Crónicas que tratam temas da cultura, da literatura, da política, da sociedade portuguesa e das realidades actuais do mundo em que vivemos. Em outros textos mais curtos farei considerações sobre temas de grande actualidade.
Crónicas que tratam temas da cultura, da literatura, da política, da sociedade portuguesa e das realidades actuais do mundo em que vivemos. Em outros textos mais curtos farei considerações sobre temas de grande actualidade.
A conceituada artista portuguesa, de projeção internacional, Joana Vasconcelos irá representar este ano Portugal, na Bienal das Artes em Veneza, com um projeto criativo marcado por elementos simbólicos da cultura tradicional portuguesa. Assim, esta provocadora artista, partindo de um antigo cacilheiro, do rio Tejo intitulado ”Trafaria Praia”, que está em reparação e que irá ser revestido, interna e externamente, para o transformar num pavilhão privilegiado de Portugal neste evento, que começará a 1 de junho de 2013. Será, pois, uma obra de arte, simultaneamente, arquitetónica e escultórica.
Esta obra será caracterizada por um revestimento com materiais típicos da cultura tradicional portuguesa: o azulejo, a cortiça e os tecidos. Este barco será, também, adaptado para servir de palco a conferências e a concertos de artistas portugueses.
Constituirá um autêntico pavilhão flutuante, nas águas encantadoras da cidade do romantismo, que recebeu autorização para circular na citá, tornando, assim, a presença portuguesa mais notória neste certame internacional de Belas Artes. Esta representação oficial na Bienal de Veneza é comparticipada pelo Estado Português, embora se procurem, ainda, patrocínios privados. Este chamativo cacilheiro será inaugurado na véspera da abertura da Bienal das Artes de Veneza.
Joana Vasconcelos, nascida em 1971, vive e trabalha em Lisboa, mas tem apresentado o seu trabalho ao mundo através de várias galerias de arte em cidades cosmopolitas, da Europa e da América, que têm exposto os seus trabalhos. É de assinalar que foi um retumbante sucesso, ponto culminante da sua afirmação internacional, a exposição apresentada no Palácio de Versalhes, em conjunto com outros artistas, no verão de 2012, que recebeu um volume de visitas muito significativo.
A marca pessoal da artista é a utilização de objetos comuns, com uma utilização inusitada, que interpela os seus observadores. Esta sua conceção estética inspira-se, deste modo, nas correntes de vanguarda artística, do século XX, designadamente do “ready-made”, do Novo Realismo e da Pop Arte, embora adaptando as suas obras à marca genética da identidade coletiva portuguesa. Desde 2000 que tem recebido Prémios e reconhecimentos, nacionais e internacionais, variados e sido convidada para realizar intervenções em locais públicos (Lisboa, Paris, Porto, Torres Vedras, etc).
É de grande complexidade a definição de uma obra de arte, e não querendo imiscuir-me em alongadas discussões académicas, deixo aqui esta simples enunciação conceptual: uma obra de arte é o produto de qualquer um dos domínios da criação estética ou simbólica do Homem ( literatura, música, teatro, artes plásticas, artes decorativas, sétima arte, arquitectura, etc)[1].
Desde os tempos mais recônditos da Pré-História, durante o Paleolítico, o Homem inventou maneiras de se exprimir simbolicamente através de pinturas rupestres, ou de pequenas estatuetas, que representavam elementos fundamentais da sobrevivência humana. Já, nesta época, se faziam sentir, pois, as necessidades de expressão artística, não obstante a sua forte ligação com as iminentes necessidades de ordem material. Este relevante instinto humano faz-nos compreender a verdade da afirmação Bíblica: “nem só de pão vive o Homem”[2]…
Numa segunda fase da História da Humanidade, em particular com a Civilização Helénica nasce a dimensão estética da arte associada à humana capacidade de reflexão[3]. Neste período predomina em toda a criação artística um conjunto de cânones (ordem, equilíbrio, proporcionalidade, simetria, estabilidade, etc) que concorrem para uma beleza ideal[4] visando a harmonização do corpo e do espírito. Atingindo-se, deste modo, o clímax do desenvolvimento artístico da Humanidade.
Na época contemporânea, durante o século XX, com a multiplicação dos estilos artísticos, por exemplo na pintura, entrou-se numa dinâmica destrutiva dos antigos cânones clássicos, dando-se primazia à subjectividade criativa. Esta tendência desconstrutivista desembocou na “fabricação” de obras de arte polémicas, e bem provocadoras, da consciência pública. Artistas como José Sobral de Almada Negreiros[5], em Portugal, ou Salvador Domingo Felipe Jacinto Dalí i Domènech, em Espanha, foram peritos nas polémicas e provocações que lançaram na opinião pública portuguesa e europeia, embora as suas obras-primas tenham fugido destes seus critérios de ruptura canónica.
A inspiração do criador de arte é a essência do trabalho espiritual, pois este é um dos elementos que traduz a qualidade da obra realizada. A invenção de um novo patamar simbólico e/ou ,principalmente, estético pode alavancar o artista, ou a sua obra de arte, ao estrelato.
Os bons materiais e as operações mecânicas de precisão manual fazem um artesão, mas não fazem um artista de génio. No entanto, sem a associação airosa, dos conhecimentos técnicos e da inspirada criatividade, a obra de arte parece, muitas vezes, um embuste com que se sentem justamente indignados muitos cidadãos. É, assim, esta magistral síntese, qual centelha do divino, que permite alguns homens criarem obras de arte, embora o “esforço, suor e lágrimas”[6] não permita a muitos outros homens, aprendizes de artistas, ultrapassarem a velha dicotomia entre “corpo e espírito”.
Wim Wenders no seu filme “As Asas do Desejo”[7] (1987) dá-nos conta desta ambivalente emoção: “(…) É fantástico viver espiritualmente. Dia após dia testemunhar para a eternidade o que há de puro, de espiritual nas pessoas, mas gostaria de não pairar eternamente. (…) Não me entusiasmar só com as coisas do espírito (…) Experimentar o que se sente quando se tiram os sapatos debaixo da mesa e se estendem os dedos descalços. (…)”.
Miguel Ângelo di Ludovico BuonarrotiSimoni[8] foi um genial artista do Renascimento, porque conseguiu aliar uma apurada técnica, denotando elevado perfeccionismo, com uma expressiva criatividade que se manifesta, de forma bem evidente, na escultura “Pietá”. Irradia, desta obra de arte, uma expressividade emocional que tocou, os seus mecenas e o público em geral, ao longo dos últimos séculos.
Marcel Duchamp foi um escultor francês, muito indolente, do início do século XX, segundo nos contam os estudos mais recentes, oriundo de uma afamada família de artistas, que inventou o conceito artístico de “Ready made” ao imprimir às suas esculturas um arrojo provocador de excentricidade na utilização de objectos de uso comum, sem os trabalhar, nas suas obras. Causou estupefacta sensação a apresentação pública da sua obra simbólica intitulada “A fonte” resultante do reaproveitamento inestético de um urinol.
Joana Vasconcelos é uma jovem e promissora escultora portuguesa que, partindo de uma das premissas do “Ready made” – a utilização de objectos comuns, conseguiu pôr a criatividade ao serviço do seu labor artístico que lhe tem permitido forjar obras com um bafejado sentido simbólico e estético. É disso exemplo, “o sapato” prateado (patente no Museu Berardo do CCB), feito da harmoniosa junção de tachos, que permite à peça compaginar estes inestimáveis valores. Advém daí, o enorme reconhecimento nacional e internacional que está a receber, na actualidade, o seu trabalho com a conquista de Prémios importantes e a venda de algumas das suas peças a montantes exorbitantes.
Para finalizar estas considerações, direi que uma obra de arte tem tanto mais valor patrimonial quanto mais a sua marca histórica nos ensina algo.
Nuno Sotto Mayor Ferrão
O Sapato de Joana Vasconcelos
A Fonte de Marcel Duchamp
[1] André Richard, La critique d’ Art, Paris, Presses Universitaires de France, 1980.
[2] “Evangelho segundo São Mateus” ( 4 – 4 ), Bíblia Sagrada, Coimbra, Difusora Bíblica, 2006, p. 1569.
[3] Raymond Bayer, “Despertar da consciência estética e Pré-História”, in História da Estética, Lisboa, Editorial Estampa, 1979, pp. 15-22.
[4]“O ideal estético na Grécia Antiga”, in História da Beleza, Direcção de Umberto Eco, Lisboa, Difel – Difusão Editorial, 2004, pp. 37-51.
[5] José Sobral de Almada Negreiros, Manifesto Anti-Dantas, 1915: "(... ) Basta PUM Basta! Uma geração, que consente deixar-se representar por um Dantas é uma geração que nunca o foi. É um coio d’indigentes, d’indignos e de cegos! É uma resma de charlatães e de vendidos, e só pode parir abaixo de zero! Abaixo a geração! Morra o Dantas, morra! PIM!(...)”.
[6] Célebre expressão usada pelo primeiro-ministro inglês Winston Churchill a 13 de Maio de 1940, na Câmara dos Comuns, quando a Inglaterra sente que os braços tentaculares do imperialismo Nazi a isolam na Europa. Vide “Um primeiro-ministro só, 1940-1941”, in John Keegan, Uma introdução à vida de Churchill, Lisboa, Edições Tinta da china, 2007, pp. 137-157.
[7]Asas do desejo (Les Ailes du Désir/Der Himmel Über Berlin). Direcção: Wim Wenders. Roteiro: Wim Wenders e Peter Handke. Intérpretes: Bruno Ganz, Solveig Dommartin, Otto Sander, Curt Bois, Peter Falk e outros. Paris: Argos Filmes; Berlin: Road Movies, 1987. (126 min) VHS. son. PB. Color.
[8] Heinrich Wolfflin, “Michelangelo 1475-1564”, in A Arte Clássica, São Paulo, Livraria Martins Fontes Editora, 1990, pp. 55-93.