Crónicas que tratam temas da cultura, da literatura, da política, da sociedade portuguesa e das realidades actuais do mundo em que vivemos. Em outros textos mais curtos farei considerações sobre temas de grande actualidade.
Crónicas que tratam temas da cultura, da literatura, da política, da sociedade portuguesa e das realidades actuais do mundo em que vivemos. Em outros textos mais curtos farei considerações sobre temas de grande actualidade.
O ano de 2011 foi um tempo cheio de acontecimentos inesperados que se seguiram uns atrás dos outros, em catadupa. Um dos acontecimentos mais dramáticos e preocupantes foi a crise da Zona Euro com as dívidas soberanas dos países Europeus a preocuparem a Civilização Ocidental e o mundo que entrou em fase de recessão económica. Em Portugal e em outros países europeus os governos mudaram devido a esta crise conjuntural (resultante da crise financeira dos EUA de 2008) e estrutural (resultante do capitalismo financeiro que deu azo ao totalitarismo dos mercados a nível da Globalização – “economia de casino” ou “teologia de mercado”). Em toda a Europa, tomaram-se medidas de austeridade e alguns países foram intervencionados pelas instâncias de supervisão financeira ou por entidades supranacionais.
A cidadania global esteve na ordem do dia com as manifestações cívicas contra a austeridade, com greves a percorrerem toda a Europa, com três mulheres socialmente mobilizadas a receberem o Prémio Nobel da Paz, com o “Manifestante” a ser eleito pela revista Time como a figura do ano, com o movimento anti-sistema designado “Occupy”, com as manifestações dos indignados da “geração à rasca” e as revoltas contra regimes tiranos na designada Primavera Árabe.
Isto significa que houve poucos líderes internacionais com prestígio, a não ser a Chanceler Ângela Merkel por impor à Zona Euro e à União Europeia uma solução de mero remedeio (com rígidas políticas orçamentais) sem uma política estratégica, sendo rotulada pela revista Forbes como a mulher mais poderosa do mundo, tendo inclusivamente o antigo líder da Alemanha reunificada, Helmut Kohl, criticado as intervenções titubeantes da líder alemã. Por uma boa razão, esteve o Dr. Mário Soares que lançou vários livros este ano e deu o alerta nacional para a falta de uma estratégia europeia que fosse respeitadora dos grandes objectivos dos pais fundadores da Comunidade Europeia.
Em Portugal, não obstante a crise da dívida soberana e a necessidade da ajuda internacional da “Troika” para garantir a solvabilidade do Estado Português, também houve acontecimentos maravilhosos sobretudo nos planos desportivo e cultural como tenham sido a vitória do F.C.Porto na Liga Europa sob o comando táctico de André Villas-Boas e o apuramento da Selecção Portuguesa de Futebol para o Campeonato da Europa de 2012. Na cultura destacou-se a distinção do Fado pela Unesco como Património Cultural Imaterial da Humanidade, o Prémio Pritzker de Arquitectura de Eduardo Souto de Moura e a comemoração dos 15 anos da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa com vários contributos, designadamente do Movimento Internacional Lusófono.
O mundo, a lusofonia e Portugal ficaram mais pobres com desaparecimento de algumas figuras tutelares como ícones da “inteligenzia” da política, da cultura, das artes e das técnicas como sejam Václav Havel, Vítor Alves, Malangatana, Cesária Évora, Steve Jobs, Elisabeth Taylor e Vitorino Magalhães Godinho. Nos antípodas éticos, morreram alguns líderes da “inteligenzia” do Mal como Osama Bin Laden, Muammar Khadafi e Kim Jong-Il, embora os dois primeiros de formas humanitariamente muito controversas.
Como virámos mais uma página da História da Humanidade, do ponto de vista do calendário ocidental convencional com a entrada no novo ano de 2012, mas não ainda ao nível das mudanças necessárias no nosso mundo, aqui vos deixo esta canção “we are the world, we are the children” do “Live Aid” e uma “marcha clássica” de Johann Strauss dirigida por um maestro ancião, enérgico e divertido. Porque estamos no início de 2012 ficam aqui os votos de um ano novo, para todos nós concidadãos do mundo, que seja moldado pela Esperança para que possamos vencer a resignação e o pessimismo face às crises que se instalaram no nosso planeta, pois só estes apelos cívicos aos sentimentos mais fundos de confiança, de generosidade e de bondade podem colmatar o pessimismo que se tem propagado nas sociedades do século XXI – é, aliás, um dos maiores “vírus sociais” dos nossos dias. Haverá, seguramente, momentos tristes durante o ano, mas como diz o sábio provérbio popular português “tristezas não pagam dívidas” estaremos a salvo…
O fado foi classificado pela Unesco como Património Imaterial da Humanidade num trabalho de fôlego, de qualidade e de rigor liderado pelo musicólogo Rui Vieira Nery. Depois de uma evolução histórica notável do fado que culminou na consagração internacional de Amália Rodrigues na segunda metade do século XX, o certo é que este género musical tem novos interpretes que projetam o fado a nível internacional. A ligação lusófona de Portugal aos quatro cantos do mundo aparece simbolizada por esta ambivalente canção de melancolia que encerra um fundo de esperança.
O Projeto “Fado Mimado” dirigido ao público infantil e juvenil pretende de uma forma lúdica despertar as novas gerações para este género musical. Este Projeto reúne um CD intitulado “Fado Sonhado” cantado por Maria Azóia e dois livros de Gilda Nunes Barata intitulados “Um Xaile com Notas a Chorar” e “Saudade, Meu Amor?” com ilustrações respetivamente de Danuta Wojciechowska e de Ana Bossa. Os dois livros são bilingues (português e inglês), desde os seus respetivos títulos, denunciando a dimensão internacional que o fado tem assumido. Este Projeto foi lançado no Museu do Fado.
Somos introduzidos no livro “Um xaile com Notas a Chorar” com um belo “epitáfio” de Sophia de Mello Breyner Andresen e uma breve definição do Fado de Rui Vieira Nery. Diz-nos o musicólogo que este género musical transporta uma pulsação rítmica ambivalente que vai da lamentação ao entusiasmo mais enérgico. Esta narrativa, cheia de imaginação, de tom poético parece inspirar-se numa entrevista que Amália Rodrigues concedeu ao jornalista Armando Baptista Bastos em 1999.
O“personagem”, desta alegoria, é um xaile, inseparável companheiro da imortal fadista portuguesa, que vai meditando ao longo da história sobre o valor do fado. Tal como Gilda Nunes Barata, especialista na corrente saudosista de Teixeira de Pascoaes, o xaile interroga-se sobre a saudade como um sentimento muito português. Nas suas meditações, o xaile vai-nos lembrando que para os portugueses como um povo de marinheiros, que criaram um dos impérios europeus no mundo, e como um povo de emigrantes este sentimento da saudade está sempre muito presente.
Neste livro de homenagem ao fado há uma simbiose perfeita entre o texto e as feéricas ilustrações de Danuta Wojciechowska. No decorrer das suas aprendizagens, o nosso protagonista, o xaile, dialoga com as forças da Natureza e com os músicos, seus fiéis companheiros, que nas suas almas procuram dar voz ao encontro com outras paragens e com outros povos. Deste modo, este pequeno conto está entretecido de uma linguagem fortemente poética que perscruta os sentidos metafísicos do fado como uma existência cultural singular que bem merece esta classificação da Unesco de Património Imaterial da Humanidade. Nesta fábula, o xaile canta Lisboa como um local de partidas e de chegadas que faz transbordar nos seus habitantes um sonho comovido que desperta sentimentos contrários.
Este xaile, na sua meditação, fala-nos do fado como uma canção, que enaltece as canseiras e as emoções contraditórias que os portugueses vão passando, que lhe permite um grande amadurecimento na convivência com a mítica fadista de alma universal. É, assim, que ele acaba por adormecer sonhando com o mar que sempre permitiu a Lisboa abrir-se a aventuras inesgotáveis de contactos com outros povos. Gilda Nunes Barata, a autora da fábula, tem uma cuidada formação eclética que perpassa na sua escrita que se reparte entre a literatura infantojuvenil e a literatura poética. Danuta Wojciechowska tem já um invejável currículo internacional como criadora de ilustrações com Prémios já recebidos. É, sem dúvida, um livro de que recomendo uma leitura atenta.
No outro livro de Gilda Nunes Barata intitulado “Saudade, meu Amor?” dirigido, sobretudo, ao público mais infantil as ilustrações, bem conseguidas, pertencem a Ana Bossa. O enredo desta pequena história é bem expressivo das emoções que pairam no fado (a saudade e a procura da felicidade). Assim, nesta história de uma pequena gaivota que perde a fralda aparece um sentimento de saudade e de busca que é ultrapassado com a alegria de a encontrar a servir de cobertor a um corvo que sorri no seio da sua tristeza. Fica, pois, como uma sugestão para uma eventual prenda de Natal este conjunto de dois livros e um CD que dão pelo nome de “Fado Mimado.
Nota:
Podemos escutar aqui a entrevista de Paulo Alves Guerra a Gilda Nunes Barata, que passou na Rádio Antena 2 a 28 de Novembro de 2011, relativa ao seu livro "Um Xaile com Notas a Chorar".
“(…) Situada no Extremo Ocidente, entalada entre o mar e a Espanha, tão amiga quanto inimiga, Lisboa procurou no mar uma saída. E partiu. O verbo partir fazia parte de nós, era o lado do desejo, da insatisfação, da ânsia do que não se tinha. (…)”.
Teolinda Gersão, A Cidade de Ulisses, Lisboa, Sextante Editora, 2011, p. 47.
A escritora Teolinda Gersão tem marcado o panorama literário português nos últimos 30 anos (1981-2011), deixando a sua marca indelével com uma escrita leve e imaginativa. Foi professora universitária, em Lisboa, na Faculdade de Letras e depois na Universidade Nova, tendo leccionado, nos últimos anos do século XX como professora catedrática a cadeira de Literatura Alemã e Literatura Comparada, até 1995.
Estudou alguns anos na Alemanha e viveu, também, no Brasil. Recebeu vários Prémios Literários (Prémio de Ficção do Pen Club -1981 e 1989, Grande Prémio de Romance e Novela – 1995, Prémio da Crítica da Association Internacionale des Critiques Litteráires - 1996, Prémio Fernando Namora – 1999, Grande Prémio de Conto Camilo Castelo Branco – 2002), que a catapultaram para uma escrita cada vez mais exigente, mas longe do estrelato mediático. A sua obra está consagrada em Portugal e no estrangeiro, contando já com obras traduzidas para onze línguas e constando em inúmeros dicionários e enciclopédias internacionais.
A escrita de Teolinda Gersão evidencia alguma similitude literária com a escrita de José Saramago ao nível do tom coloquial, que transparece em frases populares e provérbios que utiliza nas suas narrativas, aproximando o escritor do leitor. O romance “A Cidade de Ulisses”[1] é uma história de amor, entre dois artistas plásticos, Paulo Vaz e Cecília, que se entrecruza com uma visão de alguns episódios da História, de Portugal e de Lisboa, e com a valorização das artes plásticas.
Esta narrativa ficcionada é, antes de mais, uma homenagem à cidade antigamente titulada de “Olissipo”, como os romanos lhe chamavam. Este livro é devedor de uma vasta pesquisa histórica e literária, centrada em Lisboa, e recebeu como inspiração algumas obras do artista José Barrias. A escritora aborda algumas das problemáticas de que se compõem as relações humanas (o amor, a liberdade, a identidade, a opressão, a criatividade, etc) no contexto das ligações deste casal.
Na história que nos conta, da cidade de Lisboa, começa pela lenda de Ulisses, continua numa caminhada cronológica até aos nossos dias exaltando, no fim, o valor do fado como um elemento cultural identitário da afirmação da nação portuguesa. Apesar destas infindas riquezas, imanentes a este romance, sobressai a sua crítica da presente situação do país. Assim, evoca a tese clássica do historiador e grande humanista Jaime Cortesão de que Portugal sempre praticou uma “política de transportes” e revelou uma contumaz incapacidade de praticar uma verdadeira “política de investimentos”. Por esta razão, o narrador diz-nos que os erros cometidos têm sido recorrentes, porque, mesmo, nos períodos prósperos dos Descobrimentos marítimos e da época áurea do Brasil, dos séculos XVII-XVIII, as elites dirigentes portuguesas se revelaram de vistas curtas e se tornaram perdulárias[2].
Traça, também, o paralelismo entre a intervenção do FMI dos anos 80 com a actual intervenção da “troika”, mas critica o facto destas entidades externas não actuarem para resolver problemas estruturais, mas tão-só acudir a urgências financeiras conjunturais[3]. É, pois, um livro de múltiplas leituras (literária, histórica, artística, política, etc) que se conjugam como pano de fundo da história de amor entre os dois protagonistas.
É uma história de amor bem edificante, porque tem um final feliz (a Exposição póstuma em homenagem a Cecília e o novo amor entre Paulo Vaz e Sara) e apresenta-nos o fado como a feliz simbiose entre a vida popular e a poesia de uma nação consumada em diversas mestiçagens socioculturais[4]. Esperamos que este optimismo de Teolinda Gersão se traduza na justa consagração do fado como Património Imaterial da Humanidade, a anunciar em breve pela UNESCO.
É, com efeito, um livro de uma pertinente intervenção social que examina os vícios cometidos pelas elites históricas portuguesas e pelas actuais elites financeiras internacionais da Globalização, revisitando uma maravilhosa Lisboa antiga e moderna. As ideias de corrupção e de incompetência fluem, no curso do livro, como a encarnação da irresponsabilidade dos governantes incapazes de sanar as dificuldades estruturais da sociedade portuguesa.
Contudo, apesar deste teor de soturnidade, que paira no romance de Teolinda Gersão, há uma mensagem subjacente à narrativa que é a de imensa confiança nas criatividades, artística, humana e técnica, para resolver os problemas actuais da sociedade portuguesa, da Europa e das pessoas como seres humanos, não obstante as intrincadas malhas das crises que perpassam o mundo e Portugal, neste início do século XXI. Fica, pois, uma mensagem de esperança nesta tempestuosa Era de incertezas que atravessamos, em que necessitamos de um porto de abrigo rumo à descoberta de um Novo Mundo, que sempre se assumiu como a nossa missão existencial como povo. É um excelente livro que vos recomendo, vivamente, como leitura de férias.
Nuno Sotto Mayor Ferrão
[1] Teolinda Gersão, A Cidade de Ulisses, Lisboa, Sextante Editora, 2011.
[3] Aliás, o fiscalista Henrique Medina Carreira também nos salienta o mesmo no seu mais recente livro, a propósito da crise da dívida soberana portuguesa, ao afirmar que a União Europeia não esboçou ainda uma estratégia de comum para enfrentar as dificuldades de dinamismo económico que afecta todos os Estados-Membros no início do século XXI: Henrique de Medina Carreira, O fim da ilusão, Carnaxide, Editora Objectiva, 2011, p. 38.
Neste ano o Fado vai ser apreciado na UNESCO como candidato a ser classificado como Património Imaterial da Humanidade. Rui Vieira Néry, ilustre musicólogo, liderou este ambicioso projecto. Em Setembro saberemos o resultado destas meritórias diligências científicas e diplomáticas em prol da Cultura Portuguesa. No tempo do Estado Novo houve duas figuras que muito prestigiaram Portugal no exterior: Amália Rodrigues e Eusébio da Silva Ferreira. Nos nossos dias com a Globalização já muitos portugueses se destacam no estrangeiro pelos seus relevantes contributos em várias áreas da Cultura, da Ciência, da Política, do Desporto, etc.
O grupo “Deolinda” tem sido um sopro de vitalidade acústica, que homenageando o fado lisboeta e a cultura portuguesa, tem sabido comover o público português e estrangeiro, bem como grande parte da crítica internacional em particular o periódico “Sunday Times” que lhe tem dado um destaque extraordinário. Este grupo, que se formou em 2006, tem um reportório ecléctico de músicas que receberam a influência de vários estilos musicais e, ao mesmo tempo, veicula letras de intervenção social na esteira de José Afonso e de Sérgio Godinho nesta época de grande preocupação colectiva. A canção “Parva que sou” estreada no início deste ano, nos Coliseus de Lisboa e do Porto, tem-se tornado um hino da geração dos “jovens trabalhadores precários”.
A imensa criatividade artística associada aos conteúdos de sátira social e a linhas melódicas inspiradas no fado, na rembetika grega, na música ranchera mexicana, no samba, na música havaiana e no jazz tem dado a este grupo e aos seus protagonistas (Ana Bacalhau, Pedro da Silva Martins, Zé Pedro Leitão e Luís José Martins uma projecção internacional com algumas digressões que já fizeram pelo país e pela Europa. Esperamos que este sopro de vitalidade musical portuguesa possa despertar a comunidade internacional para a relevância patrimonial do fado português, de forma a recebermos boas notícias da UNESCO em Setembro deste ano.