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Crónicas do Professor Nuno Sotto Mayor Ferrão

Crónicas que tratam temas da cultura, da literatura, da política, da sociedade portuguesa e das realidades actuais do mundo em que vivemos. Em outros textos mais curtos farei considerações sobre temas de grande actualidade.

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AS CAUSAS DA DECADÊNCIA DO MUNDO OCIDENTAL NOS ÚLTIMOS 80 ANOS (1945-2023)

causas-da-decadc3aancia dos povos peninsulares.jpgA_DECADENCIA_DO_OCIDENTE.jpg

 

Dedico este texto ao grande historiador José Mattoso, ontem falecido (08/07/2023).

“(…) Tenho pensado muito em José Medeiros Ferreira (1942-2014). A triste notícia chegou-me a meio do discurso de Vladimir Putin no Kremlin sobre a anexação militar da península ucraniana da Crimeia pelas forças de operações especiais russas. Um dia histórico, portanto. (…)”

Miguel Monjardino, “Um colunista na História”, in Por onde irá a História?, Lisboa, Edição Clube do Autor, março de 2023, p. 253.

 

Este texto inspira-se num título de uma brochura famosa de Antero de Quental intitulada As causas da decadência dos povos peninsulares nos últimos três séculos[1], mas se, no fim do século XIX, eram os povos ibéricos que “estavam na berlinda” e alguns políticos e intelectuais ilustres falavam na necessidade de um federalismo ibérico para a revitalização da Ibéria, neste momento, na terceira década do século XXI, tornam-se exponenciais os sinais que evidenciam um inequívoco declínio da Civilização Ocidental.  

 

Osvald Spengler, historiador e filósofo alemão, teve a premonição da decadência da Civilização Ocidental com a obra A decadência do ocidente[2], publicada, pela primeira vez, em 1918, que foi escrita em função da beligerância da 1ª guerra mundial, que destroçou as nações europeias e tendo gerado, neste continente exausto, uma enorme descrença e um tremendo pessimismo na capacidade dos países europeus se reerguerem e reafirmarem como grandes potências. Este contexto histórico permitiu, inclusivamente, que os EUA emergissem como grande potência  (superpotência), no primeiro pós-guerra, passando a deter a hegemonia internacional até ao fim do século XX e início do século XXI.

 

A Civilização Ocidental começou o seu ocaso com os “ventos da mudança” do fenómeno descolonizador, que levou ao colapso vertiginoso dos impérios coloniais europeus, após a 2ª guerra mundial, e à hegemonia dos EUA. No entanto, os norte-americanos e os europeus ainda tentaram evitar o descalabro económico do “Velho Continente”, em meados do século XX, com o recurso ao Plano Marshall e com o projeto europeu do Tratado de Roma, de suscitar uma comunidade económica europeia. Estes recursos dilatórios ainda permitiram trinta anos de glorioso crescimento económico na Europa e nos EUA (1945-1973), que desembocaram nas crises petrolíferas dos anos 70, na implementação de políticas neoliberais e no fenómeno da globalização no último quartel do século XX.  

 

A ilusão de um Mundo Novo, vindouro, democrático e liberal produziu-se com o colapso do bloco soviético, com a queda do muro de Berlim e com a reunificação da Alemanha, isto é, com o fim da guerra fria. As esperanças eufóricas traduziram-se nas teses optimistas e ingénuas de Francis Fukuyama[3], mas a desintegração do bloco de leste europeu também deu azo a algumas dúvidas. A Europa, sob o élan de alguns políticos carismáticos e com o plano de uma unificação monetária, ainda teve o seu último fôlego, na viragem do milénio, com a entrada em funcionamento da moeda europeia em 2002, o euro.

 

Contudo, a neurose provocada pela vulnerabilidade dos EUA, com o atentado de 11 de setembro de 2001, arrastou-se à Europa, com a globalização do terrorismo a atingir várias cidades europeias. O entusiasmo hegemónico europeu neste contexto desvaneceu-se e o peso do “Velho Continente” nas transações globais tornou-se cada vez mais reduzido.

 

A globalização e a deslocalização de muitas empresas multinacionais, com sedes ou sucursais na europa, conduziram a uma desindustrialização dos países do “Velho Continente”. Ora, esta circunstância tem feito os países europeus perderem dinamismo económico e relevância no conjunto da economia mundial.

 

Por seu turno, o dinamismo económico e a vitalidade demográfica das potências asiáticas como a Coreia do Sul, Hong Kong, Singapura, Taiwan, Índia e, principalmente, a China, na actualidade, que passaram por uma rápida industrialização e mantiveram taxas de crescimento excepcionalmente altas, na segunda metade do século XX e, no caso desta última potência, já no início deste século, estão a provocar uma inusitada concorrência aos países europeus. Estas novas potências económicas asiáticas estão a fazer perder protagonismo aos principais países europeus (Alemanha, Grã-Bretanha e França).

 

A crise financeira de 2008-2009 indicou para uma crescente debilidade das estruturas financeiras ocidentais, que tiveram impacto económico em alguns países europeus mais vulneráveis tais como a Grécia, Portugal, a Itália, a Irlanda e a Espanha, devido aos endividamentos excessivos e ao grandes défices públicos, conhecido este fenómeno como “a crise da zona euro”. A UE ainda prossegue o seu alargamento geográfico com a integração da Croácia em 2013 e com várias candidaturas de novos países, na atualidade, no sentido do seu futuro alargamento superar os impasses da afirmação da UE neste primeiro quartel do século XXI e na primeira metade desta centúria. A crescente perda de importância internacional e económica da UE fez com que o Reino Unido, no início de 2020, tenha saído da UE com o designado Brexit, pois parte dos ingleses convenceu-se que conseguia reafirmar-se internacionalmente, através da “Commonwealth”, recuperando alguma da sua soberania.

 

Na segunda década do século XXI, o Brexit (2016-2020) e a eleição de Donald Trump nos EUA (em novembro de 2016) evidenciaram a decadência do Ocidente, que se refugiou, no caso destas duas nações, nas premissas nacionalistas, xenófobas e no proteccionismo para criarem a ilusão de que os EUA e a Grã-Bretanha, apesar de decaírem em termos económicos, conseguirão ressurgir das cinzas como a Fénix com estas receitas esgotadas[4]. Os grandes desafios da actualidade - a globalização e a revolução digital – inserem-nos numa nova Era histórica e não será através do proteccionismo comercial e social, que a perda de fulgor económico das grandes potências do Ocidente recuperarão o seu protagonismo internacional ou posições hegemónicas. O receio e o pessimismo dos povos das antigas grandes potências ocidentais levou os EUA e a Grã-Bretanha a recuarem, ao invés de apostarem numa fuga para a frente, daí que os fenómenos da eleição de Trump e do Brexit tenham marcado a segunda década do século XXI.

 

A globalização e a grande revolução digital tornaram possíveis às grandes nações do Ocidente (EUA e Grã-Bretanha) perder terreno em termos de poderio e de riqueza, de tal forma que do G7 se passou em concomitância para um contemporâneo G20, para outras nações asiáticas que emergiram pelos seus potenciais económicos e tecnológicos. O Ocidente da revolução industrial, das descobertas científicas, dos direitos humanos e das sociedades democráticas está a perder terreno para outras nações que se estão a alçar ao cume da economia e da geopolítica global.

 

O declínio demográfico, neste início do século XXI, com o envelhecimento da população europeia tem feito acolher muitas correntes migratórias, muitas comunidades de imigrantes, para tentar garantir o funcionamento e o dinamismo da sua economia. O “Velho Continente” também está a perder fulgor tecnológico com os avanços rápidos das potências asiáticas. Com a crise do Ocidente, os seus valores essenciais, como a democracia e os direitos humanos, estão a ser questionados no mundo, favorecendo a emergência de autoritarismos em várias partes do globo e os fenómenos de populismo, que está a varrer a europa, até pela crescente descrença nos sistemas democráticos. O declínio do Ocidente é bem patente na diminuição do seu poder económico e militar, com exceção a este nível dos EUA, que só desta forma conseguem influenciar o cenário internacional atual. Contudo, o “Velho Continente” perdeu o fulgor económico e desinvestiu na sua capacidade militar.

___________________________________

[1] Antero de Quental, Causas da decadência dos povos peninsulares nos últimos três séculos, Lisboa, Tinta-da-China, 2008, 118 p.

[2] Oswald Spengler, A decadência do ocidente: esboço de uma morfologia da história universal, 1918.

[3] Francis Fukuyama, O fim da História e o último Homem, Lisboa, Gradiva, 1999.

[4] Mário Vargas Llosa, “A decadência do ocidente”, in El País, 20 de novembro de 2016 - https://brasil.elpais.com/brasil/2016/11/17/opinion/1479401071_337582.html (consultado a 6 de julho de 2023).

Nuno Sotto Mayor Ferrão

 

 

O DIA MUNDIAL DA FELICIDADE (20 DE MARÇO) E A FELICIDADE NA HISTÓRIA CONTEMPORÂNEA

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O que é a felicidade? A felicidade é um estado momentâneo ou duradouro? O que nos faz felizes? Por que motivo a Humanidade deve celebrar a felicidade?

 

“(...) Estado de plena satisfação íntima, de bem-estar, no qual se encontram satisfeitas todas as aspirações do ser humano; (...) acontecimento feliz ou venturoso.(...)”

       “Felicidade”, in Dicionário da Língua Portuguesa da Academia das Ciências de  Lisboa, vol I,                                        Lisboa, Editora Verbo,  2001, pp. 1720-1721.

 

"Eles não sabem, nem sonham,

que o sonho comanda a vida.

Que sempre que um homem sonha

o mundo pula e avança

como bola colorida

entre as mãos de uma criança."

António Gedeão, Excertos do poema Pedra Filosofal

 

1. O Dia Mundial da Felicidade (20 de março)

A Assembleia Geral das Nações Unidas criou, a 28 de junho de 2012, a efeméride anual de 20 de março como o Dia Mundial da Felicidade. A efeméride existe desde 2012, a partir de uma proposta do Butão, para a ONU passar a medir um índice de bem-estar económico-social. Significa que pessoas felizes são, por natureza, mais produtivas e que os países não se podem preocupar apenas com as questões economicistas. Deste modo, o crescimento económico tem de ser visto de forma a garantir a plena inclusão social e a equilibrar diferentes valores complementares de prosperidade e de bem-estar das pessoas.

 

2. A felicidade na literatura

O amor como expressão da felicidade é um tema transversal a muitas obras da literatura portuguesa e universal. Tomemos, como exemplo, um poema de Fernando Pessoa no seu heterónimo Álvaro de Campos:

“Todas as cartas de amor…

Todas as cartas de amor são

Ridículas.

Não seriam cartas de amor se não fossem

Ridículas.

- - -

Também escrevi em meu tempo cartas de amor,

Como as outras,

Ridículas.

- - -

As cartas de amor, se há amor,

Têm de ser

Ridículas.

- - -

Mas, afinal,

Só as criaturas que nunca escreveram

Cartas de amor

É que são

Ridículas.

- - -

Quem me dera no tempo em que escrevia

Sem dar por isso

Cartas de amor

Ridículas.

- - - 

A verdade é que hoje

As minhas memórias

Dessas cartas de amor

É que são

Ridículas.

- - -

 (Todas as palavras esdrúxulas,
Como os sentimentos esdrúxulos,
São naturalmente
Ridículas).

Álvaro de Campos (...)”[1]

Saliento, também, um livro importante, que reflete sobre a felicidade, da autoria do escritor e filósofo neopositivista inglês Bertrand Russell intitulado A conquista da felicidade[2], publicado em 1930, quando o mundo precisava de uma bússola de valores para enfrentar a crise das democracias liberais e a crise do capitalismo ocidental. Destaco este autor por ter sido Prémio Nobel da Literatura, em 1950, mas certamente muitos outros escritores escreveram sobre esta temática.

 

3. O índice económico da felicidade

Os economistas, na atualidade, compreenderam a importância da felicidade para a produtividade das empresas e das várias organizações sociais, pois trabalhadores felizes são mais muito mais produtivos. Por esta razão, os economistas introduziram um índice para avaliar a influência da felicidade nos fatores produtivos, isto é, na ciência económica esta problemática é estudada e investigada nas universidades, nos cursos superiores ligados às questões económicas e financeiras. Dizia, com muita assertividade, o Presidente da República Jorge Sampaio “há vida para além do défice”.

 

4. A felicidade na História

Evocamos alguns momentos de marcante felicidade da História recente, das últimas décadas da história contemporânea da Humanidade e da pátria portuguesa.

 

4.1. A travessia aérea do Atlântico Sul com Gago Coutinho e Sacadura Cabral (1922) e a ligação aérea entre Lisboa e Macau (1924)

A travessia do Atlântico Sul por Gago Coutinho e Sacadura Cabral foi uma proeza da aviação internacional dos anos 20 do século passado que, em 1922, assinalou o Centenário da Independência do Brasil, mas também a ligação umbilical destes dois povos irmãos lusófonos, ao mesmo tempo que contribuíram para a autoestima portuguesa que, no período da 1ª República, estava muito amarfanhada com a profunda crise, política e sócio-económica, que o país vivia. Por isso, estes dois protagonistas foram recebidos apoetaticamente, em Portugal, como heróis a fazer lembrar a gesta dos Descobrimentos Portugueses, deixando um lastro de júbilo e de orgulho nacional, num período em que o país e o mundo ocidental passavam por momentos de grande tensão sócio-emocional. Daí que os dois aviadores tenham sido recebidos no país de forma entusiástica, permitindo que ressurgisse um momento feliz, intensamente revitalizador do orgulho patriótico. Idêntica manifestação de grande regozijo coletivo passou-se com a homenagem governamental a Sarmento de Beires e a Brito Pais a propósito da grande viagem aérea Lisboa-Macau, com um cortejo popular a passar, na cidade de Lisboa, em frente ao Teatro D. Maria II.

       Fotografia de Joshua Benoliel de 1924 - homenagem a Sarmento de Beires e a Brito Pais

Fotografia Sarmento de Beires.jpg

4.1. O fim da 2ª guerra mundial (1945)

Após os traumas humanitários da 2ª guerra mundial (1939-1945), com o holocausto nazi, muitas cidades amplamente destruídas, milhões de vidas ceifadas e duas bombas atómicas lançadas no Japão, o mundo pôde celebrar a paz como garantia da construção de sociedades justas e de ideais equilibrados, tendo-se erguido a Organização das Nações Unidas e promovido uma Declaração Universal dos Direitos Humanos, para procurar edificar um mundo mais seguro e mais feliz. O pessimismo da guerra instalou a neura coletiva nas sociedades ocidentais, depois de duas guerras mundiais intercaladas por um período de desmedida euforia, que se revelaria muito nocivo nos “loucos anos 20” e no seu apogeu que foi a grande Depressão de 1929. Surgiram, por isso, nos países aliados manifestações grandiosas de júbilo popular, em setembro de 1945, com o fim do traumático acontecimento coletivo que deixou a Europa e “o mundo de pantanas”.

Habitantes de Oak Ridge (EUA) celebram o fim da guerra, setembro de 1945

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4.2. A conquista da liberdade com a revolução dos cravos (25 de abril de 1974)

A conquista da liberdade e o colapso do regime do Estado Novo criaram, na população portuguesa, uma felicidade imensa, pois muitas pessoas nunca tinham vivido num regime democrático e houve um contentamento coletivo ímpar, por haver a possibilidade das pessoas se expressarem livremente, se manifestarem publicamente e terem a oportunidade de votarem em eleições livres, o que gerou uma massiva participação nos actos eleitorais e uma manifestação gigantesca de felicidade, no dia 1 de maio de 1974. Assim se exprimia uma das nossas poetisas, sobre este acontecimento genésico da democracia portuguesa:

“Esta é a madrugada que eu esperava
O dia inicial inteiro e limpo
Onde emergimos da noite e do silêncio
E livres habitamos a substância do tempo”

25 de abril, Sophia de Mello de Breyner Andresen

 

A feliz expectativa social, no Largo do Carmo, em Lisboa, a 25 de abril de 1974, da deposição do poder de Marcello Caetano

25 de abril.jpg

4.3. A queda do muro de Berlim (1989)

A queda do muro de Berlim gerou uma onda de grande entusiasmo na Europa de Leste, com o desmoronamento do mundo comunista, marcando o fim da guerra fria. Uma imensa felicidade e uma grande expectativa, de um mundo futuramente mais democrático e mais justo, apareceu no horizonte dos europeus e dos ocidentais, ao ponto de um autor mais ingénuo sustentar que se teria chegado ao Fim da História (Francis Fukuyana, O Fim do Homem e o Último Homem, Lisboa, Gradiva Editores, 1992). Além de que este acto simbólico de destruição do muro de Berlim significou o reencontro de muitas famílias dividas entre os dois lados ideologicamente desavindos da Alemanha (a RFA e a RDA).

Queda do muro de Berlim a 9 de novembro de 1989

queda do muro de berlim.png

4.4. A vitória de Portugal no Euro 2016

O feito único no futebol português da conquista do Euro 2016, depois de desaires anteriores, como o Mundial de 2002, o Euro 2004 ou o Mundial de 2006, criaram um sentimento de enorme felicidade nacional e de orgulho no potencial desportivo dos futebolistas portugueses, que se traduziram em manifestações públicas de grande júbilo em Portugal e em alguns países lusófonos.

Remate do Éder na final do Euro 2016

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Em suma, a felicidade é o estado de bem-estar, coletivo ou individual, que dignifica a natureza humana e animal, que se manifesta a espaços na vida, mas que se almeja que possa perdurar o mais possível. No entanto o concreto da vida de tod@s é feita de imprevistos e de contrariedades, que temos de saber gerir com bom senso emocional. O que nos faz felizes varia de indivíduo para indivíduo, daí a importância da liberdade humana, para que cada ser humano possa escolher o seu próprio caminho. No entanto, um rumo comprometido com os outros que nos faça solidários e fraternos, para construirmos um mundo melhor e nos aparte, definitivamente, dos individualismos e dos divisionismos nocivos à harmonia da sociedade em que vivemos e da casa comum que habitamos (o nosso planeta, nas palavras avisadas do Papa Francisco). Por conseguinte, é fundamental celebrarmos tod@s o Dia Mundial da Felicidade, todos anos a 20 de março, com renovado vigor e inspiração. O ponto de partida para a busca da felicidade devem ser os nossos sonhos, embora sempre com o necessário realismo para olharmos para o mundo e as circunstâncias que nos rodeiam.

____________________________________________

[1] Poesias de Álvaro de Campos. Fernando Pessoa. Lisboa: Ática, 1944 (imp. 1993). – p. 84.

[2] Bertrand Russel, A conquista da felicidade, Lisboa, Guimarães Editores, 1997.

Nuno Sotto Mayor Ferrão

A RESISTÊNCIA HUMANITÁRIA À PANDEMIA COVID-19 E O ISOLAMENTO SOCIAL PROFILÁTICO

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Esta doença infecciosa, conhecida por COVID-19, detectada primeiramente na China, continua a expandir-se para outros países, como em Itália onde apareceu no dia 31 de janeiro de 2020 ou nos Estados Unidos da América, que confirmaram o primeiro caso no dia 24 de fevereiro deste ano ou em muitos outros os países em que foi sendo diagnosticado, tornando-se uma pandemia reconhecida pela Organização Mundial de Saúde.

 

Em Portugal, o primeiro caso foi diagnosticado no dia 2 de março de 2020, encontrando-se ainda em crescimento a sua difusão, bem como no mundo com o surto pandémico a acelerar o seu ritmo de expansão estatística, de acordo com os dados da Organização Mundial de Saúde.

 

A resistência que houve em França e em outros países, durante a segunda guerra mundial, foi um dos fatores fundamentais para a vitória das forças aliadas sobre os nazis. A resiliência psicólogica e física irá ser fundamental para os portugueses, os europeus, os brasileiros e muitos outros povos do mundo nesta batalha contra esta pandenia do Coronavírus 2019 (COVID-19) e que, neste momento, tem o seu epicentro na Europa.

 

Chama-se a este fenómeno de resistência coletiva estabelecido em Portugal pelo Estado de Emergência isolamento social profilático, mas é preciso resiliência para não se cair no desânio ou na depressão perante notícias mais alarmantes. É um conjunto de três elementos que é fundamental para garantir a resistência/resiliência perante a evolução ciclópica desta pandemia em Portugal, na Europa e no mundo. Iremos, então, referir estes 3 elementos cruciais para a sanidade psíquica, física e sanitária dos milhões de cidadãos, que em Portugal, na Europa e no mundo se encontram em isolamento social nas suas habitações (#ficaemcasa).

 

Em primeiro lugar, apenas a unidade espiritual e as solidariedades coletivas em termos familiares, fraternais entre comunidades de amigos, patrióticas, lusófonas e europeias nos poderão garantir o ânimo para enfrentar este isolamento social imposto em muitos países do mundo e, em particular, na Europa.

 

A Inglaterra que resistia a tomar medidas tão drásticas, acabou de decretar este mesmo isolamento social profilático. Nesta era digital, apesar da sobrecarga das plataformas de comunicação, a internet e os “smartphones” tornaram estas atitudes mais fáceis de realizar. As solidariedades patenteiam-se nas compras que os vizinhos mais novos fazem aos vizinhos mais velhos e as palavras de conforto que trazemos uns aos outros através destes meios digitais.

 

Em segundo lugar, apenas com uma fé transcendental ou com uma forte convição espiritual, num retorno necessário às humanidades e às revistas culturais, aos livros e à “cultura online”, se conseguirá vencer este inimigo invisível, que anda por aí devido à globalização social que facilitou a inesperada circulação de pessoas numa escala planetária, com viajantes de todas as nações e de vários grupos sociais.

 

As humanidades, num indispensável retorno do mundo à metafísica, permitirão perceber que esta crise imeniente irá fazer tomar consciência às pessoas, aos governantes e às empresas sedentas do lucro fácil, especulativo, de que o abismo climático estará à nossa porta dentro de algumas décadas, neste século XXI.

 

O maravilhoso mundo novo, numa alusão a uma obra-prima de denúncia simbólica do escritor Aldous Huxley, que nos prometiam os positivistas e os neopositivistas do progresso constante, como foi o ingénuo caso de Francis Fukuyama, não passou de uma ilusão de ideólogos tecnocráticos.

 

Assim, unicamente com a complementaridade das visões tecnocráticas e das visões humanistas será possível construir um mundo melhor para as próximas gerações, pois, caso contrário, a Humanidade irá de colapso em colapso até ao seu próprio extermínio. É imperioso cuidar da “nossa casa comum”, como nos diz o Papa Francisco, com um espírito mais franciscano e mais afastado da teoria dos interesses.

 

Em terceiro lugar, emerge o papel da ciência médica e da indústria farmacêutica na busca de novos métodos de tratamento, de cura e de uma vacina para prevenir os novos surtos de COVID-19, que poderão aparecer ainda em final de 2020 ou início de 2021. É absolutamente vital a investigação laboratorial humanitária, da China, dos Estados Unidos e da Alemanha, em prol de tod@s os cidadãos do mundo, uma vez que poderá ser primordial para reduzir vítimas letais deste surto pandémico e minimizar grandes efeitos colaterais na economia.

 

Estão a revelar-se autênticos heróis os trabalhadores do Sistema Nacional de Saúde dos países europeus e do mundo, eventualmente, onde haja estruturas sanitárias semelhantes, pois o mundo foi apanhado desprevenido com este surto pandémico e apenas o esforço humanitário e o sacrifício suplementar da comunidade médica, de enfermeiros, de auxiliares de ação médica, de farmacêuticos e de fornecedores de bens essenciais tem conseguido responder com dificuldade ao crescimento exponencial de casos por todo o mundo, cifrando-se em mais de 350 mil de pessoas infectadas a nível global, embora a batalha esteja a ser muito dura, particularmente em Itália e em Espanha, nesta fase no fim do primeiro trimestre de 2020.

 

O problema continua a ser que a economia está baseada em pantanosos alicerces financeiros, que apenas desvirtua a economia real e a torna muito mais vulnerável aos golpes fraudulentos dos detentores de grandes fortunas e à fuga de capitais para maléficos paraíses fiscais, que garantirá mais desigualdades sociais no mundo, como o anunciam os relatórios PNUD da ONU.

 

Neste âmbito financeiro, foi positiva a decisão da Comissão Europeia, anunciada por Ursula Von Der Leyen, de que os países europeus da União Europeia passavam a usufruir de uma flexibilidade orçamental com a exclusão da regra de um máximo de défice orçamental de cada país de 3%, no decorrer desta conjuntura pandémica.

 

Em suma, nesta conjuntura de guerra contra esta pandemia, impõe-se uma resistência coletiva com um isolamento das famílias e das pessoas infetadas para se estancarem as correntes infecciosas, que circulam nas nossas sociedades neste mundo global. Unicamente mediante esta resistência coletiva, a que apelou Winston Churchil com o seu famoso discurso, do início da segunda guerra mundial, de “sangue, suor e lágrimas” face ao inimigo nazi, em 1940, será possível vencer este terrível inimigo invisível que é o Coronavírus 2019 (COVID-19). 

Nuno Sotto Mayor Ferrão

DECLÍNIO CIVILIZACIONAL DO VELHO CONTINENTE (1914-2015) ?

 

A Europa tem sido denominada de velho continente, pois conseguiu afirmou-se como o berço humanista do mundo por ter feito despontar na sua Civilização a democracia liberal, um rico património ético e uma apurada sensibilidade defensora dos direitos humanos. Perguntamos se, realmente, a Europa se encontra num lento declínio civilizacional como o escreveu Osvald Spengler, no início do século XX, na obra O Declínio do Ocidente e como o pretende sustentar, também, o nosso insigne pensador Adriano Moreira.

 

Na altura, em que Spengler sustentou a sua tese decadentista a Europa, em 1918, acabara de sair de um conflito improcedente que gerou a luta de todos contra todos, designadamente fruto de uma louca ambição germânica. Arnold Toynbee, historiador britânico, vem nos anos subsequentes contrariar esta tese com uma inspiração mais espiritualista.

 

Iremos analisar o percurso histórico da Europa que nos permite perceber se esta intuição de Spengler será ainda verdadeira, ou não, nos nossos dias. Na realidade, as duas guerras mundiais que o velho continente desencadeou nos anos de 1914-1918 e de 1939-1945 por excessiva ambição germânica permitiu a ascensão dos EUA e da URSS como superpotências, ao mesmo tempo que deixou de rastos o velho continente, esfacelado em ruínas e com a sua economia nas ruas da amargura.

 

Destes tenebrosos escombros sombraíram homens de uma fibra invulgar que lutaram contra o monstro titânico chamado Adolfo Hitler ou afirmaram-se na hercúlea necessidade reconstrutora, designadamente Winston Churchill, Charles de Gaulle, Roberto Schuman e Jean Monnet.

 

Esta verdadeira loucura coletiva iniciada pela Tríplice Aliança e pelas potências do Eixo, com dois contumazes repetentes no erro, a Alemanha e a Itália, acabou por levar os europeus à perda dos seus impérios coloniais, fruto do esforço autonomista dos territórios dependentes e da consagrada ideologia do direito de autodeterminação dos povos, saída das Nações Unidas.

 

Perante esta depressão coletiva, a Europa gizou um projeto institucionalista, que começou na CECA e se transformou na CEE durante os anos 50, de relançamento material das suas condições de produção industrial, beneficiando dos trinta gloriosos anos de progresso económico (1945-1973), todavia com as crises dos anos 70 a par do emergir da potência nipónica fizeram claudicar os ânimos europeístas.

 

O fim da guerra fria fez pensar alguns ideólogos, no fim do século XX, que com a globalização, com as políticas neoliberais e com o reforço institucional da comunidade europeia transformada em União Europeia seria possível relançar o velho continente para novos horizontes.

 

Neste contexto histórico, aparece a teoria de Francis Fukuyama que ingenuamente pensou que o fim da História estaria a chegar com a expansão das democracias liberais no mundo, no entanto o caos aberto na política internacional com o desaparecimento da outra superpotência, a URSS, impediu que o paradigma ocidental se mundializasse e nem a teoria dos mercados livres pôde singrar, pois logo em 2008 surgiu uma violenta crise do Capitalismo Financeiro.

 

Entretanto, a Europa comunitária avançou para um sistema monetário comum, com a implementação do Euro, sem perceber que não estavam reunidas as condições de coesão económica e financeira nos países da zona Euro, o que levou, naturalmente, à crise das dívidas soberanas que principiou com o caso grego em 2010 e proliferou por outros países europeus designados PIGs.

 

Esta crise, do fim da primeira década do século XXI e início da segunda década, disseminou a vontade europeísta de construção de um projeto comum, que, aliás, começou logo em países integrados na zona Euro e em outros apostados nas suas moedas nacionais.

 

Contudo, houve uma tentativa de responder à crise da Zona Euro com políticas austeritárias, na senda do que vinha sendo desenhado pelas políticas neoliberais, só que estas políticas representavam uma perceção economicista do Homem, o que o deixou vulnerável a novos perigos como o reconhecem os vários relatórios do PNUD, pois tem sido descartado o desenvolvimento sustentável e a própria enciclíca do Papa Francisco Laudato Si vem sublinhar estes mesmos riscos com que a Humanidade, e não já só a Europa, se confronta.

 

Aliás, o escândalo recente das manipulações nas marcas automóveis europeias quanto às emissões poluentes demonstra a falta de valores das grandes empresas multinacionais.

 

Na Europa, até ao início do século XX, estavam as principais potências geo-estratégicas internacionais, mas encontra-se hoje em grande dificuldade, pois os seus grandes países perderam protagonismo mundial e emergem novas potências mundiais concorrentes como o Brasil, a Rússia, a Índia, a China e a África do Sul, designados BRICS.

 

De tal forma, esta transformação se reflectiu na diminuição do peso estratégico da Europa no mundo que os países mais ricos e industrializados do mundo no fim do século XX se reuniam no G7 com representatividade de 57% de países europeus, enquanto no início do século XXI o G20 já apresenta apenas uma representativa europeia de 30 %. Este aparente declínio civilizacional da Europa é fruto não de um atraso de desenvolvimento deste continente, mas, sobretudo, da crise demográfica que a faz mais diminuta populacionalmente no conjunto das nações.

 

Esta debilidade do velho continente não é, portanto, nenhuma novidade, só que algumas ilusões políticas tornaram esta realidade menos notória para a opinião pública europeia. A ausência de uma política concertada e avisada perante a crise humanitária de refugiados, que nestes últimos meses (julho, agosto e setembro de 2015) tem acorrido à Europa fruto das guerras em países como a Síria, o Iraque e o Afeganistão, mostra à saciedade a falta de uma consciência ética europeia que permitisse uma forte política comum de resposta a esta candente problemática migratória.

 

A Europa tem estado a olhar para os seus próprios problemas, para o seu umbigo, nomedamente com a questão chamada “Grexit” e só quando o problema transbordou as suas fronteiras e milhares de pessoas faleceram na travessia do Mar Mediterrâneo acabou por acordar para esta problemática de crise humanitária dos refugiados e a migração em massa para o velho continente.

 

A decadência da Europa explica-se, na atualidade, concomitantemente pela ausência de elites que saibam liderar os seus povos com carisma e determinação, apesar das agruras do momento como o fez Winston Churchill em 1940, e também pelo facto do velho continente em várias décadas ter vivido de uma mentalidade excessivamente pragmática de resposta às questões imediatas, sem pensar em definir um conceito estratégico comum com horizontes mais vastos que tivessem em conta a riqueza do património ético e histórico da Civilização Europeia.

 

Este relativismo escorado nas diferentes identidades nacionais, sem perceber que o que nos une é mais forte do aquilo que nos separa, acabou por deixar a União Europeia sem norte e por guiar-se pela principal potência industrial, a Alemanha, que carece da sensibilidade humanista de outros povos europeus.

 

Foi pena que aquando da discussão de uma Constituição Europeia, necessária para responder ao quadro da globalização desregulada, não se tenha definido como base da matriz identitária europeia o cristianismo. Aliás, é um argentino que com o seu atual carisma está a conseguir mobilizar o mundo para a necessidade de definir um paradigma comum para a unidade e a sustentabilidade da própria Humanidade, refiro-me ao Papa Francisco.

 

Em suma, só seguindo o exemplo inspirador do Papa Francisco, com as suas atitudes de simplicidade e de espontaneidade, a Europa poderá ter lideranças confiáveis que mobilizem as suas populações para uma unidade fraterna em torno de um projeto comum moldado numa estratégia que respeite as diferentes identidades nacionais, mas que una os europeus nos seus valores comuns e em prioridades bem definidas. Caso contrário, a Europa entrará verdadeiramente num inevitável declínio fruto de divisionismos políticos de que a Escócia, a Catalunha e a intolerante Hungria bem exemplificam.

 

Nuno Sotto Mayor Ferrão

 

 

LEITURAS INTERESSANTES DA BLOGOSFERA SOBRE A CRISE SISTÉMICA DO CAPITALISMO FINANCEIRO

 

 

Joana Lopes no blogue “Entre as Brumas da Memória” num texto com o título “Este capitalismo não dá respostas à crise” apresenta-nos uma entrevista a Ulrich Beck que diz que a democracia tem de ser reinventada ao nível transnacional para não ficar refém dos jogos especulativos dos mercados. Osvaldo Castro no blogue “A Carta a Garcia” reproduz uma peça jornalística com o título “Delors diz que responsáveis europeus agiram muito pouco e muito tarde” em que se dá conta da opinião de Jacques Delors de que a preparação do Euro foi precipitada e que a resposta actual é muito tardia.

 

Ana Paula Fitas no blogue “A Nossa Candeia” no texto “Da austeridade ao ressuscitar dos dilemas históricos” fala-nos da necessidade de revitalizar o aparelho produtivo interno e de pôr cobro às prepotências dos mercados de que os economistas e os políticos têm sido tão subservientes. Lembra-nos que o “fim da História” ainda não chegou, que não houve realmente um casamento do capitalismo com a democracia como antevia Francis Fukuyama nos anos 90. João Rodrigues no blogue “Ladrões de Bicicletas” lembra no texto “Recapitalizações há muitas” que os reforços de capitais dos bancos podem ser feitos para benefício da economia ou para satisfazer a ganância extrema dos banqueiros que pretendem tornar o Estado um refém dos seus interesses.

 

José M. Correia Pinto no blogue “Politeia” no texto “Preparando o futuro” apresenta-nos uma excelente análise das verdadeiras causas da crise do Euro por detrás da dogmática afirmação de que foi a incompetência dos países latinos ou de influência católica que desencadeou a crise. Na realidade, as causas estruturais são políticas como nos diz Jacques Delors e sobretudo residem na crendice cega colocada na ideologia espalhada por Milton Friedman que conquistou muitos líderes europeus.

 

Francisco Seixas da Costa no blogue “Duas ou três coisas – notas do Embaixador Português em França” com o texto “Negociar na Europa” fala-nos da necessidade de, face a um novo paradigma institucional que os novos Tratados quererão introduzir para resolver o problema do Euro, em Portugal se encontrarem consensos máximos na sociedade para reforçar o poder negocial num tempo de extrema fragilidade da soberania financeira portuguesa dada a ajuda externa. José Medeiros Ferreira no blogue “Córtex Frontal” no seu incisivo comentário “Sindicatos ressuscitam na Europa” mostra-nos que na Grã-Bretanha os movimentos de contestação social estão a ter uma força inusitada. 

 

Carlos Barbosa de Oliveira no “post” intitulado “Noites de cinema” mostra-nos uma curtíssima metragem de uma extraordinária beleza.

 

Nuno Sotto Mayor Ferrão

 

O NOSSO MUNDO – A LÍBIA, OS PAÍSES ÁRABES E A UNIÃO EUROPEIA – E AS LIBERDADES AMEAÇADAS – CONQUISTAS E CONSTRANGIMENTOS EM 2010 E 2011

 

“(…) A liberdade está ameaçada, e a educação para a liberdade é urgentemente necessária. (…)”

in Aldous Huxley, Regresso ao Admirável Mundo Novo, Lisboa, Livros do Brasil, s.d., p. 227

 

O nosso mundo parecendo progredir, nos últimos anos à custa de uma prometida Globalização, tem caído numa teia de crises que geram nas mentalidades das pessoas um sentimento de profunda incerteza. Na verdade, as revoluções da “Primavera  Árabe”, agora no fim da sangrenta guerra civil na Líbia, tem-se traduzido numa luta contra regimes políticos opressivos no Norte de África e no Médio Oriente. No entanto, das revoluções desconstrutivistas aos sonhados regimes democráticos plenos vai uma distância abissal de um longo caminho que urge trilhar.

 

Assim, os povos do mundo parecem clamar por Estados de Direito, que salvaguardem a justiça social e o civismo, parecendo, na aparência, dar razão à consabida tese de Francis Fukuyama[1] de fim da História. No entanto, esta perspectiva é uma pura ilusão dos ingénuos, pois as conquistas democráticas da “Primavera Árabe” ainda são muito prematuras e o sistema internacional tem esvaziado, sob pressão de uma Globalização Financeira, os regimes democráticos. É certo que um vento de Esperança surgiu nos EUA com a eleição do Presidente Barack Obama em 2009.

 

Na União Europeia, devido à falta de vontade política, os regimes democráticos têm entrado, como sustenta Boaventura Sousa Santos[2], num ritmo de baixa intensidade, reduzindo as formas de participação dos cidadãos através de liberdades sitiadas e de direitos sociais a minguar. Estes constrangimentos Europeus decorrem da ditadura dos mercados financeiros, aceites pela mulher mais poderosa do planeta[3] (chanceler alemã Ângela Merkel) e pelo presidente francês Nicolas Sarkozy, que se recusam a gizar uma estratégia comunitária ousada que sirva de alternativa. De facto, este é um tempo em que domina no Velho Continente o pensamento único[4], neoliberal, que adormece e torna apática a consciência cívica dos povos Europeus.

 

Neste tom de resignação ideológica Ângelo Correia, figura bem conhecida da vida política portuguesa, disse, no Jornal da Noite da RTP-N de 28 de Julho de 2011, que o mundo tem de aceitar e consciencializar-se da inevitabilidade do pensamento único. Aliás, Henrique Medina Carreira[5] e Manuela Ferreira Leite[6] já advogaram implicitamente, ou mesmo explicitamente, que o controlo das contas públicas, em anos anteriores, só se seria possível com um regime autoritário.

 

Em conclusão, no nosso mundo as liberdades estão longe de progredir, embora as promessas de um Admirável Mundo Novo[7] façam sorrir povos oprimidos, como a Líbia a libertar-se do regime do coronel Kadafi, porque o sistema da Globalização Financeira quer impor ao mundo uma única filosofia de vida, consumista, que aproxima a Humanidade do abismo ecológico e social. Com efeito, só esta consciência das liberdades ameaçadas poderá despertar a opinião pública mundial para a iminente tragédia decorrente da apatia cívica e da falta de sentido crítico face à Globalização Financeira em que as elites têm querido adormecer as populações.

 

Nuno Sotto Mayor Ferrão

 


[1] Francis Fukuyama, “A Revolução Liberal Mundial”, in O Fim da História e o Último Homem, Lisboa, Editora Gradiva, 1992, pp. 59-70.

[2] Boaventura Sousa Santos, Portugal – Ensaio contra a autoflagelação, Coimbra, Almedina Editora, 2011, pp. 131-132.

[3] De acordo com informação divulgada em Agosto de 2011 pela revista “Forbes”.

[4] Há autores inspirados que já falam nesta presente conjuntura como a manifestação de um Despotismo Esclarecido dos dissimulados defensores da ideologia neoliberal.

[5] Henrique de Medina Carreira, “O fim da ilusão”, in O fim da ilusão, Alfragide, Editora Objectiva, 2011, pp. 93-97.

[6] Ficou conhecida nos anais da História Política Portuguesa a frase de Manuela Ferreira Leite de que para endireitar as Finanças Públicas Portuguesas era necessário um interregno da democracia por uns meses.

[7] Aldous Huxley foi um escritor inglês de renome internacional que publicou um romance satírico com o título de Admirável Mundo Novo que anunciava as ameaças que o futuro parecia trazer à liberdade. É muito interessante o ensaio que passados quase trinta anos este autor escreveu sobre o mundo contemporâneo ( Aldous Huxley, Regresso ao Admirável Mundo Novo, Lisboa, Livros do Brasil, s. d.).

 

TONY JUDT (1948-2010), BREVE RECENSÃO CRÍTICA DO LIVRO “UM TRATADO SOBRE OS NOSSOS ACTUAIS DESCONTENTAMENTOS”

 

 

 

Tony Judt (1948-2010) foi um reputado historiador, escritor e professor universitário britânico que leccionou na Grã-Bretanha e nos EUA. Foi galardoado com vários Prémios nos últimos anos: finalista do Prémio Pulitzer em 2006, vencedor dos Prémios  (Hannah Arendt em 2007, Livro Europeu em 2008 e Menção Honorária George Orwell em 2009). O seu livro mais emblemático intitula-se Pós-Guerra – Uma História da Europa desde 1945, que já se tornou um clássico da historiografia europeia. Veio a falecer em Agosto de 2010 com uma esclerose lateral amiotrófica. Tornou-se um pensador das implicações da actual Globalização e um crítico contundente das posições de Israel e da política belicista dos EUA levada a cabo por G. W. Bush. Em 1996 criou na Universidade de Nova York um centro de estudos europeus designado “Remarque Institute”.

 

Este pequeno, mas substantivo, livro[1] procura responder a quatro grandes questões que se revelam de enorme actualidade:

 

  • Que factores históricos levaram à crise do Estado-Providência dos países Ocidentais nos últimos 35 anos (1975-2010)?
  • Que lição histórica nos legou a mega Crise do capitalismo industrial de 1929?
  • Por que razão as sociedades actuais dos países ocidentais se sentem descontentes?
  • Como podem os países Ocidentais enfrentar os crescentes problemas socioeconómicos que os afectam?

 

Esta pertinente reflexão política, de base histórica, tem como objectivos centrais despertar a consciência crítica e cívica dos nossos prezados concidadãos ocidentais, que vivem numa gritante indiferença ideológica, por se terem deixado iludir pelas virtualidades do mercado livre (teologia de mercado[2]) que conduziu à redução dos mecanismos de intervenção do Estado.

 

Efectivamente, após 30 anos milagrosos, de prosperidade económica e de garantias de segurança, dados pelos Estados-Providência aos cidadãos ocidentais (1945-1975) a Europa e os EUA iniciaram uma inversão ideológica que desembocou numa crise múltipla, já no período de transição do século XX para o XXI, geradora de um mal-estar colectivo destas sociedades. Este transviado caminho começou com a liberalização económica extrema iniciada por Margaret Thatcher e Ronald Reagan, influenciados por ideólogos famosos como Friedrich Hayek, Ludwig von Mises e Milton Friedman, por escolas de gestão que proliferaram, que implementaram políticas neoliberais, conducentes à desregulamentação da economia e das finanças internacionais, com o pressuposto de que o individualismo geraria concorrência saudável e eficiência em muitos serviços prestados ao público.

 

Esta opção ideológica permitiu a onda de privatizações que varreu grande parte da Europa. Esta fase histórica foi impulsionada pela queda do muro de Berlim (1989) e dos regimes comunistas no leste do “velho continente” que deu a sensação a alguns, que subscreveram a tese de Francis Fukuyama[3], que o rumo político da História era uno para toda a Humanidade (“fim da História”). Contudo, com a implosão do capitalismo financeiro, em 2008, a opinião pública mundial percebeu a falta de esteios Éticos por parte dos Estados que deviam ter sido mais interventivos e vigilantes. Depois dos “calafrios” do cataclismo do sistema financeiro norte-americano, Henry Paulson, Secretário de Estado do Tesouro de G. W. Bush pediu autorização Estatal para injecções de capitais no periclitante sistema financeiro. Este ponto de chegada (a crise financeira de 2008) resultou da irresponsabilidade política dos dirigentes ocidentais na transição do século XIX para o XX.

 

Esta actual situação pantanosa das finanças internacionais, resultante da liberdade absoluta que foi dada aos especuladores e investidores privados, procedeu dos mitos impostos pelos defensores do Neoliberalismo, designadamente dos princípios seguintes encarados como dogmas: o culto das privatizações e do sector privado como favorável à eficiência e à qualidade dos serviços; a ilusão de que mercado livre iria permitir o crescimento ilimitado das economias; a virtude da desregulamentação do sector financeiro e de um Estado reduzido à dimensão mínima. Este credo Neoliberal foi mais absorvido pelos EUA, que acabaram por sofrer terrivelmente com a implosão do sistema financeiro, uma vez que estava minado por especuladores sem escrúpulos.

 

Esta crise actual, que se expandiu globalmente a outras regiões e a outros sectores, traduz a degradação Ética que colheu a sua seiva no sistema da competição selvagem que se instalou com os Governos de matriz neoliberal. Por exemplo, a Irlanda, que seguiu de perto os modelos britânico e norte-americano, foi considerada durante muitos anos como um modelo a imitar por várias nações que se queriam alçar nos “rankings” de crescimento económico, viu o seu sistema financeiro entrar em ruptura.

 

O economicismo como estratégia política tem degradado a Civilização Ocidental, que naufraga à vista de todos os honrados cidadãos, porque na visão de Tony Judt tem faltado aos Governantes um pensamento político de fundo e as opiniões públicas não despertaram ainda para esta situação de calamidade social com taxas de desemprego exorbitantes, em vários países, e com uma visível degradação do nível de vida das classes médias. Não obstante, esta apatia, das opiniões públicas, tem havido vários alertas de sumidades para a desconfiança que se deve manter perante o sistema financeiro, e os seus agentes, pois as verdades proclamadas contaminaram a credibilidade do capitalismo sem peias que foi fustigado por mentes conscienciosas de diferentes convicções ideológicas (Papa Bento XVI[4], Dr. Mário Soares[5], Professor e Pensador Vitorino Magalhães Godinho[6], o Historiador e Pensador Tony Judt, etc).

 

Como soluções de emergência, para obstaculizar as bancarrotas nacionais, os Estados, anteriormente tão odiados, foram em socorro dos bancos e das empresas injectando dinheiro dos contribuintes nesses sorvedouros resultantes da imoderada especulação e do lucro fácil que atraiu incautos cidadãos. Neste contexto, generalizado, de insucesso das políticas neoliberais as teses Keynesianas (economista John Maynard Keynes[7]) foram reabilitadas, porque importava fortalecer os Estados e tornar os Governos mais intervencionistas nas economias.

 

Tony Judt, com a acutilância da sua argumentação histórica, denuncia neste excelente ensaio que as rupturas do Estado-Providência e dos Sistemas de Segurança Social não se devem só ao factor da quebra demográfica Europeia, como os políticos e muitos comentadores gostam de sublinhar, mas fundamentalmente ao desmantelamento do Estado e dos seus Bens Patrimoniais por via das opções neoliberais. Com efeito, na sua percepção, a social-democracia esboroou-se dos cenários políticos das últimas décadas com o fenómeno das privatizações que fragilizou os Estados, com o processo da internacionalização das economias nacionais (vulgo Globalização económica) que facilitou a fuga de capitais aos mecanismos de tributação, por via dos paraísos fiscais, e com a crise demográfica procedente do envelhecimento da população Europeia.

 

Na sua vasta lucidez, o autor não evita a questão da falta de sustentabilidade económica dos Estados-Providência, mas afirma que tal possibilidade implica uma tributação elevada, geral ou selectiva, dos contribuintes e uma redefinição dos Serviços Básicos do Estado Social. Apenas evita falar em socialismo democrático por uma razão de convicção ideológica. Por outro lado, apresenta as emergentes potências mundiais (China e Índia) como países em contra ciclo económico, pelos níveis acelerados de crescimento dos últimos anos, que apenas proporcionam riqueza a uma minoria das suas sociedades.

 

Importa reter, também, algumas lições da História Contemporânea que Tony Judt como um reputado historiador nos deixa. Na realidade, os 30 anos do pós-guerra de 1945 a 1975 permitiram aos países mais desenvolvidos do Ocidente erguer Estados-Providência, ou no mínimo edificar um Estado Social de protecção dos cidadãos mais desfavorecidos, que contribuíram para diminuir as desigualdades sociais internas em várias nações Europeias devido às orientações social-democratas. Esta consciência construtiva dos Estadistas Europeus do pós-guerra adveio da recordação histórica, gravada na memória colectiva, da Grande Depressão de 1929 e das suas nefastas consequências sociais, políticas e militares (desemprego gritante, ascensão das ditaduras de extrema direita e eclosão da Segunda Guerra Mundial), tendo levado os Governos do Ocidente ao Planeamento, à Regulação e à Intervenção em todos os aspectos da vida da sociedade e da economia, embora com um sacralizado respeito pelos Direitos e Liberdades dos cidadãos.

 

De facto, a seguir à Segunda Guerra Mundial houve um consenso político-ideológico que congregou economistas, políticos, analistas e cidadãos em torno da necessidade de aceitar tributações elevadas para suprir as exigências das Despesas Públicas com os Serviços Sociais, o que se ficou a dever às lições da absurda beligerância das nações Europeias. No entanto, o predomínio da tendência individualista e as iniciativas políticas da “Dama de Ferro” e do “Cowboy”[8], dos filmes Western, vieram a mudar o paradigma e a mentalidade política prevalecente nos anos 80, 90 e nesta primeira década do século XXI com os ruinosos resultados que hoje são visíveis.

 

A solução para o futuro, na visão deste esclarecido e prudente historiador, está na reinvenção de um novo paradigma, sem dogmas, que implique o reencontro com os princípios da social-democracia e do socialismo democrático para que a Civilização Ocidental possa caminhar para a superação dos dilemas que agora a afligem. Acredita, pois, no papel do Estado e do sector público para a viabilização do Bem Comum e de uma Sociedade mais justa. Tony Judt lembra-nos que é nos países que adoptaram a social-democracia como paradigma político (a Suécia, a Finlândia, a Noruega, a Dinamarca, a Holanda, etc) que se manifesta uma maior justiça social, um maior bem-estar dos cidadãos com uma riqueza mais bem distribuída constituindo a argamassa que salvaguarda a coesão das próprias sociedades. Sem este indispensável investimento estratégico na revitalização, exequível, dos Estados-Providência continuaremos a viver na conjuntura internacional de uma Globalização, egoísta, que tem conduzido às crescentes desigualdades sociais internas e ao flagelo do desemprego em larga escala.

 

Nuno Sotto Mayor Ferrão

 


[1] Tony Judt, Um tratado sobre os nossos actuais descontentamentos, Lisboa, Edições 70, 2010.

[2] Adriano Moreira, “A perspectiva da Globalização do passivo”, in Estudos da Conjuntura Internacional, Lisboa, 2000, p. 296.

[3] Francis Fukuyama, O Fim da História e o Último Homem, Lisboa, Edições Gradiva, 1992.

[4] Bento XVI, A Caridade na Verdade – Encíclica, Prior Velho, Edições Paulinas, 2009.

[5] Mário Soares, Elogio da Política, Lisboa, Sextante Editora, 2009.

[6] Vitorino Magalhães Godinho, Os Problemas de Portugal – Os Problemas da Europa, Lisboa, Edições Colibri, 2010.

[7] John Maynard Keynes, Teoria geral do Emprego, do Juro e da Moeda, Lisboa, Relógio de Água, 2010.

[8] Margaret Thatcher ficou assim conhecida nos meios de comunicação social dos anos 80 e 90 e Ronald Reagan já era conhecido, antes de exercer a Presidência dos EUA, como um actor de filmes de cowboys.


 

 

 

 

 

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