Crónicas que tratam temas da cultura, da literatura, da política, da sociedade portuguesa e das realidades actuais do mundo em que vivemos. Em outros textos mais curtos farei considerações sobre temas de grande actualidade.
Crónicas que tratam temas da cultura, da literatura, da política, da sociedade portuguesa e das realidades actuais do mundo em que vivemos. Em outros textos mais curtos farei considerações sobre temas de grande actualidade.
Como fonte histórica incontornável para o estudo do Estado Novo foram agora publicados, neste outono de 2021, em formato e-book os Diários de Salazar (1933-1968), pela Porto Editora, embora com uma pré-apresentação pelo jornal Público. Podemos, através destes escritos, acompanhar o quotidiano de Salazar ao nível da sua vida pública e privada, numa transcrição preciosa de uma arquivista persistente, que nos permite conhecer melhor aquilo que foram as suas rotinas diárias. Ficamos a perceber, por exemplo, que começava o dia a ler os jornais às 9 horas e terminava, geralmente, os seus dias com um passeio a pé, algumas leituras, alguns telefonemas ou um encontro com alguma personalidade do regime.
Franco Nogueira escreveu, também, uma colossal obra memorialística de Salazar, que convém sempre consultar, pois é um testemunho importante para quem queira estudar, pesquisar e compreender o âmago das relações políticas de Salazar.
A magistral biografia de Salazar escrita pelo historiador Filipe Ribeiro de Meneses, ao longo de vários anos para a sua tese de Doutoramento, constitui uma obra historiográfica de grande envergadura científica, porque retrata a sua vida política e, concomitantemente, carateriza o seu contexto histórico com muita precisão, dando-nos uma interpretação original do regime político do Estado Novo.
Do ponto de vista da sistematização historiográfica do regime é fundamental consultar o Dicionário do Estado Novo, em 2 volumes, com uma imensidão de investigadores, que colaboraram na sua realização, sob a cuidada supervisão de Fernando Rosas e de José Maria Brandão de Brito.
As bases do regime do Estado Novo, as opções ideológicas, os mecanismos de repressão e os meios de enquadramento das massas
Na década de 1930 ergueram-se as leis fundacionais do regime do Estado Novo, os preceitos ideológicos, as instituições políticas e os meios de repressão e de enquadramento das massas, inspirados no regime fascista italiano e no seu ódio ao regime da 1ª República Portuguesa. Após a 2ª guerra mundial, surgirá uma nova conjuntura histórica, anticolonialista, que obrigará o regime a uma ligeira inflexão político-ideológica de cosmética internacionalista. A propósito da criação do regime fizemos um vídeo didático, que nos mostra as opções ideológicas e as práticas políticas do anos 30 ao fim da 2ª guerra mundial, patente em baixo.
As bases legais do regime foram o Acto Colonial de 1930, a Constituição de 1933, plebiscitada, e o Estatuto do Trabalho Nacional de 1933. Nesta década foram criadas, sob a inspiração do regime de Benito Mussolini, as principais instituições como a União Nacional, a reorganização da censura prévia, a Polícia de Vigilância e Defesa do Estado, o corpo jurídico da organização corporativa e o Secretariado de Propaganda Nacional.
O pensamento conservador de Oliveira Salazar marcou a ideologia do regime, com a valorização das tradições portuguesas, com a defesa intransigente das virtudes morais do mundo rural, com a defesa da religião católica e com a afirmação de uma “Política do Espírito” através do controlo da vida cultural por parte do Estado.
Este regime configura-se totalitário com menosprezo das liberdades individuais, com um nacionalismo corporativo, com um culto do chefe, com um Estado forte traduzido num poder executivo centralizado no presidente do conselho de ministros, com um imperialismo colonial advindo da Conferência de Berlim de 1884-1885, com uma forte intervenção económico-social do Estado na economia, com sentimentos antiliberais, antidemocráticos, antiparlamentares e anticomunistas, fazendo corporizar a essência do mal no regime nacional da 1ª República e na ameaça internacional bolchevique.
Os organismos de repressão da liberdade expressão e de liberdade de ação eram a PVDE/PIDE, a censura prévia e os valores veiculados pelo Secretariado de Propaganda Nacional. Os meios de enquadramento das massas eram a União Nacional como partido único, a Legião Portuguesa como milícia de adultos para incutir o espírito anticomunista, a Mocidade Portuguesa como milícia juvenil para inculcar o sentido patriótico e as corporações para reunir os patrões e os trabalhadores, sob a supervisão estatal, de forma a evitar-se a conflitualidade social.
Em suma, estes documentos, históricos e historiograficos, assumem-se como peças inestimáveis para uma melhor compreensão do âmago do regime e do seu líder criador.
“(...) Ao assumir a Presidência do Conselho de Ministros, a 5 de julho de 1932, cargo que só viria a abandonar em1968, Salazar pronunciou algumas palavras. (...)”
Filipe Ribeiro de Meneses, Salazar – Uma biografia política, 2ª edição, Lisboa, Edições D. Quixote, 2010, p. 110.
“(...) É a rejeição da pequena elite do Cadaval forjada pelo nascimento e temperada pela riqueza da exploração da terra. O jovem fidalgo rural desaparecera. Júlio Fogaça sente-se na plenitude um filho adoptivo do proletariado (...)”
Adelino Cunha, Júlio de Melo Fogaça – O líder de origem burguesa que desafiou Álvaro Cunhal e foi apagado da históriado PCP, Porto Salvo, Edições Dessassego, 2018, p. 52.
“(...) José Agostinho conseguira evitar durante mais de três anos o cutelo que sobre ele queriam abater os gracianos; mas era espada de Dâmocles, sobretudo porque o seu feitio turbulento e a sua irreprimível tendência para o disparate acabaram por lhe alienar os últimos (e poderosos) apoios que conseguira, in extremis, concitar. (...)”
António Mega Ferreira, Macedo – Uma biografia da infâmia, Porto, Sextante Editora, 2011, p.77.
A obra de Filipe Ribeiro de Meneses sobre António de Oliveira Salazar[1], sendo uma biografia política, é de uma excelente qualidade científica e foi elaborada como Tese de Doutoramento pelo autor, ao longo de uns 7 anos de uma exaustiva investigação histórica. É um livro que aborda o percurso formativo, académico, político e amoroso de Salazar e nos vai dando a conhecer um enquadramento das várias conjunturas históricas vividas pelo protagonista, bem como nos apresenta uma análise rigorosa, quase um “raio X”, do regime político do Estado Novo, nas suas diversas circunstâncias internas e externas.
Ao mesmo tempo, que fez uma cuidada análise documental, concede-nos uma interpretação original do regime e do seu fundador. Esta biografia contém uma rica documentação fotográfica, que nos permite ir acompanhando o evoluir da vida do biografado, o que não é uma qualidade muito comum nestas obras biográficas simples, sendo mais vulgares nas fotobiografias.
O livro de Adelino Cunha sobre Júlio de Melo Fogaça[2] centra-se muito no pensamento do dirigente comunista e nas suas bravatas de afrontamento dos dirigentes comunistas pró-soviéticos, com destaque para Álvaro Cunhal, com quem manteve profundas divergências. Este texto biográfico padece de socorrer-se, em demasia, de citações documentais, o que reduz bastante a fluência sintáctica da narrativa histórica. Além disso, a linguagem é excessivamente científica com recorrentes análises abstractas no texto, que nos afastam das condições empíricas do biografado.
A exceção a esta tendência surge quando nos descreve o momento horribilis dos seus encarceramentos, na Colónia Penal do Tarrafal. Estas duas biografias, de Salazar e de Júlio Fogaça, permitem-nos ter perspectivas diametralmente opostas da mesma realidade perante o posicionamento dos biografados, ou se preferirem, do mesmo regime político.
Por seu turno, a biografia de José Agostinho de Macedo[3] é escrita num tom romanesco, pela sua linguagem profundamente literária, sem prejudicar a visão da vida do biografado, antes dando dela uma impressão cinematográfica, que nos permite acompanhar, com calor humano e veracidade, as estroinices do Padre José Agostinho e o seu percurso literário. De tal forma que o autor deixa-nos uma perceção muito realista da vida do biografado, embora com ajuizamentos pouco próprios de um historiador, apesar de uma grande preocupação metodológica de confronto das informações recolhidas nas fontes históricas, que compulsou.
Fica, assim, mais próximo do romance histórico do que da simples narração da vida do biografado, mas vai-nos brindando com uma descrição bem emotiva e dramática dos desmandos e das estronices do Padre José Agostinho. Poder-se-à questionar se este estilo literário é próprio do género biográfico, mas, no caso de um literato com o calibre deste Padre, acreditamos que a escolha e a sensibilidade de António Mega Ferreira foram correctas.
Um dos pontos fracos comum às 3 biografias é a ausência de cronologias da vida e da obra dos biografados. Nos documentos históricos, a biografia de Filipe Ribeiro de Meneses não nos faculta o acesso a documentos escritos nos seus anexos, mas apenas nas suas notas de rodapé, resultado da transformação da tese académica em livro de divulgação histórica.
A biografia de Adelino Cunha padece do facto de ser um pouco fastidiosa na sua leitura porque crava no texto narrativo demasiadas transcrições de documentos históricos, o que é excelente para o leitor de critério científico mas pouco cómodo para o leitor comum.
O Padre José Agostinho de Macedo é pouco conhecido da opinião pública e, por isso, esta biografia é bem pertinente. António de Oliveira Salazar, ditador português do século XX, é uma figura sobejamente conhecida da História de Portugal mas ainda pouco estudada como biografia, com exceção da parcial biografia que lhe dedicou Franco Nogueira. Júlio de Melo Fogaça foi um dissidente da ortodoxia soviética, que se confrontou no PCP durante os anos da liderança de Álvaro Cunhal. É conhecido das gerações que viveram durante o Estado Novo, mas quase completamente desconhecido das gerações mais novas.
António Mega Ferreira é um veterano e talentoso jornalista e escritor, com reconhecidos méritos literários plasmados em múltiplas obras e no Grande Prémio de Conto Camilo Castelo Branco, que recebeu em 2002. Filipe Ribeiro de Meneses é um prestigiado historiador português que vive na Irlanda, sendo professor na Universidade de Maynooth, que escreveu esta biografia como tese de Doutoramento com um abundante manacial de investigação de múltiplas fontes históricas.
Adelino Cunha é um jornalista e professor de História Contemporânea na Universidade Europeia, com obras publicadas que partem da visão atualista do jornalista para a perceção global do historiador.
O género biográfico na historiografia tem merecido ser revisitado desde a Antiguidade Clássica até aos dias de hoje. Se na Antiguidade se pretendia recolher lições morais da leitura das biografias, na atualidade pretende-se suscitar a comprensão da natureza humana nas suas virtualidades e fragilidades e, ao mesmo tempo, dar a conhecer os respectivos contextos históricos, que, nos casos presentes, foram o ambiente do Salazarismo e a viragem do Antigo Regime para o Liberalismo em Portugal.
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[1] Filipe Ribeiro de Meneses, Salazar – Uma biografia política, 2ª edição, Lisboa, Edições D. Quixote, 2010, 803 p.
[2] Adelino Cunha, Júlio de Melo Fogaça – O líder de origem burguesa que desafiou Álvaro Cunhal e foi apagado da história do PCP, Porto Salvo, Edições Dessassego, 2018, 317 p.
[3] António Mega Ferreira, Macedo – Uma biografia da infâmia, Porto, Sextante Editora, 2011, 366 p.
O professor e investigador Filipe Ribeiro de Meneses, autor do livro agora publicado em Portugal com o título Salazar – Biografia Política[1], afirmava ontem na televisão que o ofício de Historiador exige, deontologicamente, uma aproximação à objectividade. Na verdade, como nos disse, com sentido crítico, o testemunho hagiográfico de Franco Nogueira[2] sobre Salazar tem um valor indesmentível como testemunho memorialístico, no entanto como estudo histórico não tem a necessária distância ideológica e afectiva para se aproximar de uma visão mais imparcial. A vantagem deste estudo mais recente, como salientava no outro dia Francisco Seixas da Costa no seu blogue Duas ou três coisas no texto intitulado "Salazar", advém deste jovem investigador pertencer a uma outra geração com instrumentos metodológicos mais aperfeiçoados que lhe permitiu elaborar uma investigação mais insuspeita. Estou, pois, muito curioso em ler esta obra de grande fôlego.
Vem isto a propósito de um antigo artigo do Historiador Henrique Barrilaro Ruas sobre o regicídio e a República em que a sua visão se deixou cair num parcialismo que tem a ver com o facto de ter sido monárquico e de ter pertencido, na época em que escreveu o artigo “O Regicídio à luz da História Política” ao Partido Popular Monárquico, e inclusive ter sido deputado na Assembleia da República pela Aliança Democrática nos anos de 1979-1983. Deste modo, este autor sentencia a República, como uma das raízes do mal-estar da pátria portuguesa, quando nos diz: “(…) Monstruoso como crime, o Regicídio de 1 de Fevereiro de 1908 é a revelação de que um sistema político imposto ideologicamente por «iluminados» não pode perdurar sem conduzir à morte os homens singulares, e da própria comunidade política.(…)”[3].
Com efeito, a República, que dentro de poucos dias iremos celebrar como cidadãos orgulhosos da nossa pátria, tem de ser vista sem visões ideologicamente parciais, por parte dos Historiadores, para que cada cidadão no íntimo da sua consciência e das suas convicções possa fazer as suas escolhas com uma fundamentação realista, baseada numa sólida Cultura Histórica, e não manipulado por uma qualquer ordem de interesses. A República tem de ser perspectivada ora com os óculos do investigador, ora com os óculos do cidadão, uma vez que se quer que este seja participante de uma democracia autêntica. Nesta medida, a Exposição “Viva a República” patente na Cordoaria Nacional, em Lisboa, até, pelo menos, ao fim de Novembro de 2010 merece uma visita, para quem está interessado em conhecer melhor esse período histórico, por ter sido levada a cabo por prestigiados especialistas da temática.
Desta forma, há que separar o campo Historiográfico do campo da intervenção cívica. E, aliás, no campo da intervenção cívica devem ser declarados os interesses e as convicções que se estão defender por uma questão de honestidade e probidade intelectual. É legítimo sustentarem-se todos os argumentos com transparência, mas sem se ocultarem as reais motivações ideológicas, os interesses políticos ou económicos que estejam por detrás. O grande Historiador da Cultura, Joel Serrão, escrevendo sobre Antero e Herculano no Jornal das Letras[4], no início dos anos 80, enfatizou as preocupações éticas que moldaram as obras destes dois intelectuais. Em suma, só as preocupações metodológicas de rigor intelectual e a transparência ética podem garantir intervenções científicas e cívicas de insuspeitado valor.
Nuno Sotto Mayor Ferrão
[1] Filipe Ribeiro de Meneses, Salazar - Biografia Política, Lisboa, Edições Dom Quixote, 2010.
[3] Henrique Barrilaro Ruas, “O Regicídio à luz da História Política”, in Ensaio – Folha de Cultura e Opinião, nº 2, Fevereiro-Março de 1981, p. 3.
[4] Joel Serrão, “Antero e Herculano”, in Jornal de Letras, Artes e Ideias, Director José Carlos Vasconcelos, Ano I, nº 10, 7 a 20 de Julho de 1981, pp. 6-7.