A CRISE COLONIAL DE 1924 EM ANGOLA E EM MOÇAMBIQUE NO DEBATE POLÍTICO
Algumas personalidades, como o agente geral das colónias Armando Cortesão, o deputado Manuel Ferreira da Rocha e o engenheiro Augusto Lisboa de Lima, consideraram em 1924, perante a crise administrativa angolana, que os cargos de Altos-Comissários de Angola e de Moçambique tinham implicado uma excessiva descentralização administrativa. Sugeriram, para o efeito, um reforço da capacidade coordenadora do poder central metropolitano sobre a estrutura administrativa colonial e uma simplificação da máquina burocrática.
Do ponto de vista de Ferreira da Rocha a descentralização tinha de ser moderada no sentido de assegurar, concomitantemente, uma fiscalização apertada do poder central sobre os orgãos locais das colónias e uma certa autonomia legislativa destas para que pudessem organizar livremente os seus serviços administrativos. Com efeito, no rescaldo da crise da administração colonial angolana, em 1924-25, alguns doutrinadores afirmaram que se devia implementar uma tendência centralizadora, pelo menos enquanto durasse a crise. Por exemplo, um jornalista da Gazeta das Colónias censurava então o governo por se preocupar apenas com a escolha do novo Alto-Comissário de Angola, ao invés de no período da crise se reajustar a administração colonial centralizando-a[1].
Armando Cortesão reputava a crise colonial portuguesa de meados dos anos 20 como resultante da deficiente organização da administração colonial[2], opinando que a descentralização tinha sido excessiva devido à perda da capacidade de coordenação da máquina administrativa por parte do poder central e pela sua desnecessária complexificação. Sugeriu, igualmente, que a carreira administrativa colonial se independentizasse em relação ao poder político, com o objectivo de se tornar imune face às instabilidades político-parlamentares da altura.
Este autor numa significativa conferência realizada na Sociedade de Geografia de Lisboa, em 25 de Janeiro de 1925, criticou de forma veemente o sistema administrativo colonial adoptado durante a 1ª República. Defendeu que deveria existir uma descentralização administrativa da estrutura colonial, semelhante à que tinha sido implementada por Luís Rebelo da Silva em 1870, que fosse progressivamente edificada e se adequasse ao nível de desenvolvimento económico-social de cada colónia. Esta descentralização significaria a distribuição pelos orgãos do poder colonial de atribuições do governo central. O orador diagnosticou dois problemas que afligiam o império colonial português no início de 1925: a crise económico-financeira angolana e o excesso de circulação fiduciária em todos os territórios ultramarinos em comparação com o capital de base do Banco Colonial. Na sua opinião, estes problemas governativos derivavam da exagerada autonomia da administração colonial e das desmedidas ingerências políticas desta máquina administrativa[3].
De facto, Cortesão discordava da autonomia administrativa colonial, inspirada no exemplo imperial britânico, em que as colónias tinham o direito de se governar pelas suas próprias leis, devido a uma certa independência da máquina administrativa de cada território. Por conseguinte, do seu ponto de vista a autonomia implementada nos anos 20 com o regime dos Altos-Comissários tinha originado duas consequências nefastas para o país. Em primeiro lugar, o Ministério das Colónias tinha perdido praticamente todas as funções de supervisão e de orientação da máquina administrativa colonial, alheando-se involuntariamente em relação ao que se passava nas colónias por desconhecimento e impossibilidade de intervir. Em segundo lugar, cada colónia tinha de possuir os seus próprios serviços técnicos e administrativos, tendo-se multiplicado os quadros e as burocracias dos serviços coloniais[4]. Deste modo, em conformidade com esta percepção o princípio autonómico tornava a máquina administrativa colonial muito mais complexa e dispendiosa.
Pensava ser impossível Portugal imitar o modelo inglês de autonomia administrativa colonial devido à contingência das circunstâncias sócio-políticas portuguesas ( escassez demográfica, minguados recursos económicos, elevada taxa de analfabetismo, dispersão geográfica das colónias e excessiva ingerência da política na administração pública). Em função de todos estes factores condicionantes parecia-lhe indispensável pôr em funcionamento um sistema administrativo colonial unificado na capacidade coordenadora do Ministério das Colónias. Este mecanismo institucional implicaria um sistema menos oneroso e mais simplificado para as circunstâncias económicas e sociais do país.
Recomendava, assim, a reorganização da administração colonial, sugerindo que esta fosse estudada por uma Comissão presidida pelo prestigiado general Alfredo Freire de Andrade. Esta reorganização teria por finalidade principal estimular o desenvolvimento colonial, o que passaria a seu ver pela consecução das seguintes iniciativas: restituir ao Ministério das Colónias a competência para coordenar serviços técnicos da estrutura administrativa colonial; aceitar investimentos de capitais e de emigrantes estrangeiros nas colónias; apoiar as missões religiosas nacionais e impulsionar as correntes migratórias para as colónias[5]. Na realidade, estas propostas doutrinárias implicavam uma mudança da orientação colonialista seguida pelos políticos da época.
Este doutrinador identificou como sendo responsável pelas crises coloniais que se viviam em 1924-1925 em Angola e Moçambique a deficiente organização da máquina administrativa ultramarina. Em conformidade com esta leitura da realidade justificou que o excedente da circulação fiduciária verificada nas colónias em comparação com o capital social do banco emissor colonial no ano de 1924, ao contrário do que sucedeu em 1919, resultou da implementação de uma incorrecta lei bancária ultramarina. Esta análise histórica pode ser corroborada através das seguintes passagens:
“(...) Os legisladores modernos teem (sic), porém, procedido de modo contrário: fizeram em separado leis para as colónias e para o orgão metropolitano, o Ministério das Colónias, independentes umas das outras, sem que todas obedecessem à mesma orientação ou a um plano definido. E daí vem, a meu ver, o principal motivo da actual desorganização. (...) Demos às colónias uma autonomia exagerada e já comprovadamente perigosa, quando nos deviamos limitar a alargar inteligentemente a “prudente descentralização” que meio século antes Rebelo da Silva já preconizava. Fomos adoptar depois de uma série de reformas, cada vez mais desorganizadoras do orgão central, o Ministério das Colónias, o critério geográfico do sistema inglês. (...) As colónias deixaram de dar conta ao respectivo Ministério do que os seus serviços iam fazendo, os relatórios que os Governadores teem obrigação de apresentar anualmente, passaram a ser coisa raríssima, e hoje, sobretudo em serviços técnicos, desconhece-se por completo no Ministério das Colónias o que nestas se passa! (...)”[6].
O professor universitário Carneiro de Moura condenou também em 1924[7], em plena crisa finaceira angolana, o excesso de descentralização administrativa e de autonomia financeira colonial, assacando-lhes as responsabilidades pelos elevados défices orçamentais de Angola e de Moçambique e pelo distanciamento comercial entre a metrópole e as colónias. No seu prisma, só uma centralização supervisionista permitiria evitar tendências despesistas e possibilitaria uma articulação harmoniosa das diversas parcelas do império colonial português.
Também perante esta conjuntura o publicista e empresário Venâncio Guimarães difundiu em vários opúsculos a ideia de que a administração colonial de José Maria Norton de Matos como Alto-Comissário de Angola foi ruinosa por ter sido deficitária, sem visíveis contrapartidas em benefícios para o progresso do território, tendo a seu ver esta orientação política avolumado o funcionalismo público e prejudicado os interesses económicos dos colonos. No seu raciocínio, a gestão colonial de Norton de Matos tinha levado à ruína financeira de Angola, porque tinha havido um acréscimo desmesurado das despesas públicas coloniais devido ao forte clientelismo de funcionários públicos e, por outro lado, à forte protecção dos direitos laborais dos indígenas que reduzia substancialmente as capacidades de lucro dos colonos[8]. Esta denúncia de má administração foi secundada pela opinião de Francisco Cunha Leal, que chegou a chamar a Norton de Matos prepotente e ditador[9]. Ora este evidente fracasso do regime descentralizador dos Altos-Comissários suscitou o ambiente ideal à propaganda das teses centralizadoras da administração colonial.
Durante a crise económico-financeira de Angola e de Moçambique em 1924, resultante dos avultados gastos administrativos de Norton de Matos e de Brito Camacho como Altos Comissários, as teses centralistas – supervisionistas ganharam eco na imprensa portuguesa[10]. Emerge, neste contexto histórico, a ideia de que a centralização administrativa colonial seria o sistema que melhor garantiria a ordem financeira do império ultramarino e que, por consequência, haveria que extinguir estes cargos, equiparados a ministros, nas colónias.
Nuno Sotto Mayor Ferrão
[1] “A política e as colónias”, in Gazeta das Colónias, nº 4, 24 de Julho de 1924, p. 3.
[2] Ibidem, pp. 35-58.
[3] O conferencista Armando Cortesão sugeriu a necessidade de tornar mais independente a administração ultramarina das frequentes ingerências do poder político, no sentido dela não depender tanto das mudanças governativas. Para alcançar este objectivo propôs que a estrutura administrativa imperial adoptasse três medidas institucionais: que se criasse um Sub-Secretário de Estado independente do poder político e eleito pelo Conselho Superior Colonial de forma a garantir a continuidade administrativa nos momentos de mudança política; que um Conselho Superior Colonial politicamente neutro orientasse e fiscalizasse toda a administração ultramarina; que os governadores coloniais passassem a ser cargos periódicos de uma carreira administrativa e não de nomeação política. No seu entender, só com estas medidas de independentização administrativa em relação ao poder político seria possível que em momentos de crise governativa a estrutura da administração não ficasse hesitante ou paralisada.
[4] Podemos citar como demonstração deste aspecto referido no texto as seguintes passagens: “(...) Deste modo, cada colónia tem que organizar os seus serviços técnicos e administrativos com uma latitude tal que se possa bastar a si própria, com uma muito maior necessidade de bons funcionários e de dinheiro; por outro lado, o Ministério das Colónias, sem repartições ou organismos técnicos que possam coordenar a acção de todos estes serviços, dando-lhes uma orientação de conjunto ou especial, conforme as circunstâncias, vive completamente alheado ao que nas colónias se passa. Este estado de coisas trouxe a necessidade de alargar demasiado os quadros de cada serviço das colónias e de pôr à sua frente funcionários duma competência e categoria que de certo modo se dispensaria desde que no Ministério houvesse repartições técnicas que orientassem, fiscalizassem e coordenassem esses diversos serviços. (...)” ( in Armando Zuzuarte Cortesão, O problema colonial português, Lisboa, Tipografia Empresa Diário de Notícias, 1925, p. 40 ).
[5] Armando Cortesão, não esquecendo a sua missão de Agente Geral das Colónias, dá no fim da conferência um conselho em relação à forma de superar a crise ultramarina portuguesa afirmando a necessidade de intensificar a propaganda colonial através da reformulação dos currículos das escolas portuguesas e do aumento quantitativo de publicações sobre a temática ultramarina. Estas propostas viriam a ser concretizadas já nos anos trinta com o regime salazarista.
[6] Armando Zuzuarte Cortesão, op. cit., pp. 35, 36 e 37.
[7] João Carneiro de Moura, “Mandatos coloniais”, in As sociedades modernas, Lisboa, Imprensa Nacional, 1924, pp. 137-138.
[8] Cf. Venâncio Guimarães, Angola - uma administração ruinosa – Para a história do reinado de Norton, Lisboa, Imprensa Lucas, 1923, 48 p.
[9] Na opinião pública ficou célebre a expressão com que Cunha Leal descreveu o general Norton de Matos na sua acção administrativa como Alto Comissário de Angola: o “Calígula de Angola”.
[10] “Respingando ... Altos Comissários à baila. Empréstimo e soberania”, in O Brado Africano, 28 de Junho de 1924, p. 1.