Crónicas que tratam temas da cultura, da literatura, da política, da sociedade portuguesa e das realidades actuais do mundo em que vivemos. Em outros textos mais curtos farei considerações sobre temas de grande actualidade.
Crónicas que tratam temas da cultura, da literatura, da política, da sociedade portuguesa e das realidades actuais do mundo em que vivemos. Em outros textos mais curtos farei considerações sobre temas de grande actualidade.
Se compararmos o estado humano da Pré-História com o dos nossos dias verificamos que, no longo percurso civilizacional de milhares de anos, evoluímos de um tempo em que havia uma primazia da técnica a uma nova era, a nossa, em que a supremacia da técnica tem levado as sociedades pseudo-desenvolvidas a desprezar o pensamento.
Na verdade, na Pré-História prevaleciam as técnicas de sobrevivência (o fabrico de instrumentos, o domínio do fogo e os ritos mágicos), que todas concorriam para a sobrevivência do Homem no meio da temível natureza.
O florir do pensamento (filosófico, matemático, político, dramatúrgico, artístico e poético) emerge na Civilização Grega que, por isso, se tornará clássica. O teatro, como palco para as reflexões do quotidiano, e o amor da sabedoria, pela interrogação, abriram a porta ao pensamento elaborado, que colocou o Homem perante as grandes questões vivenciais. Os romanos mais dados à aventura e à cobiça imperial basearam-se no legado grego do pensamento e filiaram-se num pensamento pragmático, dando azo às grandes obras de engenharia, de planeamento urbanístico e de organização jurídica da sociedade, com a invenção do Direito.
No ruir do império romano a Europa enfrenta um período de grande instabilidade de que a Igreja Católica se torna o refúgio e o alfobre do pensamento com grandes Doutores da Igreja como Pedro Abelardo, São Tomás de Aquino ou Santo António de Lisboa, com o método escolástico a fazer a ponte entre o pensamento racional e a fé cristã e os monges copistas a salvaguardarem o património bibliográfico da Antiguidade Clássica. Depois deste tempo denominado erradamente, por estudiosos laicos, de Idade das Trevas emergem dois movimentos na Idade Moderna que fazem florescer de novo o pensamento.
Em primeiro lugar, o Renascimento, nos séculos XV e XVI, como tendência cultural para a redescoberta pública dos valores clássicos do Humanismo Greco-Romano, que permitiu fazer florescer o espírito crítico de autores que denunciaram os erros dos antigos e dos contemporâneos, com a concomitante experiência marítima das Descobertas portuguesas, fazendo também emergir uma renovada Igreja Cristã através das reflexões críticas, sobretudo, de Erasmo de Roterdão e de Martinho Lutero, não obstante a nova cisão criada no seio do Cristianismo.
Em segundo lugar, o Iluminismo, no século XVIII, como um movimento de ideias que tentou libertar a Europa de alguns preconceitos sociais e políticos, acabando por permitir a eclosão das Revoluções Liberais que transformaram as sociedades do mundo contemporâneo. Este tempo deu forma à consubstanciação do espírito de dignificação do ser humano na sua liberdade e nos seus direitos, inspirando a posteriori a Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU de 1948.
Contudo, apesar da constante consolidação das dinâmicas do pensamento, a Revolução Industrial, iniciada em Inglaterra no século XVIII, a par dos avanços técnico-científicos conduziram a uma mentalidade excessivamente crente nos progressos ilimitados da ciência que relegaram as crenças religiosas e os conhecimentos filosóficos para segundo plano, deixando nas “ruas da amargura” crenças religiosas e as reflexões humanistas, o que deu azo a uma profunda crise de valores éticos e espirituais e a uma importância desmedida colocada nos mecanismos técnicos.
Aliás, as duas guerras mundiais (1914-1918 e 1939-1945) foram o fruto podre de uma dinâmica histórica comandada pelo desenvolvimento técnico e pela cobiça humana. Este colossal erro da caminhada da Humanidade irá reflectir-se na perniciosa invenção das bombas atómicas que resultam de uma degenerescência da consciência humanista, pois estas novas armas de destruição maciça têm colocado a paz internacional do mundo desde o segundo pós-guerra em constantes sobressaltos.
É, assim, compreensível que este descaminho da Humanidade tenha resultado num sistema tecnocrático, que se tornou num despótico sistema de vida, no início do século XXI que foi o ponto culminante resultante da preponderância da ideologia neoliberal, desde os anos 80 do século XX, tendo este sistema uniformizador relegado o plural pensamento humanista e as ciências sociais para um papel secundário nas sociedades pseudo-desenvolvidas.
Na verdade, a erupção das crises, já latentes no caldo estrutural da evolução histórica, (ética, com a corrupção a minar as sociedades desenvolvidas; económico-financeira, com a repetição do erro crasso do Capitalismo Financeiro de 1929 em 2007/2008; política, com o afastamento dos cidadãos em relação à política num tempo em que os estadistas surgem manietados ao poder económico) foram fruto de uma globalização pouco meditada e da ingénua crença no poder da técnica, que apela na atualidade ao desafio do pensamento humanista e à necessidade de o represtigiar.
Em suma, esta evolução histórica da Humanidade que do primado da técnica na Pré-História nos levou ao primado da técnica no início do terceiro milénio resulta de um inequívoco retrocesso civilizacional, uma vez que o pensamento humanista que poderá dar dignidade ao ser humano foi menorizado, colocando em risco a necessidade de um pensamento global que saiba meditar nos processos e nos efeitos de uma globalização erguida por técnicos que carece urgentemente de pensadores, que sejam respeitados e valorizados socialmente.
“(…) O discurso que confunde globalização com a extinção das diversidades humanas e culturais, é um método injusto e frustrado de tentar colonizar os espíritos em detrimento da necessária solidariedade plural. (…) de acordo com a tese de Herbert Marcuse, houve uma instrumentalização do saber e da técnica, o que levou Jurgen Habermas a publicar o útil ensaio sobre Técnica e Ciência como Ideologia (1968). (…) tenho concluído que o Norte do Globo, que se definiu como afluente, consumista, e até unidimensional, derivou para um credo de mercado, hierarquizou os saberes em termos de encontrar para essa economia um paradigma de legitimação, limitou profundamente o papel, que fora dominante, das faculdades de humanidades, colocou o preço das coisas no valor das coisas, e desenvolveu, ao lado da ameaça das armas de destruição maciça, a ameaça igual entre sociedades ricas e sociedades pobres. (…)”
Adriano Moreira, “Discurso de Doutoramento Honoris Causa na Universidade do Mindelo – Cabo Verde”, in Nova Águia, nº 9, Sintra, Editora Zéfiro, 2012, pp. 216, 217 e 218.
“(…) Os intelectuais, no sentido elitista que a expressão teve em França e no século XX, estão em vias de extinção. (…) Há uma interacção entre a ideologia política, a tecnocracia, a formação crítica e o imediatismo impaciente que distorce a função intelectual. (…) A crise das elites não é um fenómeno português. Generalizou-se pela excessiva especialização das formações universitárias, pela empresarialização obsessiva da instituição universitária, pelo postergamento das humanidades e da cultura geral no sentido nobre do termo. Deixou de haver elites no sentido humanístico e cívico para haver especialistas que só vêm o seu próprio quintal e nem sempre…Portugal, se não tiver cuidado, para lá caminha. (…)”
“Vasco Graça Moura ‘Os intelectuais estão em vias de extinção – entrevista de Margarida Bon de Sousa a Vasco Graça Moura”, i (jornal), 17 de agosto de 2013, p. 25
O intelectual é, por definição, “a pessoa que cultiva preferencialmente as coisas do espírito, do entendimento”[1] que valoriza o espírito crítico na construção de um conhecimento global. Como alguns exemplos de intelectuais, de grande relevo, da atualidade refiro Adriano Moreira, Edgar Morin, Eduardo Lourenço, José Mattoso, José Gil, Boaventura Sousa Santos, Noam Chomsky, Manuel Clemente, António Lobo Antunes, Jurgen Habermas, etc, além de uma nova geração de discípulos influenciada por estes mestres do pensamento sistémico.
O episódio histórico de Alfred Dreyfus, na viragem do século XIX para o XX, foi um escândalo que agitou a sociedade francesa devido à errada condenação pelo sistema judicial deste militar que, sendo inocente, foi considerado traidor por espionagem internacional. Os eminentes escritores Émile Zola e Anatole France, secundados por diversos outros intelectuais, defenderam a inocência deste militar e assumiram a missão de desmascarar o preconceito racial existente contra os judeus e a verdade dos factos. Portanto, os intelectuais têm esta missão de intervenção social em defesa de ideais e de valores julgados sacrossantos face aos princípios universais dos Direitos Humanos.
A ideologia neoliberal, do fim século XX e início do século XXI, imposta pelos poderes estabelecidos pelo sistema da Globalização Financeira, que esquece o Desenvolvimento Integral do Homem e o Desenvolvimento Sustentável do planeta está a tentar “colonizar” a mentalidade dos cidadãos das democracias enfraquecidas neste contexto mundial, na sábia conceptualização de Adriano Moreira.
A crise das Humanidades[2], pela desvalorização estabelecida pelo pragmatismo reinante, que deu azo à excessiva valorização das Ciências Exactas, em infeliz detrimento das Ciências Humanas dada a inviabilidade da sua imediata aplicabilidade prática, originou um sistema tecnocrático que tem irradiado uma crescente desumanidade pela reconhecida incompreensão da complexidade das problemáticas humanas.
Por conseguinte, tudo o que não esteja articulado com a aplicabilidade imediata e com o valor de mercado perde um referencial de importância estratégica e, consequentemente, os currículos educativos dos sistemas de ensino fazem perder peso a essas disciplinas consideradas pouco úteis para o funcionamento material e prático das sociedades contemporâneas.
Este caminho encetado pelo pragmatismo niilista, esvaziando os significados simbólicos inerentes ao espírito humano, tem potenciado através dos meandros da financeirização da economia uma crescente subjugação dos cidadãos e das democracias aos preponderantes interesses financeiros.
Nestas sociedades contemporâneas, exponencialmente tecnocráticas em que a inteligência técnica é sobrevalorizada em relação à inteligência humanística, os intelectuais constituem, ainda assim, o autêntico baluarte dos valores e dos ideais humanísticos que é necessário preservar para garantir níveis de bem-estar que compaginem o desenvolvimento material e espiritual.
Com efeito, a sensibilidade associada ao entendimento dota os intelectuais de uma percepção mais apurada dos valores profundos dos seres humanos (a verdade, a justiça, a paz, o amor, a beleza, etc) e dos ideais que elevam o Homem acima da brutalidade da Natureza. Mais do que nunca, a função social dos intelectuais assume-se como imprescindível ao equilíbrio Ecológico e Ético do futuro da Humanidade numa Era em que os valores são menosprezados pelos verdadeiros detentores dos poderes económico-financeiros.
A tese ideológica de Vasco Graça Moura de que “os intelectuais estão em vias de extinção”, apresentada em entrevista ao jornal i em agosto de 2013[3], é resultante do seu desencanto com a importância que os intelectuais têm no mundo atual e com a sua própria opção ideológica favorável à minimização do Estado no plano Cultural.
Manuela Canavilhas, por exemplo, no jornal das 9, do dia 29 de agosto de 2013, da SIC Notícias considerou, em antítese, que o Estado no caso da Exposição da artista Joana Vasconcelos deveria ter assumido este projecto estratégico de investir para colher os previsíveis lucros, dado o êxito internacional da artista no Palácio de Versalhes. Por oposição, Vasco Graça Moura assumiu uma posição de resignação perante a realidade incontornável de aceitação incondicional dos critérios dos mercados e menorizou no seu pensamento, concomitantemente, o papel das redes sociais e dos opinion makers nos meios de comunicação social. Revelou, assim, um completo desencanto e resignação como intelectual perante a ideologia dominante e, deste modo, limitou o seu próprio poder de intervenção social como membro da intelectualidade europeia.
Em síntese, é imperioso lutar contra a rendição das elites intelectuais ao poder tecnocrático, sob o risco da inexistência de visões amplas da vida humana nas sociedades pseudodesenvolvidas aprofundar a desumanidade das instituições e das estruturas internacionais. Por esta razão, constitui um imperativo Ético a intervenção social dos intelectuais na presente conjuntura, desta Globalização desregulada, que nos submerge numa exasperante apatia cívica.
[1] “Intelectual”, in Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea da Academia das Ciências de Lisboa, Lisboa, Editora Verbo, 2001, p. 2129.
[2] Adriano Moreira, “Discurso de Doutoramento Honoris Causa na Universidade do Mindelo – Cabo Verde”, in Nova Águia, nº 9, Sintra, Editora Zéfiro, 2012, pp. 215-218.
[3] “Vasco Graça Moura ‘Os intelectuais estão em vias de extinção – entrevista de Margarida Bon de Sousa a Vasco Graça Moura”, i (jornal), 17 de agosto de 2013, p. 25.
O Festival Dias da Música de 2013, que se realiza em Lisboa no Centro Cultural de Belém nos dias 19, 20 e 21 de abril, lança-nos o desafio de saber se ainda é possível ser-se “romântico” em pleno século XXI. Pelo reportório de concertos, que nos são apresentados, ficamos com a noção de que o Romantismo transcendeu o próprio movimento cultural e a época Oitocentista em que se desenvolveu na sua plenitude, ou seja, outros estilos e artistas posteriores foram fecundados pelo impulso de liberdade criativa que pretendeu arrebatar plateias pela emoção melódica.
Ao invés da tendência anunciada, no prólogo deste Programa musical, como marca dos nossos dias – o aparente arcaísmo da identidade romântica como símbolo da Modernidade - o “romantismo” não se deve limitar ao plano afectivo como, na realidade, tem sucedido.com o eclodir das democracias tecnocráticas, antes, pelo contrário, esta marca de contemporaneidade interpela-nos para necessidade de se romperem os bloqueios “partidocráticos” com a urgência de se revitalizarem os movimentos de cidadania que renovem as democracias com a luz da Esperança, com o refulgir de novas utopias (realistas) tão bem interpretadas na música Romântica, que permita ultrapassar as crises a que o mecanicismo tecnocrático nos tem conduzido.
Em segundo lugar, o trilho seguido pelas neurociências do século passado ao início do século XXI, de Sigmund Freud a António Damásio, corroborando o saber multissecular das diversas Humanidades desde os primórdios das Civilizações Clássicas mostram que a natureza humana cerze a racionalidade e a sensibilidade de uma forma incontornável. É, na verdade, um logro pensar-se que uma racionalidade formal, econométrica, pode moldar a sensibilidade intrínseca dos indivíduos, porquanto preexistente nos seres humanos manifesta-se uma inata “inteligência emocional” que nos dignifica como criaturas possuidoras de liberdade e de consciência.
Portanto, a extrapolação interpretativa que os programadores dos Dias da Música de 2013 fazem do movimento Romântico é absolutamente legítima e consente esta leitura de filosofia da história, na linha metodológica que Raymond Aron nos legou. Hoje, mais do que nunca, o impulso romântico num mundo de pré-formatações comportamentais, impostas pela uniformidade avaliativa da ideologia economicista, importa ser revalorizado e vivido como espaço privilegiado para as autenticidades criativas.
Para nos iniciarem nesta viagem pelo Romantismo musical desde o século XIX aos nossos dias estão presentes, neste Festival, os grandes compositores estrangeiros e nacionais (Ludwig Van Beethoven, Piotr Tchaikovsky, Johannes Brahms, Frédéric Chopin, Luís de Freitas Branco, Joly Braga-Santos, entre muitos outros) que padronizaram este género estético que se tornou tão popular por conjugar a erudita gramática sonora com as linhas melódicas que falam ao coração dos ouvintes de diversas conjunturas históricas.
Francisco de Assis viveu na transição do século XII para o XIII (1182-1226), tendo sido um religioso místico que fundou a primeira ordem religiosa mendicante, rompendo com as ordens religiosas afastadas do mundo, refugiadas nas suas paredes conventuais. Este santo, adorador da Natureza, festejou a noite de Natal de 1223 num bosque, com uma missa, diante de um presépio com uma grande assistência de frades menores e das classes populares. Os franciscanos tornaram-se, assim, os grandes divulgadores do presépio no mundo ocidental[1].
No contexto medieval, do início do século XIII, em que as cidades cresceram económica e demograficamente com o desenvolvimento do grupo dos mercadores, da burguesia, tornaram-se gritantes as desigualdades sociais e a ostentação material da Igreja Católica face às inúmeras doações que recebia.
Apareceu, deste modo, a necessidade de reformar o Cristianismo para o despojar da opulência em que uma parte do clero vivia. O franciscanismo, através da regra interna, procurava ajudar os pobres e os desfavorecidos e vinculava estes frades menores a viverem segundo princípios novos que postulavam “(…) obediência, pobreza e castidade (…) Os irmãos não terão nada de próprio, nem casa, nem terra, nem coisa nenhuma, mas como peregrinos e estrangeiros neste mundo, servindo o Senhor em [2]pobreza e humildade, sigam pedindo esmolas confiadamente. (…)”[3]
Jaime Cortesão, insigne historiador, salientou o papel do Franciscanismo nos Descobrimentos marítimos portugueses. Assim, considerou que os Franciscanos, pela sua visão generosa da Natureza, pela atividade missionária e pela literatura de viagens dos frades menores, foram os criadores da mística dos Descobrimentos marítimos portugueses de quatrocentos. Na sua aceção, os Franciscanos modificaram a essência do Cristianismo, de base católica, promovendo a exterioridade caritativa em favor dos desfavorecidos rompendo, assim, a interioridade do monaquismo medieval e favorecendo o empreendimento das Descobertas marítimas. Por outras palavras, o ideal Franciscano da vivência humilde, junto dos pobres, favoreceu o movimento de abertura da Igreja à sociedade e ao mundo, tendo sido propiciador da expansão marítima na sua motivação religiosa de conversão de novos povos.
O filme de Franco Zeffirelli, de 1972, sobre São Francisco de Assis mostra-nos a sua conversão plena ao Cristianismo, após a renúncia às riquezas familiares em benefício de uma vida espiritual mais rica. É um belo filme, que recomendo pela sua qualidade estética, válido pela mensagem de busca da unidade espiritual da Igreja com o mundo. Aqui deixo um pequeno excerto do filme, bem elucidativo.
Neste tempo em que o materialismo reinante[4] e a, concomitante, ideologia neopositivista tecnocrática são predominantes, a necessidade de espiritualização do mundo torna-se cada vez mais premente. Aliás, não é por acaso que novas formas de espiritualidade (o budismo, a ioga, os retiros espirituais, etc) são revalorizadas face ao contexto de um materialismo despersonalizante a que a Humanidade tem sido conduzida pela Globalização desregulada.
A eleição de Jorge Mário Bergoglio como Papa com o nome de Francisco, neste contexto de crise Ética, é uma resposta significativa de grande simbolismo perante a premente necessidade de implementar o espírito do Concílio Vaticano II, isto é, de aproximar a Igreja Católica do mundo quotidiano. Numa conjuntura internacional em que as desigualdades sociais são exponenciais, em virtude de uma Globalização impreparada pela visível desregulação, e em que a ostentação de alguns privilegiados, fruto do Capitalismo selvagem, é cada vez mais chocante, importa apelar ao espírito de humildade e de simplicidade que caraterizou a reforma do Cristianismo com a fundação das ordens mendicantes, designadamente da ordem dos Franciscanos.
Este retorno do espírito Franciscano neste pontificado, que agora se inicia, evoca um eterno retorno de problemas cíclicos e de soluções consabidas, porque urge compreender com espírito Humanista a natureza humana. Com efeito, não é possível, como nos diz o filósofo José Gil[5], avaliar tecnocraticamente as sociedades Globalizadas sem hipotecar as virtualidades da natureza humana. Na verdade, o neopositivismo ideológico que se nos impôs com a Globalização tecnocrática imposta por interesses materiais de alguns poderosos tem desvirtuado a natureza humana à luz da verdade das Humanidades, da Igreja Católica e das Ciências desde Sigmund Freud a António Damásio.
Em suma, o problema das sociedades contemporâneas, na leitura do Concílio Vaticano II e do Papa Francisco, é a sua crescente desumanização, em virtude da cobiça de alguns poderosos em detrimento de muitos cidadãos. Daí a importância de revalorizar a mensagem Franciscana da humildade e da simplicidade de vida para que se possa romper com a crise de valores a que esta ideologia neopositivista dos tecnocratas do Capitalismo Financeiro nos tem conduzido[6].
[1] “São Francisco de Assisis”, in Jorge Campos Tavares, Dicionário de Santos, Lello Editores, 2004, pp. 59-60.
[2] Nuno Sotto Mayor Ferrão, “As linhas de força do pensamento historiográfico de Jaime Cortesão”, in Nova Águia, nº 11, 1º semestre de 2013, Sintra, Editora Zéfiro, 2013, p. 133-134.
[3] Regra de São Francisco (1223) – números 1 e 6.
[4] Nuno Sotto Mayor Ferrão, “Relativismo Ético na História Contemporânea (1914-2010)”, in Brotéria, nº1, volume 174, Janeiro de 2012, pp. 47-51.
[5] José Gil, Em busca da identidade – o desnorte, Lisboa, Relógio d’Água, 2009, pp. 52-53. Vejamos a lúcida observação deste pensador: “(…) É inevitável, assim, que a avaliação como diagrama transversal a toda a sociedade, tenda a transformar todas as relações humanas em relações funcionais de poder. O preço pago por esta tecnologia biopolítica é, evidentemente, a mutilação de uma vida mais rica, a diminuição brutal dos possíveis, a restrição do aleatório, do acaso da imprevisibilidade. Como estes serão também transformados em funções – a famosa ‘criatividade’ no trabalho, nas empresas, nos serviços, na publicidade, nos média -, os próprios factores aparentemente incodificáveis serão avaliados, quantificados, normalizados. (…)”.
[6] A mensagem do filme de Charles Chaplin Tempos Modernos, de 1936, está mais atual do que nunca neste contexto de uma Globalização desregulada.
Joly Braga Santos, nascido em Lisboa em 1924, foi um compositor de talento, um maestro, um professor e um crítico musical português de grande destaque. Foi discípulo do grande compositor Luís de Freitas Branco, após ter sido seu aluno de violino e de composição no Conservatório de Lisboa. O músico Pedro de Freitas Branco foi um dos divulgadores internacionais da sua obra. Como compreenderemos, nesta abordagem de análise, o mérito da sua obra reside em ter conseguido compaginar, como poucos cultores do espírito, a tradição e a modernidade, alavancando-o para uma celebridade intemporal.
Na primeira fase da sua carreira musical (1942-1959) inspirou-se na tradição folclórica portuguesa, tendo, também, sido moldado pela matriz compositiva clássica, de Ludwig Van Beethoven, na senda do seu Mestre. Neste período, criou as suas primeiras 4 sinfonias e compôs música para textos de poetas portugueses (Antero de Quental, Fernando Pessoa e Luís Vaz de Camões).
Nesta medida, Joly Braga Santos conseguiu ultrapassar a estratégia cultural modernista radical sustentada por José de Almada-Negreiros, no início do século XX, que disse “É preciso substituir na admiração e no exemplo os velhos nomes de Camões, de Vítor Hugo, e de Dante pelos Génios de Invenção: Edison, Marinietti, Pasteur, Elchriet, Marconi, Picasso, e o padre português, Gomes de Himalaia“ (José de Almada-Negreiros, Ultimatum Futurista às Gerações Portuguesas do Século XX, Lisboa, Edições Ática, 2000, p. 13), ao encontrar ao longo da sua carreira um ponto de equilíbrio entre essas tendências estéticas ambivalentes.
Na segunda fase da sua produção musical (1961-1988), resultado da experiência e amadurecimento como bolseiro, de composição e de direção de orquestra, em Itália e, mais tarde, na sua labuta de diretor de orquestra em Portugal, encetou um estilo de criação modernista sem renegar as suas aprendizagens anteriores. Assim, em 1965 compôs a sua obra-prima a 5ª Sinfonia, já numa estética modernista permeada pela matriz desconstrutivista das vanguardas artísticas, sem abafar o sentido melódico que o caracterizou.
O auge da sua carreira musical foi obtido com a composição da ópera Trilogia das Barcas, baseado numa peça teatral de Gil Vicente, que o consagrou como um dos expoentes da composição lírica portuguesa. Este percurso de conciliação de valores estéticos ambivalentes valeu-lhe o reconhecimento público, com a UNESCO a classificá-lo como um dos 10 melhores compositores de música contemporânea e com a atribuição do galardão honorífico da Ordem de Sant’iago da Espada pelo Presidente da República Portuguesa, António Ramalho Eanes, em 1977.
Em conclusão, o seu exemplo de ecletismo cultural deve servir-nos de lição para superarmos a dicotomia entre o Humanismo Clássico e a Tecnocracia imbuída de um radicalismo exacerbado.
José Pedro Teixeira Fernandes, A Europa em crise[1] - é um ensaio de um politólogo sobre a crise da Zona Euro, em que se deslindam as causas estruturais e conjunturais da presente crise Europeia. Há autores que sublinham em demasia que a desregulação financeira nacional se encontra, mormente, nas causas políticas internas, como é o caso de Henrique Medina Carreira[2]. Não obstante, José Teixeira Fernandes evidencia-nos, de forma clarividente, as causas conjunturais da crise financeira associada aos processos de endividamento das famílias e dos Estados Europeus, mas desenvolve uma reflexão original, muito pertinente e não soterrada pela argumentação imediatista, sobre as causas estruturais da Crise da Zona Euro que se encontram no sistema pernicioso do Capitalismo Global Neoliberal e na estrutura demográfica envelhecida resultante, na sua perceção, da Revolução social dos costumes iniciada com o fenómeno das revoltas juvenis de maio de 1968.
Esta é uma das suas análises originais, porque nos argumenta com lucidez que o Relativismo Ético terá sido estimulado pela Revolução de costumes da conjuntura do maio de 1968, de França e da Europa, que espicaçou a tendência individualista favorável à disseminação da ideologia Neoliberal.
Assim, no seu modo de ver o declínio demográfico europeu, com o envelhecimento das populações, potenciado pela mentalidade difundida com a geração de maio de 1968 tornou insustentável o antigo modelo económico-social do Estado-Providência. Contudo, passou-se da proteção máxima da vida dos indivíduos, na segunda metade do século XX, para a sua tendencial desproteção, no início do século XXI, com a instauração das sociedades manipuladas pelos mercados, desregulados, face à incapacidade dos políticos adotarem estratégias novas conducentes à resolução deste problema.
De facto, este autor faz-nos compreender que os “medicamentos”, prescritos pelos técnicos, têm atacado os sintomas de curto prazo da crise (desregulação das contas públicas), mas que não tem havido suficiente capacidade política, para desenhar uma estratégia que fosse a solução no médio e no longo prazo, devido aos egoísmos nacionalistas e à falta de verdadeiras lideranças carismáticas que façam ressurgir as convicções europeístas.
A crise da Zona Euro ligada à insustentabilidade do modelo Capitalista Neoliberal, que pôs em causa as ideologias moderadas da social-democrata, do socialismo democrático e da social-democracia cristã, tem gerado consequências nocivas para a riqueza e o bem-estar das populações europeias.
A ideologia da “fúria competitiva” com que os tecnocratas[3] querem colonizar as mentes europeias, na expressiva aceção do Professor Adriano Moreira[4], tem querido reduzir o espaço de liberdade das democracias ocidentais. Este pensador humanista, na senda de Jurgen Habermas, chama a atenção para a necessidade de se revitalizarem as Ciências Humanas para que se possa desmontar o mito do produtivismo que tem procurado tornar o homem num Ser meramente económico, o que tem levado a um crescente desmazelo Civilizacional pelas outras facetas da vida humana, designadamente da vida Espiritual. De facto, estas erróneas soluções da “vulgata” Neoliberal (do Liberalismo excessivo) aplicadas pelos Governos Europeus têm potenciado o Capitalismo Financeiro de matriz não Ética.
O objetivo das atuais políticas de austeridade excessiva, que varrem o continente Europeu, é minar o espírito crítico dos cidadãos para controlar as opiniões públicas, criando a perceção de que não há outras alternativas. Foi o caso das medidas anunciadas pelo primeiro-ministro de Portugal, resultantes da quinta visita de avaliação técnica da Troika, que tentam resolver o problema imediato da crise financeira do endividamento público, mas que tentando, simultaneamente, resolver o problema económico com a redução da taxa social única às empresas levará certamente ao agravamento da recessão pela falta de poder de compra dos trabalhadores, interna e externamente. Não passam de verdadeiras mezinhas caseiras estas orientações que se querem inscrever no Orçamento de Estado de 2013, pois apenas resolvem o problema cutâneo e não o problema estrutural.
Aliás, como já o dizem vários analistas, creditados, o arrastar da situação de crise Europeia pode levar a complicados constrangimentos sociais como a História Contemporânea é pródiga a ensinar-nos.
José Teixeira Fernandes mostra-se cético relativamente à possibilidade de se encontrar a solução através de uma Europa com estruturas Federais, no contexto económico da crise da Zona Euro, por implicar uma diminuição do espaço das autonomias nacionais e não existir na atualidade um genuíno espírito europeísta. A adoção das soluções de curto e de médio prazo, como a definida pelo primeiro-ministro de Portugal a 7 de setembro de 2012, que passam pela manutenção da austeridade sem sinais inequívocos de Esperança coletiva não auguram uma solução de fundo que procure resolver os problemas estruturais.
Importa meditar, seriamente, nestes paradoxos das linhas de ação política que se traçam e este livro serve para nos abrir os horizontes de análise e de debate das realidades complexas em que vivemos.
Nuno Sotto Mayor Ferrão
[1] José Pedro Teixeira Fernandes, A Europa em crise, Lisboa, Edições Quidnovi, 2012.
[2] Henrique Medina Carreira, O fim da ilusão, Carnaxide, Editora Objetiva, 2011. Este autor dá um especial enfoque às responsabilidades internas dos Governos Portugueses na desorientação financeira que tem contaminado os países europeus. Considera neste livro que um Programa de Governo eficaz deveria ser curto e com metas económicas concretas para salvar a Pátria da bancarrota, orientados por uma Ética Pública elevada. Conclui o seu livro afirmando o risco em caso de fracasso político do Governo, que tomou posse em junho de 2011, de voltar a surgir em Portugal um novo regime autoritário.
[3] António Borges tem sido um dos ideólogos que, na Europa e em Portugal, mais tem defendido esta linha política que tão nefastas consequências tem trazido para a qualidade de vida dos cidadãos europeus.
[4] Adriano Moreira, “Discurso de Doutoramento Honoris Causa na Universidade do Mindelo – Cabo Verde (10.12.2011), in Nova Águia, nº 9, Sintra, Editora Zéfiro, 1º semestre de 2012, p. 216.
A preocupação excessiva com a crise financeira, das dívidas soberanas da Zona Euro, tem levado as sociedades europeias a descurar os problemas de sustentabilidade ambiental e a desleixar as preocupações Éticas que estão a minar a possibilidade de um real progresso da Humanidade. Sem um ambiente planetário que se auto regenere e uma vida que seja moldada por valores Éticos, onde irá parar a qualidade de vida dos cidadãos do século XXI?
Se o historiador Eric Hobsbawm apelidou o século XX de Era dos Extremos pelos fanatismos que pairaram no mundo, o início do século XXI tem sido marcado por muitas incertezas, a que as Ciências Exatas não têm sabido dar resposta cabal, porque a Humanidade tem de ser pensada de uma forma mais ampla, com pressupostos Humanistas, dado que os cidadãos e as sociedades se compõem de espírito e de corpo.
O desleixo político com o desenvolvimento sustentável em termos ambientais e humanos decorre da destruição dos recursos naturais e dos recursos humanos de criatividade, sob o pretexto de que se tem de garantir o crescimento económico e a competitividade (econometria). Este erróneo pensamento de curto prazo, se não for invertido, colocará em risco a salubridade ambiental e o respeito pelos Direitos Humanos fundamentais, porque tudo se resume, nesta lógica, à quantificação dos fatores sociais.
O Professor Carlos Borrego num desafiante artigo da revista Brotéria[1]realça o facto da crise económica ter efeitos positivos em termos ambientais, porque têm diminuído os gases com efeito de estufa, o que não tinha sido conseguido nem com as Conferências da ONU, nem com os Acordos Ambientais, não subscritos por muitos países. A crise económica é uma oportunidade para se repensar a sustentabilidade ambiental e do bem-estar da Humanidade que só terá um futuro digno se os legionários do sistema financeiro não aprofundarem os mecanismos especulativos da Globalização (teologia de mercado).
O Professor Carlos Borrego constata, ainda com muita acuidade neste artigo citado, que o aumento exponencial dos divórcios são o reverso da medalha, uma vez que este aspeto da crise Ética prejudica o ambiente, porque o aumento do número de casas resultantes das famílias monoparentais origina mais gastos de recursos naturais e mais produção de resíduos e poluição.
As alterações climáticas têm originado fenómenos naturais inesperados de maior frequência ao longo do mundo (tempestades, cheias, tornados, etc). Em Portugal, este ano temos assistido a oscilações térmicas repentinas, em poucas horas, que têm obrigado os cidadãos a acautelarem-se com medidas preventivas e as autoridades da Proteção Civil a criarem sistemas de alerta que constantemente deixam as populações perplexas.
A única resposta consentânea com esta crise multipolar que varre o planeta é a implementação de novos paradigmas Civilizacionais que coloquem no centro das suas preocupações os valores Éticos como medida da perenidade alternativa à vacuidade da aparência e do imediatismo, atitudes de uma cidadania global e políticas que refreiem os ímpetos da ganância financeira através de regulamentação internacional e de políticas efetivas em favor do desenvolvimento sustentável ambiental e humano.
Nuno Sotto Mayor Ferrão
[1] Carlos Borrego, “Ano diferente 2012: as oportunidades perdidas”, in Brotéia, nº 174, Maio-junho de 2012, pp. 441-452.
Nesta Era da Globalização, que vivemos, existe uma crescente uniformização de hábitos e tradições culturais em todo o mundo. Os cidadãos sentem a obrigação de salvaguardarem as suas culturas, locais, regionais e nacionais, face à importação de novos hábitos. Estou a lembrar-me da celebração do dia das bruxas, “halloween”, no dia 31 de Outubro, que era uma tradição basicamente anglo-saxónica, que no entanto tem entrado em Portugal e no Brasil com muito sucesso. Se formos compulsar um periódico do Estado Novo, dos anos 50, não encontramos qualquer referência a esta festa “pagã”.
Por outro lado, manifesta-se uma rarefacção da cultura patriótica, que tem sido uma constante dos nossos dias, por exemplo o dia de todos os santos, 1 de Novembro, tem estado muito esquecido junto das novas gerações. Felizmente, que no mundo de língua portuguesa tem sido encontrado um padrão lusófono que cada vez mais aproxima os países de língua portuguesa.
Neste tempo novo em que predomina uma cultura tecnocrática tem-se relegado a cultura Humanista e o grupo dos intelectuais para um segundo plano e talvez, por isso, a crise de valores e de lideranças tem sido tão devastadora na Europa Ocidental como o reconheceu, por estes dias, Jean Claude-Trichet, presidente do Banco Central Europeu.
A Globalização tem criado inúmeras situações contraditórias. Se esta rede de ligações mundiais permitiu a democratização da cultura, também possibilitou a sua degenerescência qualitativa. Hoje em dia, os cidadãos mais instruídos têm, também, menos cultura geral, apesar de estarem rodeados de inúmeras fontes de informação. Na verdade, o excesso de informação que circula a rodos, em resultado dos múltiplos recursos disponíveis, tem diminuído o espírito crítico dos cidadãos e dos dirigentes, não obstante haja os novos canais da blogosfera que parecem querer colmatar esta carência.
Esta realidade conjuntural tem-se traduzido numa diminuição da cultura geral dos indivíduos das classes médias que ficam mais expostos às prepotências das elites “esclarecidas” da tecnocracia, fazendo lembrar os modelos dos “despotismos esclarecidos” do século XVIII. Com efeito, a cultura materialista de consumo, desenfreado, tem afastado os cidadãos da cultura dos Valores Humanistas e da efectiva Defesa dos Direitos Humanos, não obstante estes temas estejam na ordem do dia dos debates públicos. Deste modo, só esta “cultura do ter” pode explicar a omnipresente evocação, todos os dias, nos meios de comunicação social da crise financeira dos países ricos quando no “corno” de África morrem milhões de pessoas à fome.
As novas tecnologias têm feito diminuir os tempos de leitura das gerações mais jovens. Por esta razão, em Portugal em boa hora foi criado o Plano Nacional de Leitura para suprir esta dificuldade. Contudo, a Globalização tem, concomitantemente, possibilitado a transformação dos consumidores passivos em ativos produtores de conteúdos, tornando os cidadãos mais interventivos através das redes sociais e da blogosfera.
Em suma, faz falta a esta Globalização a superação do paradigma da cultura hiper-especializada por outro modelo que volte a confiar no paradigma da cultura Humanista: a única capaz de incrementar uma Cultura Global que forneça aos cidadãos os instrumentos indispensáveis para uma atuação cívica compaginável com os ingentes desafios desta nossa “aldeia global”.
As áreas da educação, da política e do futebol confrontam-se, sempre, com a análise dos processos e dos resultados da parte de leigos e de especialistas. Muitas vezes acontece que os analistas e os decisores tomam partido por uma perspectiva de análise que valoriza os resultados em detrimento dos processos devido à predominância da mentalidade pragmática[1]. Segundo este pensamento, o critério da verdade é a utilidade prática das técnicas educativas, das medidas políticas ou das tácticas de jogo.
Num mundo crescentemente tecnocrático, com parâmetros econométricos que submergem os outros critérios de avaliação, não admira a importância excessiva que é dada aos resultados educativos, políticos e futebolísticos. Nas leituras apressadas, desta Era da Globalização, sempre que os resultados são frustrantes abrem-se crises. No entanto, como é sabido, a verdadeira crise actual reside no esquecimento de valores morais que devem reger as condutas humanas.
Na verdade, tem de se encontrar um meio-termo, dificilmente quantificável, de análise que pondere os processos e os resultados, pois irei dar dois exemplos relativos à desvalorização deste princípio basilar. Nem sempre é fácil atingir em educação este meio-termo, daí que o Professor Nuno Crato[2] tenha andado a criticar, aquilo que o Professor Marçal Grilo chamou de “eduquês”, as modernas pedagogias românticas de darem demasiado destaque aos processos educativos construtivos baseados nos sujeitos das aprendizagens. Com efeito, só através de uma dose de Humanismo e de Pragmatismo se pode alcançar este meio-termo nas práticas pedagógicas, porque nos devemos recordar que a pedagogia exige arte, ciência e técnica. Se centramos a pedagogia na ciência visamos, mormente, os resultados de aprendizagem, mas se centramos a pedagogia na arte visamos, sobretudo, os processos de aprendizagem. De forma que, o grande desafio que se abre à Educação Internacional, à revelia desta Era Tecnocrática, é a de conseguir um equilíbrio entre os processos e os resultados educativos.
A hegemonia da corrente pragmática nesta era da Globalização tem favorecido o ataque especulativo aos países criativos de matriz Latina, ou de influência católica, em 2010-2011 (Grécia, Irlanda, Portugal, Espanha, Itália e Bélgica). De facto, mais uma vez, é a pressão dos resultados e a depreciação da capacidade criativa destes povos e da sua rica herança cultural que está em questão. Ora o destino da moeda única Europeia (o Euro), e da própria União Europeia, não pode depender da adopção de um padrão cultural comum que garanta a concretização de resultados financeiros, porque a riqueza da Europa é, precisamente, a sua diversidade de costumes, de tradições e de culturas. Este é, pois, o desafio incontornável que se abre à Europa neste momento de crise financeira.
Um bom exemplo desta dicotomia ideológica foi o Campeonato da Europa 2004, realizado em Portugal, em que a selecção portuguesa dirigida por um brasileiro, Luiz Felipe Scolari, foi vencida na Final pela selecção grega dirigida por um alemão, Otto Rehhagel, que conquistou o título de selecção campeã Europeia de Futebol nesse ano. Enfrentaram-se dois estilos de futebol: o grego, germanizado, que adoptou um estilo pragmático à procura de resultados e o português que adoptou um estilo artístico, baseado na “posse de bola”, que buscou os processos que encantaram milhões de espectadores em todo o mundo, mas que claudicou frente ao Hércules grego possuidor de um estilo de jogo “sem arte, mas com engenho”.
O Futebol Clube de Barcelona, na Europa em 2010-2011, é o modelo de futebol síntese que conseguiu conciliar os resultados desportivos com os processos futebolísticos, que deram um grandioso espectáculo ao mundo, comandados pelo catalão Josep Guardiola i Sala. Este edificante exemplo deve servir de inspiração, na Educação e na Política, para que se pense, concomitantemente, nos processos e nos resultados, no sentido de se superarem estes estrangulamentos da crise destes sectores da vida colectiva global, que mais não são do que um reflexo da crise de valores que atravessa a História da Humanidade no início do século XXI. Em suma, o Futebol Clube de Barcelona por se ter alavancado nos três pilares interdependentes (a arte, a ciência e a técnica) proporcionou ao mundo um futebol magistral que obteve resultados estratosféricos com processos artísticos moldados na consabida criatividade catalã.
Nuno Sotto Mayor Ferrão
[1] O pragmatismo como corrente filosófica nasceu nos EUA com o pensamento do filósofo William James (1842-1910).
A crise financeira portuguesa da dívida soberana está nas bocas do mundo, ao ponto de ter atingido o debate eleitoral finlandês. Estas notas de reflexão, não descurando a gravidade da falta de liquidez do Estado e da sociedade portuguesa, pretendem elencar as suas principais causas internas e externas situando-as na presente conjuntura geoestratégica mundial. A União Europeia tem imposto aos países comunitários critérios mais rigorosos de endividamento dos Estados para diminuir os défices orçamentais através dos Planos de Estabilidade e Crescimento (PECs).
Convém perceber, sem escamotear a realidade, as causas estruturais que potenciaram a crise financeira da dívida soberana portuguesa. A Contemporaneidade está infestada do imediatismo mediático que faz perder aos cidadãos a necessidade de uma consciência que extravase os tempos curtos do presente. Daí que seja importante uma leitura que se alavanque na Memória Colectiva para tentar compreender as raízes profundas desta situação de crise nacional e internacional.
Desde os anos 90 do século XX, tal como em décadas anteriores em outros países desenvolvidos, as classes médias habituaram-se a consumir, de forma fácil, com recurso ao crédito bancário que arrastou muitos cidadãos a endividarem-se por várias décadas para adquirirem bens essenciais ou supérfluos. Ao mesmo tempo, o Estado tem-se tornado crescentemente mais complexo, com mais responsabilidades sociais que o fez adoptar o critério de privatizações de propriedades e de empresas públicas para se conseguir financiar para além das receitas fiscais.
O problema inerente a esta nefasta tendência tem sido a diminuição da Poupança Pública e das famílias num tempo de crescentes gastos. Por esta razão, tem todo o sentido a filosofia de austeridade que deve presidir às Políticas Públicas, aliás o execrável Ditador das Finanças, no final dos anos 20 e início dos anos 30, adoptou com sucesso este critério que lhe permitiu ascender politicamente. Longe de fazer qualquer panegírico a António Oliveira Salazar, devemos, no entanto, reconhecer-lhe este mérito de ter sabido pôr em ordem as finanças públicas. Os indivíduos, das classes médias, seduzidos pelos apelos do mercado acabaram por perder o hábito de amealhar poupanças, porque os produtos importados que inundaram o país e rechearam o Centros Comerciais e os Mega Centros Comerciais criaram necessidades de consumo irracionais.
Na actualidade o modelo materialista, de base monetário, inspirado na excessivamente pragmática Civilização Romana tem feito depreciar o valor dos Bens Imateriais e das Ciências Humanas em favor dos Bens Materiais e da pretensa cientificidade, quase positivista, dada à Econometria. Aliás, o fervor materialista/imperialista dos Romanos conduziu-os à decadência Ética, que é um traço de grande semelhança com as sociedades Globalizadas do nosso tempo
.
O actual endividamento do Estado Português decorre do sistema financeiro internacional sem peias, em que a especulação e as fraudes bancárias por via do Capitalismo pouco regulado devido aos paraísos fiscais é uma constante (veja-se, a este propósito, a interessante caricatura publicada por Joana Amaral Dias no Cortex Frontal), que tem potenciado as crescentes desigualdades entre Estados, sociedades e grupos económicos e sociais.
Sem dúvida que a fraca competitividade da economia portuguesa ( veja-se o interessante artigo de Ricardo Pais Mamede, "Preocupados com o crescimento português ?" em Ladrões de Bicicletas ) que não se tem conseguido adaptar aos critérios da desbragada agressividade social da Globalização imposta pelos grandes potentados económicos foi um factor que potenciou o endividamento do Estado e da sociedade portuguesa.
Como causas mais imediatas da crise da dívida soberana portuguesa está a crise financeira de 2008 que se iniciou nos EUA e que contagiou os seus principais parceiros comerciais, designadamente a Europa. Esta crise financeira fez perceber aos países ocidentais que estavam a viver acima das suas possibilidades, porque muito do dinheiro emprestado resultava de complexos esquemas contabilísticos que não tinham uma sustentação real. Como dizia com acerto Ernâni Lopes as finanças ficaram desfasadas da economia real.
Em 2010 estalou a crise financeira Grega devido aos endividamentos excessivos do Estado e da sociedade deste país, devido ao critério mais rigoroso de controlo dos défices públicos na União Europeia resultantes da meta dos 3% de endividamento estabelecido na Filosofia dos Programas Europeus de Estabilidade e Crescimento e à depreciação do Euro devido à forte competitividade das novas potências internacionais emergentes.
As crises históricas nacionais das finanças públicas têm-se repetido desde o fim do século XIX e início do século XX ( É interessante consultar a visão ampla, histórica e internacional, de Francisco Seixas da Costa que se destaca no artigo "Embaixador diminuído ?" no blogue duas ou três coisas). No último quartel do século XIX, Portugal pediu empréstimos para se equipar em termos de construção de infra-estruturas viárias e ferroviárias que garantissem ao país a constituição de um espaço económico nacional. Efectivamente, de 1891 a 1902 instalou-se uma grave crise financeira no país devido à dificuldade de pagar aos credores externos, numa situação em que Portugal se encontrava em plena bancarrota.
Em meados dos anos 20 a crise financeira Angolana devido aos gastos excessivos na construção de infra-estruturas de comunicação e transporte nas grandes colónias africanas portuguesas colocaram o país à beira do colapso financeiro nos anos finais da 1ª República (1924-1926). Não nos esqueçamos que anteriormente o envolvimento de Portugal (1916-1918) na 1ª Guerra Mundial tinha deixado as finanças públicas na penúria.
Em 1977 e em 1983 Portugal pediu auxílio ao Fundo Monetário Internacional devido, nesse primeiro momento, às ondas alterosas do choque petrolífero e à instabilidade política pós-revolucionária e, nesse segundo momento, devido à inflação galopante que levou à necessidade da formação de um Bloco Central (PS-PSD) liderado por um político Humanista.
A conjuntura geoestratégica mundial actual caracteriza-se por um endeusamento do mercado (a que vários autores chamam com propriedade teologia de mercado – Adriano Moreira) que conduziu à construção de um capitalismo financeiro desregulado por acção dos grandes interesses das Empresas Multinacionais que empurraram os governos bajuladores a adoptarem políticas neoliberais desde os meados dos anos 80 inspirados nos modelos políticos de Ronald Reagan e de MargaretThatcher.
Na actual conjuntura internacional, a Revolução tecnológica tem permitido uma vantajosa Globalização da informação, mas também desencadeou concomitantemente a produção de bens tecnológicos evanescentes que incitaram a um consumismo desregrado que está na origem do endividamento das famílias, tal como nos salienta com muita acuidade o Mestre Vitorino Magalhães Godinho.
Como já há vários anos nos vem lembrando, o Dr. Mário Soares, os Estados encontram-se dependentes das pressões das Grandes Multinacionais e, por isso, o poder político está enfraquecido de poder agir de acordo com ideais de justiça social, uma vez que o pragmatismo da “real politik” se tornou dominante. A verdade é que, sem esta independência do poder político, as causas justas mobilizadoras dos cidadãos não se agregam em torno dos partidos políticos e os cidadãos sentem-se cada vez menos identificados com os políticos por toda a Europa, daí as grandes manifestações de descontentamento popular (vale a pena ler e ouvir o post de Ana Paula Fitas "Da "Menina estás à janela" ao FMI - A Resistência da Esperança" e ainda o pertinente texto "Contra a Especulação, Assinar a Petição" no blogue A Nossa Candeia).
As novas potências emergentes (China, Índia, Brasil, etc.) têm alargado o grupo dos países mais ricos do mundo (G7, que passou a G8, que passou a G20) e a Europa tem perdido peso económico nesta transformação geopolítica. O projecto Europeu e a constituição da União Europeia, com uma moeda única, foram tentativas de resposta a estas ameaças externas, no entanto o drama demográfico dos países europeus e as condições, muitas vezes inumanas, de trabalho nas novas potências emergentes, em particular na China e na Índia, impedem uma competitividade salutar, porque se colocam em causa Direitos Humanos Fundamentais e conquistas Civilizacionais que dignificam o Homem como Pessoa. Sem este entendimento do Homem como Pessoa, e não como número de um quadro estatístico ou econométrico, a Humanidade entrará numa regressão sem precedentes na História Universal.
Em suma, a Europa tem que saber partilhar com o mundo o seu paradigma Humanista, que extravasa os limites das democracias tecnocráticas, para que se possa crer na bondade dos valores do Espírito Humanista e dos Direitos Humanos no sentido de se rumar a um mundo melhor que se preocupe com os níveis de qualidade de vida dos seus cidadãos. Daí que a mentalidade Humanista precise de ser valorizada e adoptada como critério de gestão na escolha de líderes políticos e empresariais na Europa para que se garanta a possibilidade de se concretizar uma autêntica justiça social.
Cena simbólica do filme Tempos Modernos (1936) de Charlie Chaplin
Este texto vem na sequência do pertinente “post” da Professora Ana Paula Fitas intitulado “Qualificações, Desenvolvimento e Produtividade”, inserido no seu blogue «A Nossa Candeia»[1]. Creio que a função das minhas observações, na esteira das suas palavras, é o de criar um ambiente de sensibilização cívica para a complexa problemática que emerge do contexto em que vivemos, para que colectivamente o possamos tentar resolver.
Estou, inteiramente, de acordo, com a afirmação desta autora, de que é necessário desenvolver o aparelho produtivo nacional, em particular os sectores primário e secundário que têm sido muito menosprezados. Os problemas básicos que afectam a nossa economia nacional radicam, sem sombra de dúvida, no drama do desemprego e no endividamento público[2] que, aliás, não é uma novidade na História de Portugal dado que o atraso económico e técnico sempre foi uma das suas linhas de força, como já o frisavam alguns estrangeirados do século XVIII[3].
Subscrevo a ideia da existência de uma hipertrofia do sector terciário no nosso país. Na verdade, concordo, em absoluto, que o cerne da questão é a qualidade de vida das pessoas e a falta de um pensamento estratégico, a médio e a longo prazo, pelo facto da política estar condicionada pela “nova economia tecnológica” que impele ao imediatismo do consumo de produtos cada vez mais efémeros[4].
O contexto internacional é extremamente complexo e imensamente desafiante e, por esta razão, torna-se difícil definir um modelo de desenvolvimento sustentável nacional e europeu, porque as coordenadas financeiras se afiguram muito incertas devido a vários factores desta conjuntura da Globalização. De facto, como dizia, no outro dia na televisão, o reconhecido especialista Ernâni Lopes as actividades económicas mundiais estão desfasadas das finanças e, nesta conjuntura, a Globalização tende a ser pouco regulada e a consciência Ética dos cidadãos encontra-se fortemente ameaçada. Urge, como nos dizem, as palavras avisadas de Vitorino Magalhães Godinho e de Mário Soares mudar de paradigma Civilizacional[5], que tome em linha de conta os legados do Humanismo Europeu. Caso contrário, os impasses existenciais de um país e de um Continente permanecerão neste nó górdio. Verifiquemos, pois, alguns desses impasses…
Há, com efeito, uma série de questões que dentro deste panorama devem ser seriamente equacionadas: até que ponto a obsessão com a produtividade se constitui como um mecanismo legítimo para melhorar a qualidade de vida das pessoas? Por outras palavras, até que ponto não estamos enredados numa lógica obsessiva e economicista que faz perder às pessoas o sentido dos projectos humanistas que lhes garanta o bem-estar e a felicidade? Recordo-me sempre do filme bem actual, de que já aqui reproduzi um pequeno excerto, de Charles Chaplin intitulado “Tempos Modernos” datado de 1936. Não é urgente um paradigma humanista que faça articular a política com uma visão de médio e de longo prazo? Não se está a pensar só nos dados de curto prazo (nas estatísticas do dia, do mês, do trimestre, etc.) por culpa dos imediatismos frenéticos e das vendas de produtos tecnológicos de consumo volátil?
Faço votos para que este imprescindível debate público se faça de espírito aberto e descomplexado! Torna-se absolutamente impreterível esta reflexão tanto mais que pergunta, com grande pertinência, o Professor José Medeiros Ferreira no blogue «Córtex Frontal» se o clima de crispação social na Europa, que parece irá emergir nos próximos dias, não será um aviso das populações à filosofia tecnocrática do Ecofin.
Nuno Sotto Mayor Ferrão
[1] Estas palavras pretenderam ser um mero comentário, mas por sugestão da Professora Ana Paula Fitas transformaram-se nestas breves considerações que vos apresento.
[2] No século XIX com as tímidas tentativas de modernização do país através dos projectos Fontistas de construção de infra-estruturas, de comunicação e transporte, começou um gritante endividamento do país.
[3] Por exemplo, o estrangeirado Cavaleiro de Oliveira, talentoso escritor português do século XVIII, dizia que Portugal era "um relógio atrasado no tempo pela incúria dos que o governam".
[4] Vide Vitorino Magalhães Godinho, “Revolução técnica e nova economia. A sociedade às avessas”, in Os problemas de Portugal – os problemas da Europa, Lisboa, Edições Colibri, 2010, pp. 118-130.
[5] Mário Soares,”Globalização, terrorismo e a grande crise”, in Elogio da Política, Lisboa, Sextante Editora, 2010, pp. 135-152.
Estas breves considerações alicerçam-se em alguns dados estatísticos que recolhi no útil site “Pordata” e analisei com algum cuidado. Embora a temática não seja inédita, julgo que desvendo alguns dados interessantes e algumas questões dignas de reflexão.
A Cultura humanista no nosso país e na Europa, nas últimas décadas, tem sido alvo da opressão dominante do paradigma tecnocrático dos políticos actuais e de outros factores sistémicos, que irei referir. O drama da empregabilidade tem reduzido os candidatos estudantis com vocação para as Humanidades, o que se tem revelado um problema, dado que as perspectivas humanistas têm sido secundarizadas e com estas condicionantes perde-se, nas nossas sociedades, sob pressão dos consumismos materialistas, a noção da necessidade da formação integral do Ser Humano[1].
A crise das Humanidades acompanha o esquecimento a que público português tem votado a Biblioteca Nacional de Portugal. Vejamos que, nos dados abaixo apresentados, não obstante o número de livros disponíveis tenha sido multiplicado por cinco (por arredondamento), o número de leitores, tendo variado neste período em estudo, permanece em cifras bastante idênticas comparando os números de leitores de 1960 e de 2008 (respectivamente 41.304 e 42.453).
Desta forma, o aumento da escolaridade da maioria da população portuguesa (sucessivamente de 4 anos do ensino primário, 6 anos do ensino primário e preparatório, 9 anos dos três ciclos do ensino básico até aos 12 anos previstos actualmente pelo Estado Português) tem conduzido a menores níveis de literacia, devido a uma complexidade de factores, como afirmam até à exaustão o fiscalista Henrique de Medina Carreira e o matemático Nuno Crato no programa “Plano Inclinado” da SIC-Notícias. Em suma, a democratização do ensino tem gerado mais pessoas escolarizadas, com mais anos de frequência escolar, mas menos capacitadas para ler, pensar, calcular e escrever com facilidade e correcção.
A imprensa acompanha estes baixos índices de literacia dos portugueses, uma vez que os jornais têm aumentado os seus leitores à custa dos diários gratuitos, da diminuição da densidade informativa e do aumento do espaço destinado às imagens que tornam mais apelativa a leitura a todos os portugueses. Com efeito, aumentam os recursos e os meios de informação e de divulgação da cultura, mas diminui a qualidade dos serviços prestados.
O fenómeno tecnocrático das nossas sociedades tem correspondência com a falta de formação ideológica dos nossos cidadãos que tem esvaziado as democracias Ocidentais do exercício da plena liberdade dos cidadãos pela força da “musculatura técnica”, naquilo a que os politólogos designam por “democracias musculadas”. Ora este facto tem potenciado o crescente divórcio entre os cidadãos e os políticos[2], porque os primeiros sentem que as suas escolhas contam pouco e que tudo já está, mais ou menos, predeterminado pelos constrangimentos das instituições comunitárias e das instituições financeiras.
As políticas culturais portuguesas, das últimas décadas, têm investido em equipamentos e infra-estruturas que concorrem para potenciar a democratização da cultura, mas convém reparar no facto do número de Bibliotecas crescer mais significativamente do que o número dos seus utilizadores. Em 1960 as Bibliotecas do país não chegavam a uma centena, enquanto em 2003 ultrapassavam já um milhar, tendo crescido 11.4 vezes. No mesmo período, o número de utilizadores situava-se em 1960 abaixo de um milhão de utilizadores, enquanto em 2003 o número de utilizadores pouco passava dos oito milhões e meio, tendo crescido 9 vezes[3].
Com efeito, tem havido uma efectiva democratização da cultura com o aumento do número de livros publicados e com idêntico fenómeno ao nível do número de edições e tiragens anuais das publicações periódicas, mas este aumento tem correspondido a critérios comerciais, ou seja, a oferta livreira tem aumentado devido às operações de “marketing” e aos títulos sensacionalistas que permitem grandes tiragens. Exemplo emblemático, desta tendência, foi o livro de Carolina Salgado que teve uma tiragem excepcionalmente elevada[4].
A publicação de livros entre 2000 e 2008, segundo os dados estatísticos que consultei, de acordo com os registos de títulos no Depósito Legal tem um crescimento anual de 3,3%, tendo os valores absolutos passado de 14066 em 2000 para 17778 em 2008. Assim, afigura-se-me que, eventualmente, tenham ocorrido tiragens maiores e mais edições de “best sellers nos últimos anos”, contudo a maioria das vezes prevalece a lógica econométrica de mercado de uma sociedade devassada pela iliteracia de consumos e gostos culturais qualitativamente questionáveis.
Em suma, tem-se verificado um avanço exponencial da cultura de massas em Portugal entre 1960 e 2008 com a construção de grandes espaços comerciais a venderem livros em quantidades impensáveis, com os espectáculos de música, dança, variedades a serem frequentados hoje em dia pela maioria da população, enquanto em 1960 estes espectáculos ao vivo eram muito raros e os espectadores, pelo restrito número, pertenciam às classes médias e às elites. Este fenómeno é, claramente, louvável, mas urge passar a outra etapa do amadurecimento das democracias europeias.
A solução para a iliteracia e para se superar a apatia política dos cidadãos passa por revalorizar os agentes e os estabelecimentos culturais que nos apresentam produtos de qualidade literária, estética e filosófica, porque, como muito bem diz o Dr. Mário Soares num excelente ensaio de história política, urge encontrar um novo paradigma político-cultural[5] que permita à Humanidade responder à ingente crise múltipla que as nossas sociedades nesta Era da Globalização Neoliberal enfrentam.
Acrescento, em conclusão, que só com o ressurgimento das Humanidades será possível encontrar esse novo paradigma que permita uma formação mais sustentada dos cidadãos no plano das suas bagagens culturais e das suas consciências éticas. Será, pois, com um renovado modelo político-cultural, de que deve fazer parte o combate, sem tréguas, à iliteracia e o desassombrado impulso às Humanidades, que será possível responder aos grandes desafios do presente e do futuro, pois só com estas variáveis será exequível, ao país e ao mundo, salvaguardar a formação integral dos cidadãos e a plena preservação do nosso “habitat” natural rumo a mundo melhor.
Nuno Sotto Mayor Ferrão
Anexo - dados extraídos do site Pordata
Biblioteca Nacional: livros e leitores
Livro
Indivíduo
Tempo
Livros
Leitores
1960
469.644
41.304
1961
476.345
34.867
1962
480.531
33.861
1963
488.972
32.502
1964
500.508
28.928
1965
505.675
30.983
1966
515.276
16.696
1967
533.998
17.557
1968
551.997
14.730
1969
561.702
13.400
1970
568.333
31.238
1971
582.253
38.367
1972
595.236
42.982
1973
608.764
37.489
1974
628.479
34.838
1975
658.585
58.232
1976
675.151
83.107
1977
693.060
67.219
1978
711.416
71.018
1979
728.711
65.104
1980
753.388
55.546
1981
773.984
56.301
1982
793.651
60.142
1983
816.437
36.638
1984
1.022.743
36.906
1985
2.026.763
53.286
1986
2.055.457
70.528
1987
2.084.991
67.780
1988
2.106.207
68.604
1989
2.139.644
65.099
1990
2.153.324
43.433
1991
2.175.385
40.492
1992
2.198.505
64.142
1993
2.222.436
64.484
1994
2.242.869
68.863
1995
2.260.420
70.548
1996
2.282.409
67.209
1997
2.303.996
61.054
1998
2.325.174
66.082
1999
2.348.660
x
2000
2.391.554
69.341
2001
2.415.429
62.454
2002
2.489.018
57.764
2003
2.505.074
58.546
2004
2.519.626
52.782
2005
2.533.067
49.193
2006
2.552.427
52.629
2007
2.593.837
43.386
2008
2.643.570
42.453
Fonte de Dados: BNP Fonte: PORDATA Última actualização: 2010-02-22 13:21:21
[1] Bento XVI, Encíclica – Caridade na verdade, Prior Velho, Edições Paulinas, 2009, pp. 109-120.
[2] Vide A nova primavera do político, org. Michel Wievieorka, Lisboa, Editora Guerra e Paz, 2007. Este livro que recolhe o contributo de vários intelectuais europeus fala, precisamente, do afastamento entre os cidadãos e os políticos e da premente necessidade de reabrir o debate para a indispensável reinvenção do “Welfare State”.
[3] Segundo os dados disponibilizados pelo site “Pordata”, cuja iniciativa pertenceu a António Barreto: em 1960 existiam no país 89 Bibliotecas e em 2003 já se contabilizaram 1018, enquanto o número de utilizadores no mesmo período passou de 957 113 para 8 641 276.
[4] Carolina Salgado e outros, Eu, Carolina – A história verdadeira, Lisboa, Edições Dom Quixote, 2006.
[5] Mário Soares, Elogio da política, Lisboa, Sextante Editora, 2009, pp. 80-87.