Crónicas que tratam temas da cultura, da literatura, da política, da sociedade portuguesa e das realidades actuais do mundo em que vivemos. Em outros textos mais curtos farei considerações sobre temas de grande actualidade.
Crónicas que tratam temas da cultura, da literatura, da política, da sociedade portuguesa e das realidades actuais do mundo em que vivemos. Em outros textos mais curtos farei considerações sobre temas de grande actualidade.
As áreas da educação, da política e do futebol confrontam-se, sempre, com a análise dos processos e dos resultados da parte de leigos e de especialistas. Muitas vezes acontece que os analistas e os decisores tomam partido por uma perspectiva de análise que valoriza os resultados em detrimento dos processos devido à predominância da mentalidade pragmática[1]. Segundo este pensamento, o critério da verdade é a utilidade prática das técnicas educativas, das medidas políticas ou das tácticas de jogo.
Num mundo crescentemente tecnocrático, com parâmetros econométricos que submergem os outros critérios de avaliação, não admira a importância excessiva que é dada aos resultados educativos, políticos e futebolísticos. Nas leituras apressadas, desta Era da Globalização, sempre que os resultados são frustrantes abrem-se crises. No entanto, como é sabido, a verdadeira crise actual reside no esquecimento de valores morais que devem reger as condutas humanas.
Na verdade, tem de se encontrar um meio-termo, dificilmente quantificável, de análise que pondere os processos e os resultados, pois irei dar dois exemplos relativos à desvalorização deste princípio basilar. Nem sempre é fácil atingir em educação este meio-termo, daí que o Professor Nuno Crato[2] tenha andado a criticar, aquilo que o Professor Marçal Grilo chamou de “eduquês”, as modernas pedagogias românticas de darem demasiado destaque aos processos educativos construtivos baseados nos sujeitos das aprendizagens. Com efeito, só através de uma dose de Humanismo e de Pragmatismo se pode alcançar este meio-termo nas práticas pedagógicas, porque nos devemos recordar que a pedagogia exige arte, ciência e técnica. Se centramos a pedagogia na ciência visamos, mormente, os resultados de aprendizagem, mas se centramos a pedagogia na arte visamos, sobretudo, os processos de aprendizagem. De forma que, o grande desafio que se abre à Educação Internacional, à revelia desta Era Tecnocrática, é a de conseguir um equilíbrio entre os processos e os resultados educativos.
A hegemonia da corrente pragmática nesta era da Globalização tem favorecido o ataque especulativo aos países criativos de matriz Latina, ou de influência católica, em 2010-2011 (Grécia, Irlanda, Portugal, Espanha, Itália e Bélgica). De facto, mais uma vez, é a pressão dos resultados e a depreciação da capacidade criativa destes povos e da sua rica herança cultural que está em questão. Ora o destino da moeda única Europeia (o Euro), e da própria União Europeia, não pode depender da adopção de um padrão cultural comum que garanta a concretização de resultados financeiros, porque a riqueza da Europa é, precisamente, a sua diversidade de costumes, de tradições e de culturas. Este é, pois, o desafio incontornável que se abre à Europa neste momento de crise financeira.
Um bom exemplo desta dicotomia ideológica foi o Campeonato da Europa 2004, realizado em Portugal, em que a selecção portuguesa dirigida por um brasileiro, Luiz Felipe Scolari, foi vencida na Final pela selecção grega dirigida por um alemão, Otto Rehhagel, que conquistou o título de selecção campeã Europeia de Futebol nesse ano. Enfrentaram-se dois estilos de futebol: o grego, germanizado, que adoptou um estilo pragmático à procura de resultados e o português que adoptou um estilo artístico, baseado na “posse de bola”, que buscou os processos que encantaram milhões de espectadores em todo o mundo, mas que claudicou frente ao Hércules grego possuidor de um estilo de jogo “sem arte, mas com engenho”.
O Futebol Clube de Barcelona, na Europa em 2010-2011, é o modelo de futebol síntese que conseguiu conciliar os resultados desportivos com os processos futebolísticos, que deram um grandioso espectáculo ao mundo, comandados pelo catalão Josep Guardiola i Sala. Este edificante exemplo deve servir de inspiração, na Educação e na Política, para que se pense, concomitantemente, nos processos e nos resultados, no sentido de se superarem estes estrangulamentos da crise destes sectores da vida colectiva global, que mais não são do que um reflexo da crise de valores que atravessa a História da Humanidade no início do século XXI. Em suma, o Futebol Clube de Barcelona por se ter alavancado nos três pilares interdependentes (a arte, a ciência e a técnica) proporcionou ao mundo um futebol magistral que obteve resultados estratosféricos com processos artísticos moldados na consabida criatividade catalã.
Nuno Sotto Mayor Ferrão
[1] O pragmatismo como corrente filosófica nasceu nos EUA com o pensamento do filósofo William James (1842-1910).
Estas breves considerações alicerçam-se em alguns dados estatísticos que recolhi no útil site “Pordata” e analisei com algum cuidado. Embora a temática não seja inédita, julgo que desvendo alguns dados interessantes e algumas questões dignas de reflexão.
A Cultura humanista no nosso país e na Europa, nas últimas décadas, tem sido alvo da opressão dominante do paradigma tecnocrático dos políticos actuais e de outros factores sistémicos, que irei referir. O drama da empregabilidade tem reduzido os candidatos estudantis com vocação para as Humanidades, o que se tem revelado um problema, dado que as perspectivas humanistas têm sido secundarizadas e com estas condicionantes perde-se, nas nossas sociedades, sob pressão dos consumismos materialistas, a noção da necessidade da formação integral do Ser Humano[1].
A crise das Humanidades acompanha o esquecimento a que público português tem votado a Biblioteca Nacional de Portugal. Vejamos que, nos dados abaixo apresentados, não obstante o número de livros disponíveis tenha sido multiplicado por cinco (por arredondamento), o número de leitores, tendo variado neste período em estudo, permanece em cifras bastante idênticas comparando os números de leitores de 1960 e de 2008 (respectivamente 41.304 e 42.453).
Desta forma, o aumento da escolaridade da maioria da população portuguesa (sucessivamente de 4 anos do ensino primário, 6 anos do ensino primário e preparatório, 9 anos dos três ciclos do ensino básico até aos 12 anos previstos actualmente pelo Estado Português) tem conduzido a menores níveis de literacia, devido a uma complexidade de factores, como afirmam até à exaustão o fiscalista Henrique de Medina Carreira e o matemático Nuno Crato no programa “Plano Inclinado” da SIC-Notícias. Em suma, a democratização do ensino tem gerado mais pessoas escolarizadas, com mais anos de frequência escolar, mas menos capacitadas para ler, pensar, calcular e escrever com facilidade e correcção.
A imprensa acompanha estes baixos índices de literacia dos portugueses, uma vez que os jornais têm aumentado os seus leitores à custa dos diários gratuitos, da diminuição da densidade informativa e do aumento do espaço destinado às imagens que tornam mais apelativa a leitura a todos os portugueses. Com efeito, aumentam os recursos e os meios de informação e de divulgação da cultura, mas diminui a qualidade dos serviços prestados.
O fenómeno tecnocrático das nossas sociedades tem correspondência com a falta de formação ideológica dos nossos cidadãos que tem esvaziado as democracias Ocidentais do exercício da plena liberdade dos cidadãos pela força da “musculatura técnica”, naquilo a que os politólogos designam por “democracias musculadas”. Ora este facto tem potenciado o crescente divórcio entre os cidadãos e os políticos[2], porque os primeiros sentem que as suas escolhas contam pouco e que tudo já está, mais ou menos, predeterminado pelos constrangimentos das instituições comunitárias e das instituições financeiras.
As políticas culturais portuguesas, das últimas décadas, têm investido em equipamentos e infra-estruturas que concorrem para potenciar a democratização da cultura, mas convém reparar no facto do número de Bibliotecas crescer mais significativamente do que o número dos seus utilizadores. Em 1960 as Bibliotecas do país não chegavam a uma centena, enquanto em 2003 ultrapassavam já um milhar, tendo crescido 11.4 vezes. No mesmo período, o número de utilizadores situava-se em 1960 abaixo de um milhão de utilizadores, enquanto em 2003 o número de utilizadores pouco passava dos oito milhões e meio, tendo crescido 9 vezes[3].
Com efeito, tem havido uma efectiva democratização da cultura com o aumento do número de livros publicados e com idêntico fenómeno ao nível do número de edições e tiragens anuais das publicações periódicas, mas este aumento tem correspondido a critérios comerciais, ou seja, a oferta livreira tem aumentado devido às operações de “marketing” e aos títulos sensacionalistas que permitem grandes tiragens. Exemplo emblemático, desta tendência, foi o livro de Carolina Salgado que teve uma tiragem excepcionalmente elevada[4].
A publicação de livros entre 2000 e 2008, segundo os dados estatísticos que consultei, de acordo com os registos de títulos no Depósito Legal tem um crescimento anual de 3,3%, tendo os valores absolutos passado de 14066 em 2000 para 17778 em 2008. Assim, afigura-se-me que, eventualmente, tenham ocorrido tiragens maiores e mais edições de “best sellers nos últimos anos”, contudo a maioria das vezes prevalece a lógica econométrica de mercado de uma sociedade devassada pela iliteracia de consumos e gostos culturais qualitativamente questionáveis.
Em suma, tem-se verificado um avanço exponencial da cultura de massas em Portugal entre 1960 e 2008 com a construção de grandes espaços comerciais a venderem livros em quantidades impensáveis, com os espectáculos de música, dança, variedades a serem frequentados hoje em dia pela maioria da população, enquanto em 1960 estes espectáculos ao vivo eram muito raros e os espectadores, pelo restrito número, pertenciam às classes médias e às elites. Este fenómeno é, claramente, louvável, mas urge passar a outra etapa do amadurecimento das democracias europeias.
A solução para a iliteracia e para se superar a apatia política dos cidadãos passa por revalorizar os agentes e os estabelecimentos culturais que nos apresentam produtos de qualidade literária, estética e filosófica, porque, como muito bem diz o Dr. Mário Soares num excelente ensaio de história política, urge encontrar um novo paradigma político-cultural[5] que permita à Humanidade responder à ingente crise múltipla que as nossas sociedades nesta Era da Globalização Neoliberal enfrentam.
Acrescento, em conclusão, que só com o ressurgimento das Humanidades será possível encontrar esse novo paradigma que permita uma formação mais sustentada dos cidadãos no plano das suas bagagens culturais e das suas consciências éticas. Será, pois, com um renovado modelo político-cultural, de que deve fazer parte o combate, sem tréguas, à iliteracia e o desassombrado impulso às Humanidades, que será possível responder aos grandes desafios do presente e do futuro, pois só com estas variáveis será exequível, ao país e ao mundo, salvaguardar a formação integral dos cidadãos e a plena preservação do nosso “habitat” natural rumo a mundo melhor.
Nuno Sotto Mayor Ferrão
Anexo - dados extraídos do site Pordata
Biblioteca Nacional: livros e leitores
Livro
Indivíduo
Tempo
Livros
Leitores
1960
469.644
41.304
1961
476.345
34.867
1962
480.531
33.861
1963
488.972
32.502
1964
500.508
28.928
1965
505.675
30.983
1966
515.276
16.696
1967
533.998
17.557
1968
551.997
14.730
1969
561.702
13.400
1970
568.333
31.238
1971
582.253
38.367
1972
595.236
42.982
1973
608.764
37.489
1974
628.479
34.838
1975
658.585
58.232
1976
675.151
83.107
1977
693.060
67.219
1978
711.416
71.018
1979
728.711
65.104
1980
753.388
55.546
1981
773.984
56.301
1982
793.651
60.142
1983
816.437
36.638
1984
1.022.743
36.906
1985
2.026.763
53.286
1986
2.055.457
70.528
1987
2.084.991
67.780
1988
2.106.207
68.604
1989
2.139.644
65.099
1990
2.153.324
43.433
1991
2.175.385
40.492
1992
2.198.505
64.142
1993
2.222.436
64.484
1994
2.242.869
68.863
1995
2.260.420
70.548
1996
2.282.409
67.209
1997
2.303.996
61.054
1998
2.325.174
66.082
1999
2.348.660
x
2000
2.391.554
69.341
2001
2.415.429
62.454
2002
2.489.018
57.764
2003
2.505.074
58.546
2004
2.519.626
52.782
2005
2.533.067
49.193
2006
2.552.427
52.629
2007
2.593.837
43.386
2008
2.643.570
42.453
Fonte de Dados: BNP Fonte: PORDATA Última actualização: 2010-02-22 13:21:21
[1] Bento XVI, Encíclica – Caridade na verdade, Prior Velho, Edições Paulinas, 2009, pp. 109-120.
[2] Vide A nova primavera do político, org. Michel Wievieorka, Lisboa, Editora Guerra e Paz, 2007. Este livro que recolhe o contributo de vários intelectuais europeus fala, precisamente, do afastamento entre os cidadãos e os políticos e da premente necessidade de reabrir o debate para a indispensável reinvenção do “Welfare State”.
[3] Segundo os dados disponibilizados pelo site “Pordata”, cuja iniciativa pertenceu a António Barreto: em 1960 existiam no país 89 Bibliotecas e em 2003 já se contabilizaram 1018, enquanto o número de utilizadores no mesmo período passou de 957 113 para 8 641 276.
[4] Carolina Salgado e outros, Eu, Carolina – A história verdadeira, Lisboa, Edições Dom Quixote, 2006.
[5] Mário Soares, Elogio da política, Lisboa, Sextante Editora, 2009, pp. 80-87.