O FILME “O PÁTIO DAS CANTIGAS” (1942) COMO DOCUMENTO HISTÓRICO E CÍVICO-ALEGÓRICO DE GRANDE ATUALIDADE
No filme “O Pátio das Cantigas” (apresentado a 23 de janeiro de 1942, produção de António Lopes Ribeiro, Tobis Portuguesa), aparecem várias cenas de violência e de agressão, sendo possivelmente alegóricas à 2ª Guerra Mundial em curso, em 1942, para mais quando “Vasco Santana” na cena de desacato generalizado no final do filme dirige as crianças para uma “cave”, como os cidadãos das cidades bombardeadas se escondiam, na altura, em “bunkers”.
Sintomático é quando o personagem encarnado por “Vasco Santana” afirma às crianças “aqui podem ficar sossegadas” debaixo de uma tarja que tinha a inscrição Salazar, ironizando talvez o discurso do Estado Novo que dizia que Portugal era um paraíso, enquanto a Europa estava “a ferro e fogo”, numa carnificina sem precedentes em termos de escala global.
Neste momento, em que estamos com várias guerras em diversas partes do mundo, no fim deste primeiro quartel do século XXI, com risco para a Humanidade de se escalar o afrontamento bélico numa dimensão inusitada, de grande perigo para a sobrevivência coletiva, convém refletir sobre os temas éticos com base em obras de arte de grande significado simbólico.
Por esta razão, temos algumas lições a retirar do civismo e das atitudes éticas que nos são propostas neste filme clássico do cinema português, no género da comédia. É uma película com elevado valor de fonte histórica, de grande apreço para os tempos lúdicos e de valoroso documento com uma alegoria simbólica muito relevante.
O filme é muito rico em várias cenas e momentos de agressão:
- o insulto ao inventor “seu idiota perdeu o travão?”;
- os insultos recorrentes do Evaristo ao seu empregado, que detesta, dizendo “Ó seu camelo”;
- Evaristo tenta irritar emocionalmente os vizinhos, ouvindo música de ópera e fazendo troça e depreciando “os analfabetos” do bairro que ouvem fado no pátio;
- o rapaz a “troçar” com o Evaristo, como o faz, o personagem encarnado por “Vasco Santana” ao dizer “Ó Evaristo, tens cá disto ?” e a provocar a irritação exacerbado do mesmo;
- o personagem de “Vasco Santana” a destratar o rapaz manso que esteve a pedir dinheiro pelo Santo António para alguns doces, dizendo “seu caixa de óculos”;
- quando num ardil manipulador o personagem de “Vasco Santana” por “dor de cotovelo” retira o belo manjerico ao Evaristo, depois deste o ter destratado também com menosprezo diante de D. Rosa;
- quando Amália numa atitude verrinosa na dança abre o fecho do vestido da filha do Evaristo, que estava a dançar com o ex-namorado (“o Don Juan do pátio”);
- o desentendimento generalizado, cruzado, durante o baile da noite de Santo António com agressões físicas várias e confusão generalizada na festa de rua por causa dos namoricos, ou por outras palavras, desacato, simbolizando alegoricamente a 2ª guerra mundial que estava a decorrer;
- nesta alusão à guerra “Vasco Santana” (o protagonista) aparece com um balão aberto na cabeça, como se fosse um capacete, e outras figuras aparecem com pratos virados ao contrário simulando alegoricamente a guerra que estava a decorrer;
- a violência machista do vizinho a namorar a Amália e a irmã num “cliché” de engatatão, típico das sociedades conservadoras, que colocavam as mulheres em casa num estatuto de inferioridade como aparece num dos emblemáticos cartazes propagandistas designado “Lição de Salazar”;
- a situação do roubo e da agressão ao avô da Amália na Rua da Madalena, em Lisboa;
- quando Rufino, aparece ébrio ao pai, a dizer-lhe de forma simbólica e irónica (numa “afronta” aos censores da Inspeção Geral de Espetáculos) que “beber vinho é dar pão a um milhão de portugueses”.
A chegada da filha de D. Rosa do Brasil é motivo de regozijo coletivo e de concórdia entre os protagonistas, permitindo a harmonia social no bairro do Pátio das Cantigas e a gratidão da D. Rosa a todo o bairro, fazendo lembrar a ânsia da Paz e da renovação de um organismo de tutela da paz internacional depois do descalabro da Sociedade das Nações e das duas guerras mundiais catastróficas.
É feito um apelo de D. Rosa a Narciso Pai para se regenerar, deixando o álcool, e colaborar na paz e na concórdia dos vizinhos e na harmonia do bairro, ultrapassando pequenas e insignificantes quezílias.
O namoro entre a brasileira e Rufino português pode ser visto como um apelo à concórdia entre os povos, num momento de conflito bélico da Humanidade – a 2ª guerra mundial (1939-1945).
A salvação de Carlos, o prisioneiro dos calabouços do “Torel”, pelo conluio de todos os habitantes do bairro que se protegem uns aos outros, como forma de se conseguir a paz e a concórdia que se almejava no mundo em guerra, neste caso no bairro do Pátio das Cantigas em pé de guerra. No fim do filme, estabelece-se a harmonia social no bairro com a Festa Popular de S. João, desejando-se que a paz e a concórdia no mundo chegassem rapidamente.
Nuno Sotto Mayor Ferrão