CULTURA, ILITERACIA E CRISE DAS HUMANIDADES EM PORTUGAL DE 1960 A 2008 (BREVES CONSIDERAÇÕES)
Estas breves considerações alicerçam-se em alguns dados estatísticos que recolhi no útil site “Pordata” e analisei com algum cuidado. Embora a temática não seja inédita, julgo que desvendo alguns dados interessantes e algumas questões dignas de reflexão.
A Cultura humanista no nosso país e na Europa, nas últimas décadas, tem sido alvo da opressão dominante do paradigma tecnocrático dos políticos actuais e de outros factores sistémicos, que irei referir. O drama da empregabilidade tem reduzido os candidatos estudantis com vocação para as Humanidades, o que se tem revelado um problema, dado que as perspectivas humanistas têm sido secundarizadas e com estas condicionantes perde-se, nas nossas sociedades, sob pressão dos consumismos materialistas, a noção da necessidade da formação integral do Ser Humano[1].
A crise das Humanidades acompanha o esquecimento a que público português tem votado a Biblioteca Nacional de Portugal. Vejamos que, nos dados abaixo apresentados, não obstante o número de livros disponíveis tenha sido multiplicado por cinco (por arredondamento), o número de leitores, tendo variado neste período em estudo, permanece em cifras bastante idênticas comparando os números de leitores de 1960 e de 2008 (respectivamente 41.304 e 42.453).
Desta forma, o aumento da escolaridade da maioria da população portuguesa (sucessivamente de 4 anos do ensino primário, 6 anos do ensino primário e preparatório, 9 anos dos três ciclos do ensino básico até aos 12 anos previstos actualmente pelo Estado Português) tem conduzido a menores níveis de literacia, devido a uma complexidade de factores, como afirmam até à exaustão o fiscalista Henrique de Medina Carreira e o matemático Nuno Crato no programa “Plano Inclinado” da SIC-Notícias. Em suma, a democratização do ensino tem gerado mais pessoas escolarizadas, com mais anos de frequência escolar, mas menos capacitadas para ler, pensar, calcular e escrever com facilidade e correcção.
A imprensa acompanha estes baixos índices de literacia dos portugueses, uma vez que os jornais têm aumentado os seus leitores à custa dos diários gratuitos, da diminuição da densidade informativa e do aumento do espaço destinado às imagens que tornam mais apelativa a leitura a todos os portugueses. Com efeito, aumentam os recursos e os meios de informação e de divulgação da cultura, mas diminui a qualidade dos serviços prestados.
O fenómeno tecnocrático das nossas sociedades tem correspondência com a falta de formação ideológica dos nossos cidadãos que tem esvaziado as democracias Ocidentais do exercício da plena liberdade dos cidadãos pela força da “musculatura técnica”, naquilo a que os politólogos designam por “democracias musculadas”. Ora este facto tem potenciado o crescente divórcio entre os cidadãos e os políticos[2], porque os primeiros sentem que as suas escolhas contam pouco e que tudo já está, mais ou menos, predeterminado pelos constrangimentos das instituições comunitárias e das instituições financeiras.
As políticas culturais portuguesas, das últimas décadas, têm investido em equipamentos e infra-estruturas que concorrem para potenciar a democratização da cultura, mas convém reparar no facto do número de Bibliotecas crescer mais significativamente do que o número dos seus utilizadores. Em 1960 as Bibliotecas do país não chegavam a uma centena, enquanto em 2003 ultrapassavam já um milhar, tendo crescido 11.4 vezes. No mesmo período, o número de utilizadores situava-se em 1960 abaixo de um milhão de utilizadores, enquanto em 2003 o número de utilizadores pouco passava dos oito milhões e meio, tendo crescido 9 vezes[3].
Com efeito, tem havido uma efectiva democratização da cultura com o aumento do número de livros publicados e com idêntico fenómeno ao nível do número de edições e tiragens anuais das publicações periódicas, mas este aumento tem correspondido a critérios comerciais, ou seja, a oferta livreira tem aumentado devido às operações de “marketing” e aos títulos sensacionalistas que permitem grandes tiragens. Exemplo emblemático, desta tendência, foi o livro de Carolina Salgado que teve uma tiragem excepcionalmente elevada[4].
A publicação de livros entre 2000 e 2008, segundo os dados estatísticos que consultei, de acordo com os registos de títulos no Depósito Legal tem um crescimento anual de 3,3%, tendo os valores absolutos passado de 14066 em 2000 para 17778 em 2008. Assim, afigura-se-me que, eventualmente, tenham ocorrido tiragens maiores e mais edições de “best sellers nos últimos anos”, contudo a maioria das vezes prevalece a lógica econométrica de mercado de uma sociedade devassada pela iliteracia de consumos e gostos culturais qualitativamente questionáveis.
Em suma, tem-se verificado um avanço exponencial da cultura de massas em Portugal entre 1960 e 2008 com a construção de grandes espaços comerciais a venderem livros em quantidades impensáveis, com os espectáculos de música, dança, variedades a serem frequentados hoje em dia pela maioria da população, enquanto em 1960 estes espectáculos ao vivo eram muito raros e os espectadores, pelo restrito número, pertenciam às classes médias e às elites. Este fenómeno é, claramente, louvável, mas urge passar a outra etapa do amadurecimento das democracias europeias.
A solução para a iliteracia e para se superar a apatia política dos cidadãos passa por revalorizar os agentes e os estabelecimentos culturais que nos apresentam produtos de qualidade literária, estética e filosófica, porque, como muito bem diz o Dr. Mário Soares num excelente ensaio de história política, urge encontrar um novo paradigma político-cultural[5] que permita à Humanidade responder à ingente crise múltipla que as nossas sociedades nesta Era da Globalização Neoliberal enfrentam.
Acrescento, em conclusão, que só com o ressurgimento das Humanidades será possível encontrar esse novo paradigma que permita uma formação mais sustentada dos cidadãos no plano das suas bagagens culturais e das suas consciências éticas. Será, pois, com um renovado modelo político-cultural, de que deve fazer parte o combate, sem tréguas, à iliteracia e o desassombrado impulso às Humanidades, que será possível responder aos grandes desafios do presente e do futuro, pois só com estas variáveis será exequível, ao país e ao mundo, salvaguardar a formação integral dos cidadãos e a plena preservação do nosso “habitat” natural rumo a mundo melhor.
Nuno Sotto Mayor Ferrão
Anexo - dados extraídos do site Pordata
| Biblioteca Nacional: livros e leitores |
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| Livro | Indivíduo |
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Tempo | Livros | Leitores |
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1960 | 469.644 | 41.304 |
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1961 | 476.345 | 34.867 |
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1962 | 480.531 | 33.861 |
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1963 | 488.972 | 32.502 |
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1964 | 500.508 | 28.928 |
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1965 | 505.675 | 30.983 |
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1966 | 515.276 | 16.696 |
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1967 | 533.998 | 17.557 |
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1968 | 551.997 | 14.730 |
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1969 | 561.702 | 13.400 |
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1970 | 568.333 | 31.238 |
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1971 | 582.253 | 38.367 |
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1972 | 595.236 | 42.982 |
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1973 | 608.764 | 37.489 |
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1974 | 628.479 | 34.838 |
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1975 | 658.585 | 58.232 |
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1976 | 675.151 | 83.107 |
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1977 | 693.060 | 67.219 |
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1978 | 711.416 | 71.018 |
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1979 | 728.711 | 65.104 |
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1980 | 753.388 | 55.546 |
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1981 | 773.984 | 56.301 |
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1982 | 793.651 | 60.142 |
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1983 | 816.437 | 36.638 |
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1984 | 1.022.743 | 36.906 |
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1985 | 2.026.763 | 53.286 |
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1986 | 2.055.457 | 70.528 |
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1987 | 2.084.991 | 67.780 |
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1988 | 2.106.207 | 68.604 |
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1989 | 2.139.644 | 65.099 |
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1990 | 2.153.324 | 43.433 |
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1991 | 2.175.385 | 40.492 |
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1992 | 2.198.505 | 64.142 |
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1993 | 2.222.436 | 64.484 |
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1994 | 2.242.869 | 68.863 |
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1995 | 2.260.420 | 70.548 |
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1996 | 2.282.409 | 67.209 |
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1997 | 2.303.996 | 61.054 |
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1998 | 2.325.174 | 66.082 |
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1999 | 2.348.660 | x |
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2000 | 2.391.554 | 69.341 |
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2001 | 2.415.429 | 62.454 |
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2002 | 2.489.018 | 57.764 |
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2003 | 2.505.074 | 58.546 |
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2004 | 2.519.626 | 52.782 |
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2005 | 2.533.067 | 49.193 |
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2006 | 2.552.427 | 52.629 |
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2007 | 2.593.837 | 43.386 |
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2008 | 2.643.570 | 42.453 |
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| Fonte de Dados: BNP |
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[1] Bento XVI, Encíclica – Caridade na verdade, Prior Velho, Edições Paulinas, 2009, pp. 109-120.
[2] Vide A nova primavera do político, org. Michel Wievieorka, Lisboa, Editora Guerra e Paz, 2007. Este livro que recolhe o contributo de vários intelectuais europeus fala, precisamente, do afastamento entre os cidadãos e os políticos e da premente necessidade de reabrir o debate para a indispensável reinvenção do “Welfare State”.
[3] Segundo os dados disponibilizados pelo site “Pordata”, cuja iniciativa pertenceu a António Barreto: em 1960 existiam no país 89 B ibliotecas e em 2003 já se contabilizaram 1018, enquanto o número de utilizadores no mesmo período passou de 957 113 para 8 641 276.
[4] Carolina Salgado e outros, Eu, Carolina – A história verdadeira, Lisboa, Edições Dom Quixote, 2006.
[5] Mário Soares, Elogio da política, Lisboa, Sextante Editora, 2009, pp. 80-87.