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Crónicas do Professor Nuno Sotto Mayor Ferrão

Crónicas que tratam temas da cultura, da literatura, da política, da sociedade portuguesa e das realidades actuais do mundo em que vivemos. Em outros textos mais curtos farei considerações sobre temas de grande actualidade.

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A ATRIBULADA VIAGEM DE JOAQUIM ZEFERINO – UM CONTO (AUTORIA DE NUNO SOTTO MAYOR FERRÃO)

 

 Joseph Mallard William Turner, Naufrágio 1805

 

Joaquim Zeferino, pescador da Ericeira, com uma tez curtida pelo Sol e pela Vida aprestava-se a embarcar para uma nova viagem, de longo curso, no alto mar para a pesca do Bacalhau nas Águas Frias do Mar da Noruega. A sua ausência por longas semanas despertava na sua mulher, Ermelinda, e nos seus filhos, Paula e Fernando, um sentimento de profunda saudade. Joaquim para mitigar este sentimento costumava despedir-se com um forte e sentido amplexo a Ermelinda, a Paula e a Fernando. Desta vez, com uma sensação premonitória de algo a acontecer, que extravasou a expressão pura do afecto, sorriu e chorou, o que os deixou muito comovidos.

 

Ermelinda perguntou, então, a Joaquim:

- Homem, o que se passa contigo?

- Cheira-me que algo vai acontecer!

- Mas o quê, Homem?

- Alguma tragédia que o Mar trará…

- Deixa-te de tolices que assustas os miúdos!!

 

Passada esta curta troca de palavras e de afectos, Joaquim começou a fazer os preparativos para a sua longa jornada de labuta. Juntou os seus pertences, alguma roupa e alguns enlatados para a sua viagem aos Mares Nórdicos. Entretanto, Quim, como era conhecido no seu círculo íntimo, saiu para ir ao café, junto às Ribas, despedir-se dos amigos com quem se costumava encontrar, com frequência. De facto, o companheirismo, a solidariedade e a união fraterna eram traços bem característicos da comunidade piscatória. Antes de embarcar, Joaquim, cristão devoto, passou pela Capela de Santo António para rezar uma prece, rogando a Nossa Senhora da Boa Viagem uma jornada tranquila às águas do “Bacalhau”.

 

Ao início do dia seguinte, transcorria o ano de 2011, dirigiu-se com alguns companheiros ao Porto de Peniche, de onde iria sair o barco que os levaria à pescaria do “fiel amigo”. Joaquim, mal o barco entrou no Oceano Atlântico, benzeu-se pedindo a Deus uma viagem tranquila, pois, apesar da sua longa experiência, o respeito que as vagas marítimas lhe mereciam faziam-no ter recorrentemente este gesto simbólico. Nos primeiros dias a viagem correu sem sobressaltos, no entanto na segunda semana de viagem houve um dia em que tiveram de enfrentar uma violenta tempestade que provocou vagas alterosas. A união e a proficiência deste grupo de pescadores eram bem visíveis neste tipo de situações, além de que o barco era bem resistente. 

 

A dada altura o timoneiro solta um brado aflito da ponte de comando:

- Há navio a naufragar a estibordo!

Diz a tripulação em uníssono:

- Vamos acudir!

- Temos que ter cuidado, mantendo a distância, para não chocarmos com o outro barco em apuros.

- Sim! Mas temos de agir!

- Lancemos os nossos botes e as bóias salva-vidas para os socorrer!

 

Joaquim Zeferino lançando, energicamente, mão destes instrumentos de socorro marítimo, mal o barco se aproximou, arremessou-os para junto dos náufragos. A tempestade rugia, assustadoramente ao mais experimentado pescador, e o mar agitado tornava o barco cambaleante, mas Joaquim habituado a estas lides deu consigo a meditar, instantaneamente, que era nos momentos de tormentas que a unidade do género humano se via, pois que da tripulação que estava a ser resgatada se desconhecia, inclusivamente, a nacionalidade.

 

Após grandes esforços para salvar a tripulação do barco naufragado, tendo sido, ainda, solicitada a ajuda de um navio que navegava nas proximidades, verificou-se que infelizmente tinham perdido a vida três náufragos. Foi, contudo, para Joaquim uma sensação de grande alívio saber que pôde, com os seus camaradas de bordo, salvar algumas dezenas de seres humanos que andavam na faina piscatória.

 

Perguntou-lhes Joaquim na sua inata curiosidade:

- Qual é a vossa nacionalidade? Quel es votre nacionalité? What is your nacionality?

- We are english, from Portsmouth.

Trocadas algumas outras impressões, os náufragos foram abrigados do temporal no interior do barco e procedeu-se ao socorro dos feridos. Foram agasalhados e deram-lhes alguns víveres para recuperarem forças do extenuante sacrifício que se viram obrigados a fazer para conseguirem sobreviver. Logo se combinou com o pessoal do outro navio inglês, alertado, que mal o temporal amainasse se faria o transbordo dos náufragos, uma vez que o barco que submergiu pertencia à mesma companhia do outro navio que respondeu ao pedido de socorro. 

 

Entretanto, a viagem do barco “Nau Catrineta”, assim se chama a embarcação em que Joaquim Zeferino seguia, pôde prosseguir em direcção às terras frias da Noruega, tendo contudo enfrentado, ainda, novas tempestades sem que se tenham verificado novos contratempos de permeio. Feitas as pescarias, ao longo de vários dias, do “fiel amigo”, como é popularmente conhecido o bacalhau pelas mil e uma maneiras de o cozinhar, teve a tripulação oportunidade de regressar à pátria com uma carga muito inferior à esperada. Infelizmente, para Joaquim Zeferino e seus camaradas de labuta, o preço do bacalhau tinha descido, a sua abundante pesca e a constante contaminação dos mares com escórias das explorações petrolíferas tinham tornado estas jornadas a bordo dos bacalhoeiros bastante menos rentáveis.

 

Na viagem, de regresso à pátria, Joaquim Zeferino sentiu uma sensação ambivalente de enormes saudades de Ermelinda, de Paula e de Fernando e, simultaneamente, uma constrangedora decepção por saber que a pescaria tinha sido pouco produtiva. Joaquim, apesar da sua fraca escolaridade, possuía uma lucidez e uma sensatez, invulgares, escoradas numa fé cristã inabalável que lhe apaziguava a alma com laivos de esperança. Por isso, resolveu pensar que esse contragosto se recomporia.

 

No meio deste turbilhão emocional, Joaquim e seus companheiros foram recebidos em apoteótica recepção, da parte da comunidade piscatória Ericeirense e das entidades locais, porque desta vez os pescadores da Ericeira desembarcaram na praia das Ribas e os restantes seguiram viagem até ao porto de Peniche. Assim, as pessoas que os recebiam manifestavam uma particular comoção pelo heroísmo e bravura com que estes humildes pescadores salvaram, no meio de uma violenta tempestade em pleno Oceano Atlântico, dezenas de náufragos estrangeiros. Joaquim, pela sua alma generosa, cheia de uma doce bondade, sempre foi acarinhado nesta terra de sãs convivências, mas o seu prestígio de homem de bem, de coragem e de boa vontade cresceu com a circulação desta notícia na Ericeira e nas suas imediações.

 

No entanto, as marés da vida de Joaquim estavam longe de ser amenas, quase parecendo as marés vivas oceânicas que tanto conhecia e respeitava. Os fracos resultados da venda do bacalhau levaram o Mestre e dono da embarcação “Nau Catrineta” a confessar a Joaquim que teria, com grande probabilidade, de diminuir os salários da sua tripulação.

 

O nosso personagem, oprimido com a notícia, propôs-lhe com grande angústia que pagasse os salários combinados, mas que, no limite, se fosse preciso vendesse a sua embarcação, dado que o negócio da pesca e a salga do bacalhau estava pelos “mares da amargura”. Este prudente conselho, de Joaquim a Mestre André, convenceu-o. Assim, poucos dias após esta conversa franca, Mestre André vende o seu barco e num gesto inusitado paga aos seus assalariados um montante bastante inferior ao acordado, o que deixa Joaquim e os seus companheiros muito indignados e revoltados com esta injusta atitude. Joaquim, homem de bom coração e de redobrada reputação devido ao seu heroísmo, incita os seus companheiros, com o apoio do sindicato dos pescadores, a iniciarem uma judicialização da contenda.

 

Nesta altura, Joaquim Zeferino, com 52 anos de idade, tem de enfrentar uma ingrata situação de desemprego, mas graças ao seu prestígio ético e aos biscates que faz consegue ir sobrevivendo sem desesperar. Vale-lhe ainda, neste tempo de penúria, a mão amiga dos seus familiares, dos seus irmãos, que lhe dão o apoio financeiro para se amanhar no sustento do seu “doce lar”.

 

O nosso protagonista, cheio das suas férreas convicções, apesar do abatimento moral resultante do desemprego e da necessidade de aceitar as ajudas familiares, não abdica da reivindicação dos legítimos Direitos, seus e dos respectivos companheiros, de ser ressarcido das trafulhices do seu patrão e incita-os à resolução judicial da injustiça cometida. Esta sua fibra moral é muito admirada pelos seus amigos, pela Ermelinda, pela Paula e pelo Fernando que o acarinham pela sua abnegação cívica a favor dos legítimos Direitos dos pescadores lesados.

 

Este momento de crise laboral foi para Joaquim Zeferino bastante reconstrutivo, pois pelo seu bom coração tornou-se rendeiro de um proprietário rural com terras em Mafra, dedicou-se à realização de biscates e pôde empenhar-se como voluntário em obras de beneficência social promovidas pela Igreja de São Pedro, da Ericeira. Esta situação apaziguou o seu espírito generoso por poder, num tempo de uma violenta crise económica, nacional e internacional, garantir uma subsistência digna e, ao mesmo tempo, poder concretizar uma obra social a favor dos seus semelhantes mais próximos. Todavia, foi do seu íntimo que lhe brotou essa satisfação e não tanto das formas exteriores de reconhecimento, uma vez que o fez por convicção e por um sentimento de profunda compaixão para com os seus conterrâneos.

 

Nuno Sotto Mayor Ferrão

 

 

Monumento ao bacalhoeiro – Freguesia de Lavos (Figueira da Foz)

MANOEL DE OLIVEIRA: UM CINEASTA COM UMA VISÃO HUMANISTA UNIVERSAL

 

Manoel Cândido Pinto de Oliveira nasceu no Porto, a 11 de Dezembro de 1908, no seio de uma família da burguesia industrial nortenha que possuía fábricas em diversos sectores: têxtil, das lâmpadas eléctricas e da produção hidroeléctrica. É, na actualidade, o mais velho cineasta do mundo, tendo celebrado o seu centésimo segundo aniversário no final do ano que passou (2010). Aos 19 anos começou a trabalhar, auxiliando o pai, na indústria e na gestão agrícola de propriedades rurais. Ao mesmo tempo, cultivou uma vida boémia e de enriquecimento cultural frequentando tertúlias literárias. Nos primeiros anos de vida alcançou alguma notoriedade pública como um infatigável desportista, cultivando diversas modalidades como a ginástica, a natação, o remo, o atletismo e o automobilismo, tendo sido campeão de salto à vara e ganho uma corrida de automóveis.

 

Foi um prolífero cineasta que se dedicou à criação de documentários etnográficos e de filmes poéticos que geraram celeuma pública e reconhecimento da crítica internacional. Estes filmes poéticos, de rara beleza, que constituem o cerne do seu estilo cinematográfico caracterizam-se pelos longos diálogos em prejuízo da acção dos personagens, mas são reveladores de cenários históricos ou sociais onde perpassam íntimas subjectividades. Com efeito, a mensagem poética dos seus filmes valorizadora dos diálogos teatrais, repare-se na cena aqui reproduzida do filme “Non ou a vã glória de mandar” (1990), em ritmo lento constituem ecos ressonantes que se instalam no Espírito do espectador mais atento.

 

Efectivamente, houve três factores biográficos que marcaram este seu cunho cinematográfico. Em primeiro lugar, os filmes que o pai o levou a ver de Charles Claplin e de Max Linder. Em segundo lugar, a sua convivência com escritores como José Régio e Agustina Bessa-Luís e a leitura das Cartas de São Paulo, talvez por ter passado por um colégio de Jesuítas na Galiza, que se repercutiu na sua mentalidade fortemente espiritual. Em terceiro lugar, a sua formação artística inicial, nos anos 20, onde frequentou uma escola de actores, fundada pelo cineasta italiano Rino Lupo na cidade do Porto, e a sua participação em 1933 no filme sonoro português intitulado “A Canção de Lisboa” do cineasta e arquitecto Cottinelli Telmo.

 

Afigura-se-nos que devido ao retrato antropológico, demasiado próximo das correntes do Neo-Realismo, imprimido à sociedade portuguesa no seu clássico filme Aniki-Bobó (1942) e nos seus documentários etnográficos, por exemplo no filme “Douro, Faina Fluvial” (1931), foi preterido pelo regime do Estado Novo que mediante o Fundo do Cinema não lhe reconheceu talento no quadro dos pressupostos ideológicos Salazaristas, dando antes preferência ao estilo da comédia popular que entretinha a população portuguesa. Em 1962 quando rodava o filme “O Acto da Primavera” foi detido pela PIDE, durante alguns dias, devido a alguns diálogos da película que geraram inquietação nos agentes do regime.

 

A sua carreira cinematográfica só ganhou um ritmo alucinante, em contraposição ao ritmo das suas películas, com a sua consagração internacional, a partir dos anos 60, com os reconhecimentos da crítica cinematográfica, francesa e italiana, e com o desabrochar do regime de liberdades instaurado com a Revolução do 25 de Abril de 1974 que lhe permitiu a liberdade criativa para produzir uma obra que é parte integrante do Património Cultural definidor da identidade portuguesa. Assim, durante o regime do Estado Novo realizou apenas três longas-metragens e com o regime democrático fez vinte e sete longas-metragens. O reconhecimento internacional adveio dos Prémios de alguns Festivais de Cinema que tem recebido e dos mediáticos actores estrangeiros que colaboraram em alguns dos seus filmes (Catherine Deneuve, Marcello Mastroianni, John Malkovich, Lima Duarte, etc).


É indeclinável que alguns actores portugueses amadureceram nos seus filmes (Luís Miguel Cintra, Leonor Silveira, Diogo Dória, Rogério Samora, etc.). Manoel de Oliveira acabou de realizar a sua última curta-metragem, no final de 2010, com uma homenagem à Cultura Portuguesa intitulada “Painéis de São Vicente de Fora, Visão Poética”. O seu reconhecido papel como criador cultural fê-lo liderar um grupo de personalidades ligadas à Cultura Portuguesa que receberam o Papa Bento XVI em Lisboa no Centro Cultural de Belém. Com estes gestos simbólicos, de plena lucidez, quis-nos transmitir a noção de que a sua obra está recheada de um Humanismo Universalista que pode e deve fazer irradiar o espírito lusófono de abertura ao mundo.

 

Nuno Sotto Mayor Ferrão

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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