O FRANCISCANISMO E SUA ATUALIDADE NAS PERCEÇÕES CONTEMPORÂNEAS DE JAIME CORTESÃO A JORGE MÁRIO BERGOGLIO (PAPA FRANCISCO)
Francisco de Assis viveu na transição do século XII para o XIII (1182-1226), tendo sido um religioso místico que fundou a primeira ordem religiosa mendicante, rompendo com as ordens religiosas afastadas do mundo, refugiadas nas suas paredes conventuais. Este santo, adorador da Natureza, festejou a noite de Natal de 1223 num bosque, com uma missa, diante de um presépio com uma grande assistência de frades menores e das classes populares. Os franciscanos tornaram-se, assim, os grandes divulgadores do presépio no mundo ocidental[1].
No contexto medieval, do início do século XIII, em que as cidades cresceram económica e demograficamente com o desenvolvimento do grupo dos mercadores, da burguesia, tornaram-se gritantes as desigualdades sociais e a ostentação material da Igreja Católica face às inúmeras doações que recebia.
Apareceu, deste modo, a necessidade de reformar o Cristianismo para o despojar da opulência em que uma parte do clero vivia. O franciscanismo, através da regra interna, procurava ajudar os pobres e os desfavorecidos e vinculava estes frades menores a viverem segundo princípios novos que postulavam “(…) obediência, pobreza e castidade (…) Os irmãos não terão nada de próprio, nem casa, nem terra, nem coisa nenhuma, mas como peregrinos e estrangeiros neste mundo, servindo o Senhor em [2]pobreza e humildade, sigam pedindo esmolas confiadamente. (…)”[3]
Jaime Cortesão, insigne historiador, salientou o papel do Franciscanismo nos Descobrimentos marítimos portugueses. Assim, considerou que os Franciscanos, pela sua visão generosa da Natureza, pela atividade missionária e pela literatura de viagens dos frades menores, foram os criadores da mística dos Descobrimentos marítimos portugueses de quatrocentos. Na sua aceção, os Franciscanos modificaram a essência do Cristianismo, de base católica, promovendo a exterioridade caritativa em favor dos desfavorecidos rompendo, assim, a interioridade do monaquismo medieval e favorecendo o empreendimento das Descobertas marítimas. Por outras palavras, o ideal Franciscano da vivência humilde, junto dos pobres, favoreceu o movimento de abertura da Igreja à sociedade e ao mundo, tendo sido propiciador da expansão marítima na sua motivação religiosa de conversão de novos povos.
O filme de Franco Zeffirelli, de 1972, sobre São Francisco de Assis mostra-nos a sua conversão plena ao Cristianismo, após a renúncia às riquezas familiares em benefício de uma vida espiritual mais rica. É um belo filme, que recomendo pela sua qualidade estética, válido pela mensagem de busca da unidade espiritual da Igreja com o mundo. Aqui deixo um pequeno excerto do filme, bem elucidativo.
Neste tempo em que o materialismo reinante[4] e a, concomitante, ideologia neopositivista tecnocrática são predominantes, a necessidade de espiritualização do mundo torna-se cada vez mais premente. Aliás, não é por acaso que novas formas de espiritualidade (o budismo, a ioga, os retiros espirituais, etc) são revalorizadas face ao contexto de um materialismo despersonalizante a que a Humanidade tem sido conduzida pela Globalização desregulada.
A eleição de Jorge Mário Bergoglio como Papa com o nome de Francisco, neste contexto de crise Ética, é uma resposta significativa de grande simbolismo perante a premente necessidade de implementar o espírito do Concílio Vaticano II, isto é, de aproximar a Igreja Católica do mundo quotidiano. Numa conjuntura internacional em que as desigualdades sociais são exponenciais, em virtude de uma Globalização impreparada pela visível desregulação, e em que a ostentação de alguns privilegiados, fruto do Capitalismo selvagem, é cada vez mais chocante, importa apelar ao espírito de humildade e de simplicidade que caraterizou a reforma do Cristianismo com a fundação das ordens mendicantes, designadamente da ordem dos Franciscanos.
Este retorno do espírito Franciscano neste pontificado, que agora se inicia, evoca um eterno retorno de problemas cíclicos e de soluções consabidas, porque urge compreender com espírito Humanista a natureza humana. Com efeito, não é possível, como nos diz o filósofo José Gil[5], avaliar tecnocraticamente as sociedades Globalizadas sem hipotecar as virtualidades da natureza humana. Na verdade, o neopositivismo ideológico que se nos impôs com a Globalização tecnocrática imposta por interesses materiais de alguns poderosos tem desvirtuado a natureza humana à luz da verdade das Humanidades, da Igreja Católica e das Ciências desde Sigmund Freud a António Damásio.
Em suma, o problema das sociedades contemporâneas, na leitura do Concílio Vaticano II e do Papa Francisco, é a sua crescente desumanização, em virtude da cobiça de alguns poderosos em detrimento de muitos cidadãos. Daí a importância de revalorizar a mensagem Franciscana da humildade e da simplicidade de vida para que se possa romper com a crise de valores a que esta ideologia neopositivista dos tecnocratas do Capitalismo Financeiro nos tem conduzido[6].
[1] “São Francisco de Assisis”, in Jorge Campos Tavares, Dicionário de Santos, Lello Editores, 2004, pp. 59-60.
[2] Nuno Sotto Mayor Ferrão, “As linhas de força do pensamento historiográfico de Jaime Cortesão”, in Nova Águia, nº 11, 1º semestre de 2013, Sintra, Editora Zéfiro, 2013, p. 133-134.
[3] Regra de São Francisco (1223) – números 1 e 6.
[4] Nuno Sotto Mayor Ferrão, “Relativismo Ético na História Contemporânea (1914-2010)”, in Brotéria, nº1, volume 174, Janeiro de 2012, pp. 47-51.
[5] José Gil, Em busca da identidade – o desnorte, Lisboa, Relógio d’Água, 2009, pp. 52-53. Vejamos a lúcida observação deste pensador: “(…) É inevitável, assim, que a avaliação como diagrama transversal a toda a sociedade, tenda a transformar todas as relações humanas em relações funcionais de poder. O preço pago por esta tecnologia biopolítica é, evidentemente, a mutilação de uma vida mais rica, a diminuição brutal dos possíveis, a restrição do aleatório, do acaso da imprevisibilidade. Como estes serão também transformados em funções – a famosa ‘criatividade’ no trabalho, nas empresas, nos serviços, na publicidade, nos média -, os próprios factores aparentemente incodificáveis serão avaliados, quantificados, normalizados. (…)”.
[6] A mensagem do filme de Charles Chaplin Tempos Modernos, de 1936, está mais atual do que nunca neste contexto de uma Globalização desregulada.
Nuno Sotto Mayor Ferrão