O ESTADO DO ENSINO PÚBLICO, BÁSICO E SECUNDÁRIO, EM PORTUGAL: CONTRADIÇÕES; HESITAÇÕES E AMBIGUIDADES (1970-2009)
Ericeira, 17 de Agosto de 2009
“O estado do Ensino Público, Básico e Secundário, em Portugal: contradições, hesitações e ambiguidades (1970 - 2009)”
É meu intuito traçar uma panorâmica sintética do estado do ensino público, básico e secundário, em Portugal, dos anos 70 aos nossos dias, com base numa reflexão, simultaneamente, empírica e teórica, sem cair numa rudimentar visão sincrética. Esta temática tem sido amplamente debatida, sem que haja, todavia, uma compreensão global do estado da problemática, porquanto a pluralidade de opiniões e os erráticos palpites de numerosos leigos, não tem favorecido a clarificação das questões basilares, entre os especialistas e junto da opinião pública, e também a elucidação das opções em aberto no actual sistema de ensino português.
O primeiro grande impulso histórico transformador foi dado por José Veiga Simão, Ministro da Educação Nacional durante parte do Governo de Marcelo Caetano (1970-1974), que estabelecendo a necessidade de democratizar o ensino no país abriu a porta à massificação do ensino obrigatório, num tempo de significativo analfabetismo popular. Por outro lado, o ideal educativo do desenvolvimento integral dos indivíduos, que Sua Santidade, o Sumo Pontífice, Bento XVI nos vem recordar, numa época excessivamente centrada nas competências competitivas, na sua mais recente e notável encíclica “Caridade na Verdade”[1], a par da metodologia pedagógica activa introduzida pela “Escola Nova”[2], que recentrou o ensino português e europeu nas aprendizagens dos alunos, inverteram o paradigma pedagógico tradicional até então dominante[3].
Este novo paradigma pedagógico, implementado no contexto revolucionário da esperança libertadora do PREC, pecou pelo excesso da viragem institucional nas escolas do país, ao ponto da anarquia pedagógica contaminar o sistema de ensino nos meados dos anos 70, pois, em boa verdade, o eixo estruturante da dinâmica educativa deve assentar, como bem percepciona a sensata e actual linguagem docente, no binómio ensino/aprendizagem.
Neste complexo quadro histórico, de transmutação do sistema de ensino, estas variáveis alargaram o espaço de competências dos professores[4], que, dessa forma, assistiram à mudança de paradigma pedagógico, em função da transição de regime político, sem que tivessem tempo para se adaptarem. Daí que, como atentos observadores, não estranhemos a confusão revolucionária que contaminou o sistema de ensino, nos meados dos anos 70, colocando em causa hierarquias escolares e metodologias pedagógicas tradicionais.
Assim, os professores do novo regime democrático passaram a ter que ensinar a aprender, que motivar para as diversas aprendizagens, que fomentar a formação de competências sociais e cívicas, para além de ensinarem as matérias programáticas, que já anteriormente lhes eram incumbidas. Em suma, os docentes passaram a ter que desenvolver mais tarefas e de maior complexidade, num “estalar de dedos”, fazendo desembocar o sistema, imprudentemente, num caótico estado qualitativo…
Em concomitância, emergiu a necessidade de massificar o ensino público, o que obrigou o sistema a alargar o número de professores ao serviço do Ministério da Educação, tornando, assim, as exigências doutrinárias, proclamadas pelas Ciências Psico-Pedagógicas e pelas autoridades políticas, inviáveis de serem cumpridas no curto e médio prazos. Houve, com efeito, uma falta de razoabilidade nos organismos governativos que tutelaram o ensino público[5].
Neste quadro geral de pressupostos educativos, a finalidade do desenvolvimento integral dos alunos implicou a consecução da acção pedagógica ao nível do Saber, do Saber-Fazer e do Saber-Estar, o que tornou as tarefas docentes mais complexas e mais difíceis de serem aferidas em termos da qualidade dos desempenhos profissionais. Aliás, este requisito de complexidade da acção educativa entra, ironicamente, em profunda contradição com os “rankings das escolas secundárias”, impostos pela tutela, que pretendem classificar, de forma perfeitamente adulterada, as escolas pelos resultados cognitivos dos seus alunos.
Deste modo, este mecanismo classificativo de escolas secundárias é uma autêntica aberração à luz da natureza humana e do actual conceito psicológico da inteligência emocional, de Daniel Goleman[6] e de António Damásio, ou, por outras palavras, em lúcida linguagem popular diríamos que “não joga a bota com a perdigota”, porque se assume que o sistema de ensino público deve pugnar por uma educação global e, na prática, a tutela administrativa estabelece uma lista ordenada decrescente das melhores escolas secundárias do país com base em resultados cognitivos…
É certo que este mecanismo classificativo do sistema de ensino trata o lado mais fácil da avaliação educativa, mas a educação por excelência só é possível de ser qualificada, e não apenas de ser quantificada e, por isso, os “rankings das escolas” são simplesmente uma aberração pedagógica de transviadas orientações administrativas.
Há, pois, vários problemas estruturais, do ensino, básico e secundário, em Portugal, que estão, sobejamente, diagnosticados pelos sociólogos da educação, advindos da estruturação formulada no pós-25 de Abril em função dos ideais libertários. Com efeito, conjugaram-se, desde essa altura, vários factores históricos que contribuem para a fraca eficácia do actual sistema educativo português: 1. os pais, muitas vezes, demitem-se dos seus papéis educativos; 2. as reformas de política educativa têm sido, quase, sempre de alcance conjuntural; 3. as modernas Pedagogias têm enfatizado em excesso os aspectos folclóricos da educação[7]; 4. a pressão das estatísticas nacionais e internacionais têm dado azo ao facilitismo pedagógico e, finalmente; 5. as práticas docentes têm sido, muitas vezes, resistentes às mudanças.
Em resumo, este caldo de inércia e de desnorte social, político, pedagógico e profissional não tem favorecido a melhoria dos padrões de ensino em Portugal, porque como tenho, sempre, sustentado existe um conjunto de variáveis sistémicas que são co-responsáveis pelo estado do ensino em Portugal.
Por conseguinte, só uma reforma estrutural da educação que seja mobilizadora de todos os agentes envolvidos no sistema de ensino público português poderá conseguir gerar as harmoniosas sinergias para uma educação globalizante e, efectivamente, de qualidade. Por esta razão, só com a co-responsabilização e a convicção profunda de pais, de agentes políticos, de cientistas sociais, de meios de comunicação social, de professores e de educadores, munidos de boa vontade e de bom senso, se poderá implementar uma verdadeira reforma do ensino público português, de nível básico e secundário.
Na realidade, um dos principais problemas que contribui para a instabilidade do sistema em Portugal é a falta de autoridade dos professores que se alicerça, em parte, na regulamentação legal[8], hiper-protectora dos direitos dos alunos que visa o programático objectivo de lutar contra o absentismo escolar dos estudantes do ensino básico obrigatório.
Nesta perspectiva, não há uma proporcionalidade de meios e de fins, porquanto embora esta finalidade de política educativa seja louvável, os mecanismos empregues através dos diversos Estatutos do Aluno do Ensino Básico e Secundário, promulgados por vários Governos, têm conduzido à permissividade disciplinar das escolas, desembocando, pois, esta situação na progressiva perda de autoridade dos professores. Daniel Sampaio, perito nesta problemática, assume outras variáveis que condicionam este indesejável fenómeno, mas, do meu ponto de vista, estas circunstâncias de âmbito político-legislativo não são menosprezáveis.
Outro problema, do sistema de ensino português, de significativo peso é a avaliação docente, alterada durante o Governo de José Sócrates, que tem um grau elevado de subjectividade epistemológica como, aliás, nos demonstra o facto dos modelos avaliativos docentes variarem de um país para outro. Não obstante, importa reconhecer que a avaliação docente influencia a qualidade do sistema de ensino, no entanto uma avaliação de desempenho docente basicamente quantitativa e burocrática, como no presente modelo promulgado pela tutela, não é compaginável com uma educação global. É nesta incomensurável contradição que assenta o drama sistémico com que os actuais políticos tecnocráticos da “5 de Outubro” (Maria de Lurdes Rodrigues, Valter Lemos e Jorge Pedreira), se debatem.
Na verdade, para a consecução de uma educação global, integral dos alunos, são necessárias a motivação e a mobilização de professores com sensibilidade humanista, e não de professores-burocratas com mera sensibilidade técnica, para que os docentes possam ser avaliados de forma qualitativa e formativa em função de uma pluralidade de perfis pedagógicos. Caso contrário, em face do presente rumo da tutela, estaremos a criar perversamente escolas com modelos empresariais de objectivos produtivos, com funcionamentos pouco democráticos e muito afastadas do modelo pedagógico globalizante que comporta, inevitavelmente, a dimensão criativa dos educadores e dos educandos[9].
Finalmente, outro “handicap” que se manifesta no sistema de ensino em Portugal é o fenómeno da iliteracia. Em boa parte, a iliteracia estudantil deriva das folclóricas pedagogias modernas e da diminuição do grau de exigência dos docentes para efeitos estatísticos. Este fenómeno traduz-se no facto dos estudantes saberem ler de forma literal, mas, na prática, serem incapazes de interpretar e compreender questões, textos, gráficos, etc. Ou seja, os alunos do ensino básico e secundário sofrem de uma escolarização pouco alfabetizada, como bem destacou o escritor Vasco Graça Moura no que concerne ao ensino da língua portuguesa e ao conhecimento da literatura nacional em função da fasquia definida nos programas do ensino secundário desta disciplina.
Em conclusão, para se superar estas contradições, hesitações e ambiguidades do sistema de ensino em Portugal, que se eternizam no regime democrático, afigura-se-nos fundamental que haja um amplo debate de especialistas da educação, de cientistas e de pedagogos, e que todos os agentes envolvidos no processo educativo se co-responsabilizem pelo cumprimento dos seus deveres, no respeito pela diferença de funções e pela pluralidade de perfis pedagógicos, no sentido de formular um sistema minimamente coerente de ensino, não coercivo, em que todos os intervenientes se auxiliem e se esmerem. Porquanto, de contrário, “sobe à tona”, inúmeras vezes, a tendência de “passar a batata quente” para o vizinho da cadeia educativa[10]!
Em suma, diremos que só um consenso espontâneo de especialistas conjugado com a boa vontade, o bom senso e a sensibilidade humanista, como nos recomenda Sua Santidade Bento XVI na sua mais recente encíclica[11], de pais, de professores, de cientistas, de políticos e de cidadãos permitirá operacionalizar uma, efectiva, melhoria do sistema de ensino nacional, de forma a afinar os tons melódicos destes diversos agentes educativos, pois sem este requisito primordial a harmonia sistémica do ensino nacional não será viável.
Nuno Sotto Mayor Ferrão
[1] “(…) A fidelidade à pessoa humana exige a fidelidade à verdade, a única que é garantia de liberdade ( Cf. Jo 8,32 ) e da possibilidade de um desenvolvimento humano integral. (…)” in Bento XVI, Caridade na Verdade, Prior Velho, Edições Paulinas, 2009, p. 14.
[2] A Escola Nova, ou Escola Activa, que se desenvolveu na Europa e na América na primeira metade do século XX, só teve efectiva aplicação em Portugal no regime democrático pós-25 de Abril dado que a visão tradicionalista da Educação do Estado Salazarista não permitiu grandes inovações no ensino público.
[3] O paradigma pedagógico dominante desde a época Napoleónica estava centrado no saber do professor e desprezavam-se as aprendizagens afectivas e comportamentais dos alunos.
[4] Os professores neste tempo de mudança deixaram de ter por missão exclusiva instruir e passaram a ter que instruir e educar os alunos e, deste modo, deixaram de se preocupar apenas com o ensino e foram arremessados para a dupla função de ensinar e de fazer aprender.
[5] Daniel Goleman, Inteligência Emocional, Lisboa, Editora Temas e Debates, 2002.
[6] Gabriel Mithá Ribeiro, A pedagogia da avestruz: testemunho de um professor, Lisboa, Gradiva, 2004.
[7] Estatuto do Aluno do Ensino Básico e Secundário definido pela Lei nº 3/2008, de 18 de Janeiro.
[8] Vide a excelente análise de um dos mais conceituados pensadores internacionais que nos fala da necessidade da criatividade no trabalho e no ensino: “(…) É inevitável, assim, que a avaliação, (…) tenda a transformar todas as relações humanas em relações funcionais de poder. O preço a pagar por esta tecnologia biopolítica é, evidentemente, (…) a diminuição brutal dos possíveis, a restrição do aleatório (…) Como estes serão transformados em funções – a famosa ‘criatividade’ no trabalho, nas empresas, nos serviços, na publicidade, nos média -, os próprios factores aparentemente incodificáveis serão avaliados, quantificados, normalizados. (…) in José Gil, Em busca da identidade- o desnorte, Lisboa, Relógio d’ Água, 2009, pp. 52-53.
[9] Por exemplo, a “passagem da batata quente” fez-se, no sistema, da seguinte forma: o pai responsabiliza o professor do insucesso do seu filho, o professor responsabiliza o pai pelo seu pouco envolvimento na escola, o político responsabiliza o professor pela sua inércia pedagógica, etc. E, deste modo, nada se resolve.
[10] Bento XVI, Ibidem, p. 14.