Recensão crítica do artigo de João Branco, “O local e o regional na construção da cidadania: algumas reflexões sobre o liberalismo português”, in História - revista da FLUP, Porto, IV Série, Vol. 10, nº 2, 2020, pp. 31-57

- As resistências locais ao centro uniformizador do Estado Liberal Oitocentista e a História Local
A manifestação das resistências locais ao centro político-administrativo português1, que se pretendeu uniformizador desde a criação do Estado Liberal, projetado desde as Reformas de José Mouzinho da Silveira, tiveram várias afirmações na primeira metade do século XIX. Com efeito, as realidades heterogéneas locais e regionais constituíram entraves à homogeneização racionalizante do Estado Liberal Oitocentista. Um dos fundamentos destas resistências, profundas, estavam no facto dos cidadãos afastados do centro político-administrativo encararem com grande desconfiança as realidades institucionais do Estado Liberal uniformizador.
É preciso ter em conta que as resistências locais aos agentes e aos mecanismos do Estado Liberal centralizador, no país, fundamentam-se na existência de “pequenas pátrias locais e regionais”, pois os habitantes das províncias e de localidades periféricas sentem uma pertença mais forte e afetiva às suas localidades, aos seus costumes e às suas tradições do que à pátria portuguesa. Tanto mais quanto as populações periféricas, das províncias, sendo maioritariamente analfabetas alheavam-se das decisões políticas do Estado Central. De facto, estas resistências locais ao processo de centralização do Liberalismo Político Oitocentista verificaram-se, sobretudo, ao nível da mentalidade e não tanto no plano do antagonismo político, tendo sido, particularmente, relevante na primeira metade do século XIX.
Para o estudo da História Local é bastante significativo compreender que a estrutura burocrática do Estado Liberal tenta influenciar as elites locais para, posteriormente, dominar o resto da população das regiões e dos locais periféricos, o que patenteia o peso destas elites a nível local.
- A cidadania local no século XIX, “as pequenas pátrias” e a atualidade
Os atores cívicos no Portugal Oitocentista concediam mais importância às decisões locais e à cidadania de proximidade local, por razões afetivas e familiares, tal como na atualidade, neste dealbar do século XXI, os cidadãos portugueses atribuem uma maior relevância à cidadania portuguesa do que à cidadania europeia, consagrada desde o Tratado de Maastricht. De facto, as cidadanias locais e regionais decorrentes de sentimentos locais de pertença aos locais de nascença incitavam as populações das periferias do Portugal do século XIX a alhearem-se dos debates políticos nacionais. Esta circunstância explica-se, também, pelo facto do sufrágio e do acesso ao aparelho burocrático do Estado estar restrito, sobretudo, a uma elite urbana no Liberalismo Oitocentista.
- As associações económicas, culturais e recreativas das periferias do país Liberal Oitocentista e a História Local
No tempo da Reforma Eleitoral de 1878, encetada por António Maria Fontes Pereira de Melo, não obstante tenha havido uma expansão dos direitos políticos, manifestaram-se dificuldades na consciência cívica dos cidadãos, porque a nível local existiam redes clientelares e de caciques que controlavam os processos eleitorais, em Portugal, tal como em Espanha, uma vez que as similitudes sociopolíticas eram bastante idênticas.
As associações e agremiações que se expandem nas localidades um pouco por todo o país, mormente a partir da segunda metade do século XIX, constituem instituições importantes para o estudo da História Local e para aferir os dinamismos cívicos de povoações espalhadas pelo país. Paradoxalmente, as associações económicas, culturais e recreativas das localidades, disseminadas pelo país, são instituições importantes para o estudo da História Local e constituíram, desde o Liberalismo Oitocentista, mecanismos fundamentais para a expansão tentacular da centralização do Estado, não bastante figuras da época, como o historiador e escritor Alexandre Herculano e o republicano e publicista José Félix Henriques Nogueira, tenham defendido as potencialidades de uma descentralização político-administrativa, inspiradas nas suas mundividências, pois esta estrutura compaginava-se melhor com a heterogeneidade cultural e cívica da identidade das populações portuguesas.
Na perspetiva de A. Herculano, os poderes locais, eventualmente, salvaguardariam melhor as manifestações da imprensa local, do património histórico, cultural e artístico, embora na sua aceção a historiografia local teria de ser contextualizada numa historiografia “científica” e nacional.
- Epílogo – Portugal Liberal oitocentista e a História Local
Em suma, a problemática de fundo, para os historiadores que abordam temas/fontes/objetos patrimoniais da História Local deve situar-se na compreensão das dinâmicas e das dialéticas geradoras de contradições entre um país real marcado por tradições e comunidades com identidades próprias, que moldam o concreto das circunstâncias vivenciais, passíveis de serem aferidas pelas fontes da História Local, e um país legal que o Estado Liberal Oitocentista procurou consolidar. De facto, é no heterogéneo e na complexidade de Portugal, no contexto do Liberalismo Oitocentista, que os investigadores de História Local devem compreender a dicotomia e a dialética entre as resistências locais à uniformização das mentalidades e das instituições e o paulatino esforço de centralização do Estado Liberal, a partir do segundo quartel do século XIX2.
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1- João Branco “O local e o regional na construção da cidadania: algumas reflexões sobre o liberalismo português” in História. Revista da FLUP. Porto. IV Série. Vol. 10, nº 2, 2020, pp. 31-57.
2- Nuno Pousinho, Castelo Branco. Governo, Poder e Elites (1792-1878). Lisboa: Edições Colibri / Câmara Municipal de Castelo Branco, 2004.
Nuno Sotto Mayor Ferrão
