Crónicas que tratam temas da cultura, da literatura, da política, da sociedade portuguesa e das realidades actuais do mundo em que vivemos. Em outros textos mais curtos farei considerações sobre temas de grande actualidade.
Crónicas que tratam temas da cultura, da literatura, da política, da sociedade portuguesa e das realidades actuais do mundo em que vivemos. Em outros textos mais curtos farei considerações sobre temas de grande actualidade.
Joly Braga Santos, nascido em Lisboa em 1924, foi um compositor de talento, um maestro, um professor e um crítico musical português de grande destaque. Foi discípulo do grande compositor Luís de Freitas Branco, após ter sido seu aluno de violino e de composição no Conservatório de Lisboa. O músico Pedro de Freitas Branco foi um dos divulgadores internacionais da sua obra. Como compreenderemos, nesta abordagem de análise, o mérito da sua obra reside em ter conseguido compaginar, como poucos cultores do espírito, a tradição e a modernidade, alavancando-o para uma celebridade intemporal.
Na primeira fase da sua carreira musical (1942-1959) inspirou-se na tradição folclórica portuguesa, tendo, também, sido moldado pela matriz compositiva clássica, de Ludwig Van Beethoven, na senda do seu Mestre. Neste período, criou as suas primeiras 4 sinfonias e compôs música para textos de poetas portugueses (Antero de Quental, Fernando Pessoa e Luís Vaz de Camões).
Nesta medida, Joly Braga Santos conseguiu ultrapassar a estratégia cultural modernista radical sustentada por José de Almada-Negreiros, no início do século XX, que disse “É preciso substituir na admiração e no exemplo os velhos nomes de Camões, de Vítor Hugo, e de Dante pelos Génios de Invenção: Edison, Marinietti, Pasteur, Elchriet, Marconi, Picasso, e o padre português, Gomes de Himalaia“ (José de Almada-Negreiros, Ultimatum Futurista às Gerações Portuguesas do Século XX, Lisboa, Edições Ática, 2000, p. 13), ao encontrar ao longo da sua carreira um ponto de equilíbrio entre essas tendências estéticas ambivalentes.
Na segunda fase da sua produção musical (1961-1988), resultado da experiência e amadurecimento como bolseiro, de composição e de direção de orquestra, em Itália e, mais tarde, na sua labuta de diretor de orquestra em Portugal, encetou um estilo de criação modernista sem renegar as suas aprendizagens anteriores. Assim, em 1965 compôs a sua obra-prima a 5ª Sinfonia, já numa estética modernista permeada pela matriz desconstrutivista das vanguardas artísticas, sem abafar o sentido melódico que o caracterizou.
O auge da sua carreira musical foi obtido com a composição da ópera Trilogia das Barcas, baseado numa peça teatral de Gil Vicente, que o consagrou como um dos expoentes da composição lírica portuguesa. Este percurso de conciliação de valores estéticos ambivalentes valeu-lhe o reconhecimento público, com a UNESCO a classificá-lo como um dos 10 melhores compositores de música contemporânea e com a atribuição do galardão honorífico da Ordem de Sant’iago da Espada pelo Presidente da República Portuguesa, António Ramalho Eanes, em 1977.
Em conclusão, o seu exemplo de ecletismo cultural deve servir-nos de lição para superarmos a dicotomia entre o Humanismo Clássico e a Tecnocracia imbuída de um radicalismo exacerbado.
É de grande complexidade a definição de uma obra de arte, e não querendo imiscuir-me em alongadas discussões académicas, deixo aqui esta simples enunciação conceptual: uma obra de arte é o produto de qualquer um dos domínios da criação estética ou simbólica do Homem ( literatura, música, teatro, artes plásticas, artes decorativas, sétima arte, arquitectura, etc)[1].
Desde os tempos mais recônditos da Pré-História, durante o Paleolítico, o Homem inventou maneiras de se exprimir simbolicamente através de pinturas rupestres, ou de pequenas estatuetas, que representavam elementos fundamentais da sobrevivência humana. Já, nesta época, se faziam sentir, pois, as necessidades de expressão artística, não obstante a sua forte ligação com as iminentes necessidades de ordem material. Este relevante instinto humano faz-nos compreender a verdade da afirmação Bíblica: “nem só de pão vive o Homem”[2]…
Numa segunda fase da História da Humanidade, em particular com a Civilização Helénica nasce a dimensão estética da arte associada à humana capacidade de reflexão[3]. Neste período predomina em toda a criação artística um conjunto de cânones (ordem, equilíbrio, proporcionalidade, simetria, estabilidade, etc) que concorrem para uma beleza ideal[4] visando a harmonização do corpo e do espírito. Atingindo-se, deste modo, o clímax do desenvolvimento artístico da Humanidade.
Na época contemporânea, durante o século XX, com a multiplicação dos estilos artísticos, por exemplo na pintura, entrou-se numa dinâmica destrutiva dos antigos cânones clássicos, dando-se primazia à subjectividade criativa. Esta tendência desconstrutivista desembocou na “fabricação” de obras de arte polémicas, e bem provocadoras, da consciência pública. Artistas como José Sobral de Almada Negreiros[5], em Portugal, ou Salvador Domingo Felipe Jacinto Dalí i Domènech, em Espanha, foram peritos nas polémicas e provocações que lançaram na opinião pública portuguesa e europeia, embora as suas obras-primas tenham fugido destes seus critérios de ruptura canónica.
A inspiração do criador de arte é a essência do trabalho espiritual, pois este é um dos elementos que traduz a qualidade da obra realizada. A invenção de um novo patamar simbólico e/ou ,principalmente, estético pode alavancar o artista, ou a sua obra de arte, ao estrelato.
Os bons materiais e as operações mecânicas de precisão manual fazem um artesão, mas não fazem um artista de génio. No entanto, sem a associação airosa, dos conhecimentos técnicos e da inspirada criatividade, a obra de arte parece, muitas vezes, um embuste com que se sentem justamente indignados muitos cidadãos. É, assim, esta magistral síntese, qual centelha do divino, que permite alguns homens criarem obras de arte, embora o “esforço, suor e lágrimas”[6] não permita a muitos outros homens, aprendizes de artistas, ultrapassarem a velha dicotomia entre “corpo e espírito”.
Wim Wenders no seu filme “As Asas do Desejo”[7] (1987) dá-nos conta desta ambivalente emoção: “(…) É fantástico viver espiritualmente. Dia após dia testemunhar para a eternidade o que há de puro, de espiritual nas pessoas, mas gostaria de não pairar eternamente. (…) Não me entusiasmar só com as coisas do espírito (…) Experimentar o que se sente quando se tiram os sapatos debaixo da mesa e se estendem os dedos descalços. (…)”.
Miguel Ângelo di Ludovico BuonarrotiSimoni[8] foi um genial artista do Renascimento, porque conseguiu aliar uma apurada técnica, denotando elevado perfeccionismo, com uma expressiva criatividade que se manifesta, de forma bem evidente, na escultura “Pietá”. Irradia, desta obra de arte, uma expressividade emocional que tocou, os seus mecenas e o público em geral, ao longo dos últimos séculos.
Marcel Duchamp foi um escultor francês, muito indolente, do início do século XX, segundo nos contam os estudos mais recentes, oriundo de uma afamada família de artistas, que inventou o conceito artístico de “Ready made” ao imprimir às suas esculturas um arrojo provocador de excentricidade na utilização de objectos de uso comum, sem os trabalhar, nas suas obras. Causou estupefacta sensação a apresentação pública da sua obra simbólica intitulada “A fonte” resultante do reaproveitamento inestético de um urinol.
Joana Vasconcelos é uma jovem e promissora escultora portuguesa que, partindo de uma das premissas do “Ready made” – a utilização de objectos comuns, conseguiu pôr a criatividade ao serviço do seu labor artístico que lhe tem permitido forjar obras com um bafejado sentido simbólico e estético. É disso exemplo, “o sapato” prateado (patente no Museu Berardo do CCB), feito da harmoniosa junção de tachos, que permite à peça compaginar estes inestimáveis valores. Advém daí, o enorme reconhecimento nacional e internacional que está a receber, na actualidade, o seu trabalho com a conquista de Prémios importantes e a venda de algumas das suas peças a montantes exorbitantes.
Para finalizar estas considerações, direi que uma obra de arte tem tanto mais valor patrimonial quanto mais a sua marca histórica nos ensina algo.
Nuno Sotto Mayor Ferrão
O Sapato de Joana Vasconcelos
A Fonte de Marcel Duchamp
[1] André Richard, La critique d’ Art, Paris, Presses Universitaires de France, 1980.
[2] “Evangelho segundo São Mateus” ( 4 – 4 ), Bíblia Sagrada, Coimbra, Difusora Bíblica, 2006, p. 1569.
[3] Raymond Bayer, “Despertar da consciência estética e Pré-História”, in História da Estética, Lisboa, Editorial Estampa, 1979, pp. 15-22.
[4]“O ideal estético na Grécia Antiga”, in História da Beleza, Direcção de Umberto Eco, Lisboa, Difel – Difusão Editorial, 2004, pp. 37-51.
[5] José Sobral de Almada Negreiros, Manifesto Anti-Dantas, 1915: "(... ) Basta PUM Basta! Uma geração, que consente deixar-se representar por um Dantas é uma geração que nunca o foi. É um coio d’indigentes, d’indignos e de cegos! É uma resma de charlatães e de vendidos, e só pode parir abaixo de zero! Abaixo a geração! Morra o Dantas, morra! PIM!(...)”.
[6] Célebre expressão usada pelo primeiro-ministro inglês Winston Churchill a 13 de Maio de 1940, na Câmara dos Comuns, quando a Inglaterra sente que os braços tentaculares do imperialismo Nazi a isolam na Europa. Vide “Um primeiro-ministro só, 1940-1941”, in John Keegan, Uma introdução à vida de Churchill, Lisboa, Edições Tinta da china, 2007, pp. 137-157.
[7]Asas do desejo (Les Ailes du Désir/Der Himmel Über Berlin). Direcção: Wim Wenders. Roteiro: Wim Wenders e Peter Handke. Intérpretes: Bruno Ganz, Solveig Dommartin, Otto Sander, Curt Bois, Peter Falk e outros. Paris: Argos Filmes; Berlin: Road Movies, 1987. (126 min) VHS. son. PB. Color.
[8] Heinrich Wolfflin, “Michelangelo 1475-1564”, in A Arte Clássica, São Paulo, Livraria Martins Fontes Editora, 1990, pp. 55-93.