma nova viagem, de longo curso, no alto mar para a pesca do Bacalhau nas Águas Frias do Mar da Noruega. A sua ausência por longas semanas despertava na sua mulher, Ermelinda, e nos seus filhos, Paula e Fernando, um sentimento de profunda saudade. Joaquim para mitigar este sentimento costumava despedir-se com um forte e sentido amplexo a Ermelinda, a Paula e a Fernando. Desta vez, com uma sensação premonitória de algo a acontecer, que extravasou a expressão pura do afecto, sorriu e chorou, o que os deixou muito comovidos.
Ermelinda perguntou, então, a Joaquim:
- Homem, o que se passa contigo?
- Cheira-me que algo vai acontecer!
- Mas o quê, Homem?
- Alguma tragédia que o Mar trará…
- Deixa-te de tolices que assustas os miúdos!!
Passada esta curta troca de palavras e de afectos, Joaquim começou a fazer os preparativos para a sua longa jornada de labuta. Juntou os seus pertences, alguma roupa e alguns enlatados para a sua viagem aos Mares Nórdicos. Entretanto, Quim, como era conhecido no seu círculo íntimo, saiu para ir ao café, junto às Ribas, despedir-se dos amigos com quem se costumava encontrar, com frequência. De facto, o companheirismo, a solidariedade e a união fraterna eram traços bem característicos da comunidade piscatória. Antes de embarcar, Joaquim, cristão devoto, passou pela Capela de Santo António para rezar uma prece, rogando a Nossa Senhora da Boa Viagem uma jornada tranquila às águas do “Bacalhau”.
Ao início do dia seguinte, transcorria o ano de 2011, dirigiu-se com alguns companheiros ao Porto de Peniche, de onde iria sair o barco que os levaria à pescaria do “fiel amigo”. Joaquim, mal o barco entrou no Oceano Atlântico, benzeu-se pedindo a Deus uma viagem tranquila, pois, apesar da sua longa experiência, o respeito que as vagas marítimas lhe mereciam faziam-no ter recorrentemente este gesto simbólico. Nos primeiros dias a viagem correu sem sobressaltos, no entanto na segunda semana de viagem houve um dia em que tiveram de enfrentar uma violenta tempestade que provocou vagas alterosas. A união e a proficiência deste grupo de pescadores eram bem visíveis neste tipo de situações, além de que o barco era bem resistente.
A dada altura o timoneiro solta um brado aflito da ponte de comando:
- Há navio a naufragar a estibordo!
Diz a tripulação em uníssono:
- Vamos acudir!
- Temos que ter cuidado, mantendo a distância, para não chocarmos com o outro barco em apuros.
- Sim! Mas temos de agir!
- Lancemos os nossos botes e as bóias salva-vidas para os socorrer!
Joaquim Zeferino lançando, energicamente, mão destes instrumentos de socorro marítimo, mal o barco se aproximou, arremessou-os para junto dos náufragos. A tempestade rugia, assustadoramente ao mais experimentado pescador, e o mar agitado tornava o barco cambaleante, mas Joaquim habituado a estas lides deu consigo a meditar, instantaneamente, que era nos momentos de tormentas que a unidade do género humano se via, pois que da tripulação que estava a ser resgatada se desconhecia, inclusivamente, a nacionalidade.
Após grandes esforços para salvar a tripulação do barco naufragado, tendo sido, ainda, solicitada a ajuda de um navio que navegava nas proximidades, verificou-se que infelizmente tinham perdido a vida três náufragos. Foi, contudo, para Joaquim uma sensação de grande alívio saber que pôde, com os seus camaradas de bordo, salvar algumas dezenas de seres humanos que andavam na faina piscatória.
Perguntou-lhes Joaquim na sua inata curiosidade:
- Qual é a vossa nacionalidade? Quel es votre nacionalité? What is your nacionality?
- We are english, from Portsmouth.
Trocadas algumas outras impressões, os náufragos foram abrigados do temporal no interior do barco e procedeu-se ao socorro dos feridos. Foram agasalhados e deram-lhes alguns víveres para recuperarem forças do extenuante sacrifício que se viram obrigados a fazer para conseguirem sobreviver. Logo se combinou com o pessoal do outro navio inglês, alertado, que mal o temporal amainasse se faria o transbordo dos náufragos, uma vez que o barco que submergiu pertencia à mesma companhia do outro navio que respondeu ao pedido de socorro.
Entretanto, a viagem do barco “Nau Catrineta”, assim se chama a embarcação em que Joaquim Zeferino seguia, pôde prosseguir em direcção às terras frias da Noruega, tendo contudo enfrentado, ainda, novas tempestades sem que se tenham verificado novos contratempos de permeio. Feitas as pescarias, ao longo de vários dias, do “fiel amigo”, como é popularmente conhecido o bacalhau pelas mil e uma maneiras de o cozinhar, teve a tripulação oportunidade de regressar à pátria com uma carga muito inferior à esperada. Infelizmente, para Joaquim Zeferino e seus camaradas de labuta, o preço do bacalhau tinha descido, a sua abundante pesca e a constante contaminação dos mares com escórias das explorações petrolíferas tinham tornado estas jornadas a bordo dos bacalhoeiros bastante menos rentáveis.
Na viagem, de regresso à pátria, Joaquim Zeferino sentiu uma sensação ambivalente de enormes saudades de Ermelinda, de Paula e de Fernando e, simultaneamente, uma constrangedora decepção por saber que a pescaria tinha sido pouco produtiva. Joaquim, apesar da sua fraca escolaridade, possuía uma lucidez e uma sensatez, invulgares, escoradas numa fé cristã inabalável que lhe apaziguava a alma com laivos de esperança. Por isso, resolveu pensar que esse contragosto se recomporia.
No meio deste turbilhão emocional, Joaquim e seus companheiros foram recebidos em apoteótica recepção, da parte da comunidade piscatória Ericeirense e das entidades locais, porque desta vez os pescadores da Ericeira desembarcaram na praia das Ribas e os restantes seguiram viagem até ao porto de Peniche. Assim, as pessoas que os recebiam manifestavam uma particular comoção pelo heroísmo e bravura com que estes humildes pescadores salvaram, no meio de uma violenta tempestade em pleno Oceano Atlântico, dezenas de náufragos estrangeiros. Joaquim, pela sua alma generosa, cheia de uma doce bondade, sempre foi acarinhado nesta terra de sãs convivências, mas o seu prestígio de homem de bem, de coragem e de boa vontade cresceu com a circulação desta notícia na Ericeira e nas suas imediações.
No entanto, as marés da vida de Joaquim estavam longe de ser amenas, quase parecendo as marés vivas oceânicas que tanto conhecia e respeitava. Os fracos resultados da venda do bacalhau levaram o Mestre e dono da embarcação “Nau Catrineta” a confessar a Joaquim que teria, com grande probabilidade, de diminuir os salários da sua tripulação.
O nosso personagem, oprimido com a notícia, propôs-lhe com grande angústia que pagasse os salários combinados, mas que, no limite, se fosse preciso vendesse a sua embarcação, dado que o negócio da pesca e a salga do bacalhau estava pelos “mares da amargura”. Este prudente conselho, de Joaquim a Mestre André, convenceu-o. Assim, poucos dias após esta conversa franca, Mestre André vende o seu barco e num gesto inusitado paga aos seus assalariados um montante bastante inferior ao acordado, o que deixa Joaquim e os seus companheiros muito indignados e revoltados com esta injusta atitude. Joaquim, homem de bom coração e de redobrada reputação devido ao seu heroísmo, incita os seus companheiros, com o apoio do sindicato dos pescadores, a iniciarem uma judicialização da contenda.
Nesta altura, Joaquim Zeferino, com 52 anos de idade, tem de enfrentar uma ingrata situação de desemprego, mas graças ao seu prestígio ético e aos biscates que faz consegue ir sobrevivendo sem desesperar. Vale-lhe ainda, neste tempo de penúria, a mão amiga dos seus familiares, dos seus irmãos, que lhe dão o apoio financeiro para se amanhar no sustento do seu “doce lar”.
O nosso protagonista, cheio das suas férreas convicções, apesar do abatimento moral resultante do desemprego e da necessidade de aceitar as ajudas familiares, não abdica da reivindicação dos legítimos Direitos, seus e dos respectivos companheiros, de ser ressarcido das trafulhices do seu patrão e incita-os à resolução judicial da injustiça cometida. Esta sua fibra moral é muito admirada pelos seus amigos, pela Ermelinda, pela Paula e pelo Fernando que o acarinham pela sua abnegação cívica a favor dos legítimos Direitos dos pescadores lesados.
Este momento de crise laboral foi para Joaquim Zeferino bastante reconstrutivo, pois pelo seu bom coração tornou-se rendeiro de um proprietário rural com terras em Mafra, dedicou-se à realização de biscates e pôde empenhar-se como voluntário em obras de beneficência social promovidas pela Igreja de São Pedro, da Ericeira. Esta situação apaziguou o seu espírito generoso por poder, num tempo de uma violenta crise económica, nacional e internacional, garantir uma subsistência digna e, ao mesmo tempo, poder concretizar uma obra social a favor dos seus semelhantes mais próximos. Todavia, foi do seu íntimo que lhe brotou essa satisfação e não tanto das formas exteriores de reconhecimento, uma vez que o fez por convicção e por um sentimento de profunda compaixão para com os seus conterrâneos.
Nuno Sotto Mayor Ferrão
Monumento ao bacalhoeiro – Freguesia de Lavos (Figueira da Foz)