O DEBATE POLÍTICO PORTUGUÊS DOS MEIOS COLONIZADORES NA 1ª REPÚBLICA, APÓS A 1ª GUERRA MUNDIAL
O professor universitário João Carneiro de Moura considerou em 1921 à revelia das teses oficiais que para colonizar as terras ultramarinas era necessário o esforço social dos portugueses e designadamente que se recorresse a pessoas capazes e “úteis”. Não se devia recorrer unicamente à tradicional política dos degredados em que apenas se enviavam para as colónias os elementos "decadentes" da sociedade metropolitana[1]. E, por outro lado, achava que o Estado devia impulsionar as missões religiosas nacionais, dado que se revelou nesta época publicamente o insucesso das missões laicas de civilização das populações nativas apadrinhadas pelo regime Republicano.
Deste modo, no momento em que pairavam cobiças estrangeiras à posse das colónias portuguesas devido à nossa incapacidade administrativa, muito criticada na imprensa internacional, apareceram as teses que proclamavam que renovando os meios de colonização se conseguiria efectivar a ocupação das colónias.
Este professor divulgou esta sua tese numa Conferência que realizou a 8 de Março de 1921 na Sociedade de Geografia de Lisboa. Começou por diagnosticar a existência duma crise nacional motivada por dois problemas: por um lado, tornava-se evidente a fragilidade da ocupação das colónias portuguesas que se limitava aos critérios administrativo e político, faltando realizar a ocupação social; e, por outro lado, fazia-se sentir uma complicada crise económica e financeira no Erário Público que se denotava nos défices orçamentais e na dívida externa do Estado português.
Heterodoxamente afirmava que as colónias não podiam ser apenas reservatórios de indívíduos sociailmente desviados (doentes, analfabetos, deficientes, criminosos, etc), encaradas tradicionalmente como terras de degredados e de exilados, e em segundo lugar, que o Estado devia autorizar e favorecer as missões religiosas nacionais[2] como forma de civilizar os autóctones e de impedir o predomínio das missões religiosas estrangeiras no ultramar português[3]. Com efeito, proferiu uma crítica veemente à doutrina colonial adoptada pelos governantes da 1ª República, alertando para o risco da cobiça estrangeira implicado pela estratégia oficialmente adoptada.
A 25 de Abril de 1923, José Ferreira Dinis em conferência proferida, na sala das sessões da Câmara Municipal da Figueira da Foz, perante o contexto da falência operacional das missões laicas de civilização dos indígenas africanos nas colónias portuguesas propôs que fossem revitalizadas as missões religiosas. Sustentou, designadamente, duas teses heterodoxas de colonização dos territórios ultramarinos portugueses[4].
Na primeira tese defendeu que o autóctone africano não podia ser civilizado de acordo com os padrões culturais europeus, não obstante pudesse ser instruído tecnicamente com um ensino profissionalizante, excluindo-o do estatuto de cidadania e inferiorizando-o ao colono, o que proporcionaria as condições sócio-laborais para a sua manipulação como mão-de-obra do patrão colonizador. De facto, a política executada pelos Altos Comissários, neste período, acreditava na elevação civilizacional dos autóctones ao nível dos europeus[5]. Na segunda tese considerava, de forma heterodoxa, que o Estado português devia subsidiar a função civilizadora das missões religiosas porque tinham tido êxito e extinguir as missões laicas pelo seu provado insucesso no regime Republicano.
Assim, Ferreira Dinis discordou dos métodos civilizadores que o Estado português seguiu para educar as populações nativas das colónias africanas. Censurou a convicção política oficial de que os indivíduos de raça negra pudessem ser europeizados pela instrução, sem ter em conta o seu contexto cultural. Afirmou que a alternativa passava apenas por oferecer às populações negras das colónias um ensino profissionalizante e os rudimentos da língua portuguesa como meio de comunicação. Parece-nos, claro, que esta tese pressupondo um segregacionismo rácico em relação aos povos negros tinha como objectivo assegurar que estes ocupassem posições socialmente inferiores[6]. É interessante o modo como justifica esta sua tese, pois diz que era prejudicial civilizar mesmo uma minoria de indígenas à luz dos padrões culturais dos colonos, porque estes podiam formar uma élite subversiva do desejável servilismo dos povos colonizados nativos.
Por outro lado, em relação à sua segunda tese considerou que o Estado deveria subsidiar as missões religiosas que formassem missionários “in loco” e que empregassem missionários portugueses. Salientou a evolução histórica da utilização missionária. O regime Republicano em 1913, na sequência da Lei da Separação do Estado das Igrejas, de Afonso Costa, criou as missões laicas para substituir as missões religiosas, mas em 1923 os políticos constatando a ineficácia das missões laicas promulgaram um decreto reabilitando e protegendo as missões religiosas como educadoras das populações autóctones africanas. Contudo, na sua perspectiva heterodoxa, o Estado português deveria ter a coragem política de pôr fim às missões laicas, porque a coexistência de missões com metodologias antagónicas implicava uma incoerente acção civilizadora.
Como forma de reagir à acusação internacional de que Portugal praticava em Angola e em Moçambique nos anos 20 a escravatura ( o trabalho forçado ) Ferreira Dinis procurou sugerir que se criasse um regime jurídico que distinguisse cidadãos e indígenas com base numa avaliação cultural[7], o que seria a seu ver um critério que legitimaria esta útil discriminação para efeitos laborais.
Ao invés da política que Norton de Matos executou, na defesa dos direitos dos povos “indígenas” e na tendência para criar igual dignidade para colonizadores e colonizados, Ferreira Dinis propôs que os “indígenas africanos” fossem juridicamente discriminados como um grupo excluído da categoria de cidadania[8]. Achava conveniente que, deste modo, se consagrasse um estatuto civil e político para os indígenas, no sentido de se estabelecer uma clivagem jurídica de base cultural em relação aos colonizadores que permitisse desmentir junto da opinião pública internacional o fenómeno da escravização dos “indígenas”, mas que concomitantemente permitisse mascarar o abuso laboral sobre os nativos africanos com este artifício ideológico-jurídico.
[1] João Carneiro de Moura, “A colonização portuguesa e as missões perante o problema nacional”, in Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa, nº 3-4, 39ª série, Março-Abril de 1921, pp. 148-156.
[2] Na verdade, esta ideia de Carneiro de Moura só se transformou de heterodoxa em ortodoxa, com a mudança de regime da 1ª República para a ditadura militar. Assim, só com o ministro João Belo ao decretar o Estatuto das Missões Católicas a 23 de Outubro de 1926 se procurou legitimar novamente as missões religiosas com o objectivo de fomentar a evangelização das populações indígenas africanas.
[3] Nas seguintes citações se atesta a veracidade destas análises: “(...) E assim não se deve consentir que emigrem os indivíduos indeclinavelmente necessários na metrópole, como não se deve consentir que emigrem os incapazes de realizar a colonização em terras distantes: os doentes, os analfabetos, os débeis e os anormais, não podem emigrar. Pelo que, nas regiões onde o poder público é regular e vigilante, não se pode admitir a emigração dos incapazes de trabalhar e dos inúteis. (...) A Conferência de Berlim de 1885, abriu caminho às missões religiosas pela liberdade concedida à expansão de todas as confissões e se queremos contrapôr à acção das missões religiosas estrangeiras a conveniente acção portuguesa, carecemos de crear as missões religiosas nacionais. O espírito dos indígenas, pelo seu estado mental, é facilmente conduzido por emoções religiosas; a história do espírito humano assim o atesta. (...)” Ibidem, pp. 150-151.
[4] José Ferreira Dinis, Missão Civilizadora do Estado nas colónias africanas, Lisboa, Tipografia Colonial, 1924, pp. 6,7,8 e 20.
[5] O argumento implícito ao discurso de Ferreira Dinis é o de que se o preto fôr mantido no seu nível civilizacional poderia ser usado como mão-de-obra do colono, o que é antagónico com a tese aplicada por Norton de Matos em Angola.
[6] As seguintes passagens evidenciam a validade destas interpretações: “(...) Em lugar de adaptar-se a instrução ao meio, pelo contrário, entendeu-se que o meio é que tinha de desaparecer perante a instrução, acreditando-se no efeito mágico dos programas escolares da Europa na obra de colonização. Transplantaram-se para África os métodos de ensino metropolitano, como sendo os mais apropriados, para realizar a transformação do negro. (...) Enfim a escola deve ser mais uma oficina do que uma escola, onde se ensine juntamente com a língua portuguesa, com a leitura e escrita, um ofício, uma profissão e trabalho manual, criando operários e agricultores. (...) o internato pondo em contacto permanente ou quase permanente o missionário com o indígena, provoca não a evolução natural e progressiva da raça, mas sim uma evolução intelectual antecipada de alguns indivíduos que veem a constituir o semi-civilizado, tipo esporádico que a missão criou e que constitue um dos piores elementos da população nativa (...)”, Ibidem, pp. 6,7 e 8.
[7] Esta sugestão discriminatória dos negros iria ser implementada já na ditadura militar a 23 de Outubro de 1926 com o Estatuto Político, Civil e Criminal dos Indígenas de Angola e de Moçambique pelo ministro das colónias João Belo.
[8] As seguintes citações corroboram a verdade destas análises: “(...) A atitude do Estado não é só incoerente e incompreensível, é condenável. Por outra forma não pode ser classificada a atitude do Estado, mantendo duas instituições [ missões laicas e religiosas ], que visando o mesmo fim, o civilizar raças indígenas, na sua acção se servem de meios antagónicos que podem produzir graves perturbações entre as populações sobre que vai recair a sua acção e até lançá-las em lutas sangrentas. Não pode nem deve ser. (...) Quanto às missões laicas, em face da atitude que o Estado deve tomar perante as missões religiosas e em virtude do que se obrigou nas Convenções internacionais, não têm elas razão de ser. (...) Urge promulgar o estatuto civil e político, por que se devem reger os nossos súbditos, estabelecendo a definição jurídica do indígena, o que afinal não é mais que dar cumprimento ao estabelecido nas leis orgânicas da administração civil das colónias, de agosto de 1914. (...) Os nativos das colónias são cidadãos da República ou seus súbditos; cidadãos, quando não pratiquem os usos e costumes característicos das raças africanas e satisfaçam à condição essencial para serem considerados como portugueses, falar o português; súbditos os que não falando o português, pratiquem os usos e costumes daquelas raças e se regem pelas suas instituições. (...)” José Ferreira Dinis, op. cit., pp. 19,20 e 27.
Nuno Sotto Mayor Ferrão