A FUNÇÃO SOCIAL DOS INTELECTUAIS NA ATUALIDADE – ABORDANDO A TESE IDEOLÓGICA DE VASCO GRAÇA MOURA
“(…) O discurso que confunde globalização com a extinção das diversidades humanas e culturais, é um método injusto e frustrado de tentar colonizar os espíritos em detrimento da necessária solidariedade plural. (…) de acordo com a tese de Herbert Marcuse, houve uma instrumentalização do saber e da técnica, o que levou Jurgen Habermas a publicar o útil ensaio sobre Técnica e Ciência como Ideologia (1968). (…) tenho concluído que o Norte do Globo, que se definiu como afluente, consumista, e até unidimensional, derivou para um credo de mercado, hierarquizou os saberes em termos de encontrar para essa economia um paradigma de legitimação, limitou profundamente o papel, que fora dominante, das faculdades de humanidades, colocou o preço das coisas no valor das coisas, e desenvolveu, ao lado da ameaça das armas de destruição maciça, a ameaça igual entre sociedades ricas e sociedades pobres. (…)”
Adriano Moreira, “Discurso de Doutoramento Honoris Causa na Universidade do Mindelo – Cabo Verde”, in Nova Águia, nº 9, Sintra, Editora Zéfiro, 2012, pp. 216, 217 e 218.
“(…) Os intelectuais, no sentido elitista que a expressão teve em França e no século XX, estão em vias de extinção. (…) Há uma interacção entre a ideologia política, a tecnocracia, a formação crítica e o imediatismo impaciente que distorce a função intelectual. (…) A crise das elites não é um fenómeno português. Generalizou-se pela excessiva especialização das formações universitárias, pela empresarialização obsessiva da instituição universitária, pelo postergamento das humanidades e da cultura geral no sentido nobre do termo. Deixou de haver elites no sentido humanístico e cívico para haver especialistas que só vêm o seu próprio quintal e nem sempre…Portugal, se não tiver cuidado, para lá caminha. (…)”
“Vasco Graça Moura ‘Os intelectuais estão em vias de extinção – entrevista de Margarida Bon de Sousa a Vasco Graça Moura”, i (jornal), 17 de agosto de 2013, p. 25
O intelectual é, por definição, “a pessoa que cultiva preferencialmente as coisas do espírito, do entendimento”[1] que valoriza o espírito crítico na construção de um conhecimento global. Como alguns exemplos de intelectuais, de grande relevo, da atualidade refiro Adriano Moreira, Edgar Morin, Eduardo Lourenço, José Mattoso, José Gil, Boaventura Sousa Santos, Noam Chomsky, Manuel Clemente, António Lobo Antunes, Jurgen Habermas, etc, além de uma nova geração de discípulos influenciada por estes mestres do pensamento sistémico.
O episódio histórico de Alfred Dreyfus, na viragem do século XIX para o XX, foi um escândalo que agitou a sociedade francesa devido à errada condenação pelo sistema judicial deste militar que, sendo inocente, foi considerado traidor por espionagem internacional. Os eminentes escritores Émile Zola e Anatole France, secundados por diversos outros intelectuais, defenderam a inocência deste militar e assumiram a missão de desmascarar o preconceito racial existente contra os judeus e a verdade dos factos. Portanto, os intelectuais têm esta missão de intervenção social em defesa de ideais e de valores julgados sacrossantos face aos princípios universais dos Direitos Humanos.
A ideologia neoliberal, do fim século XX e início do século XXI, imposta pelos poderes estabelecidos pelo sistema da Globalização Financeira, que esquece o Desenvolvimento Integral do Homem e o Desenvolvimento Sustentável do planeta está a tentar “colonizar” a mentalidade dos cidadãos das democracias enfraquecidas neste contexto mundial, na sábia conceptualização de Adriano Moreira.
A crise das Humanidades[2], pela desvalorização estabelecida pelo pragmatismo reinante, que deu azo à excessiva valorização das Ciências Exactas, em infeliz detrimento das Ciências Humanas dada a inviabilidade da sua imediata aplicabilidade prática, originou um sistema tecnocrático que tem irradiado uma crescente desumanidade pela reconhecida incompreensão da complexidade das problemáticas humanas.
Por conseguinte, tudo o que não esteja articulado com a aplicabilidade imediata e com o valor de mercado perde um referencial de importância estratégica e, consequentemente, os currículos educativos dos sistemas de ensino fazem perder peso a essas disciplinas consideradas pouco úteis para o funcionamento material e prático das sociedades contemporâneas.
Este caminho encetado pelo pragmatismo niilista, esvaziando os significados simbólicos inerentes ao espírito humano, tem potenciado através dos meandros da financeirização da economia uma crescente subjugação dos cidadãos e das democracias aos preponderantes interesses financeiros.
Nestas sociedades contemporâneas, exponencialmente tecnocráticas em que a inteligência técnica é sobrevalorizada em relação à inteligência humanística, os intelectuais constituem, ainda assim, o autêntico baluarte dos valores e dos ideais humanísticos que é necessário preservar para garantir níveis de bem-estar que compaginem o desenvolvimento material e espiritual.
Com efeito, a sensibilidade associada ao entendimento dota os intelectuais de uma percepção mais apurada dos valores profundos dos seres humanos (a verdade, a justiça, a paz, o amor, a beleza, etc) e dos ideais que elevam o Homem acima da brutalidade da Natureza. Mais do que nunca, a função social dos intelectuais assume-se como imprescindível ao equilíbrio Ecológico e Ético do futuro da Humanidade numa Era em que os valores são menosprezados pelos verdadeiros detentores dos poderes económico-financeiros.
A tese ideológica de Vasco Graça Moura de que “os intelectuais estão em vias de extinção”, apresentada em entrevista ao jornal i em agosto de 2013[3], é resultante do seu desencanto com a importância que os intelectuais têm no mundo atual e com a sua própria opção ideológica favorável à minimização do Estado no plano Cultural.
Manuela Canavilhas, por exemplo, no jornal das 9, do dia 29 de agosto de 2013, da SIC Notícias considerou, em antítese, que o Estado no caso da Exposição da artista Joana Vasconcelos deveria ter assumido este projecto estratégico de investir para colher os previsíveis lucros, dado o êxito internacional da artista no Palácio de Versalhes. Por oposição, Vasco Graça Moura assumiu uma posição de resignação perante a realidade incontornável de aceitação incondicional dos critérios dos mercados e menorizou no seu pensamento, concomitantemente, o papel das redes sociais e dos opinion makers nos meios de comunicação social. Revelou, assim, um completo desencanto e resignação como intelectual perante a ideologia dominante e, deste modo, limitou o seu próprio poder de intervenção social como membro da intelectualidade europeia.
Em síntese, é imperioso lutar contra a rendição das elites intelectuais ao poder tecnocrático, sob o risco da inexistência de visões amplas da vida humana nas sociedades pseudodesenvolvidas aprofundar a desumanidade das instituições e das estruturas internacionais. Por esta razão, constitui um imperativo Ético a intervenção social dos intelectuais na presente conjuntura, desta Globalização desregulada, que nos submerge numa exasperante apatia cívica.
[1] “Intelectual”, in Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea da Academia das Ciências de Lisboa, Lisboa, Editora Verbo, 2001, p. 2129.
[2] Adriano Moreira, “Discurso de Doutoramento Honoris Causa na Universidade do Mindelo – Cabo Verde”, in Nova Águia, nº 9, Sintra, Editora Zéfiro, 2012, pp. 215-218.
[3] “Vasco Graça Moura ‘Os intelectuais estão em vias de extinção – entrevista de Margarida Bon de Sousa a Vasco Graça Moura”, i (jornal), 17 de agosto de 2013, p. 25.
Nuno Sotto Mayor Ferrão