Crónicas que tratam temas da cultura, da literatura, da política, da sociedade portuguesa e das realidades actuais do mundo em que vivemos. Em outros textos mais curtos farei considerações sobre temas de grande actualidade.
Crónicas que tratam temas da cultura, da literatura, da política, da sociedade portuguesa e das realidades actuais do mundo em que vivemos. Em outros textos mais curtos farei considerações sobre temas de grande actualidade.
As notáveis Memórias autobiográficas de Giacomo Casanova (1725-1798) foram, agora, publicadas numa cuidada edição da, recente Editora, Divina Comédia com o título História da Minha Vida – I, numa versão antológica dos textos mais marcantes. Com este livro, a promissora Editora, faz jus ao seu lema “Grandes livros para grandes leitores”, não só em termos quantitativos como qualitativos.
É o primeiro volume desta obra traduzida, para português do francês, pelo consagrado poeta e tradutor Pedro Tamen e comentada pelo especialista Miguel Viqueira, a que se acrescenta uma valiosa cronologia da vida desta figura, incontornável do Século das Luzes, que foi um aventureiro, um intelectual, um diplomata, um viajante que conheceu como ninguém as elites de vários Estados europeus. Assim, foi, também, um trabalhador polivalente que teve inúmeros ofícios.
Giacomo Casanova viveu num contexto marcado por regimes absolutistas, por clamorosas desigualdades sociais e por uma economia de forte pendor agrário. Foi protegido por vários poderosos da aristocracia que o fez defender os interesses estabelecidos do Antigo Regime. Não obstante, tenha lutado contra alguns preconceitos da sua época, no espírito do Iluminismo, tendo prezado a sabedoria filosófica como um valor supremo, independentemente dos pressupostos que preconizou.
A sua fama de aventureiro libertino, que compaginou uma mentalidade racionalista com um pensamento epicurista, surgiu das centenas de edições e das adulterações, daí provenientes, que espalharam e celebrizaram as peripécias deste “galã” sedutor que o projetaram no imaginário colectivo da Europa. No entanto, só em 1993 apareceu a primeira edição integral e crítica desta obra de Casanova que se reúne em milhares de páginas e em vários volumes.
O forte substrato cultural de Casanova procedente das suas significativas leituras clássicas, patenteado numa excelente formação humanística resultante da sua preparação para a carreira eclesiástica e das permanentes leituras que fez ao longo da vida e nos seus 5 anos de prisioneiro nos calabouços da República Veneziana.
A posição de racionalista epicurista que assumiu levou-o a criticar as convicções espirituais mais contemplativas ou intolerantes. Atente-se na seguinte passagem elucidativa: “(…) Aquele livro imprimira-se com permissão da Inquisição. E eu não caía em mim de pasmo. Aquela obra, bem longe de aumentar ou de acender fervor no meu espírito, ou zelo religioso, deixou-me tentado a considerar fabuloso tudo o que consideramos místico e também dogmático.”(…)”[1]
As Memórias, escritas no fim da vida, destacam-se pela qualidade descritiva que nos relatam a vida, a mentalidade e os costumes aristocráticos do século XVIII. Esta capacidade intelectual emerge nestes escritos, na faceta de literato, na habilidade de discutir fundos argumentos filosóficos no contacto com pensadores como Rousseau ou Voltaire, esgrimindo ideias com eles.
Pretendeu, no fim da vida, tornar-se um Académico reconhecido pelos intelectuais, da altura, com estudos de Matemática e de Geometria, mas não o conseguiu concretizar. Deste modo, percebe-se, “avant la lettre”, a sua perspicácia ao aflorar, implicitamente, temas como a inteligência emocional ou a diversa natureza da mulher e do homem.
Em múltiplos episódios da sua vida descreve-nos, com sageza, aventuras eróticas, a fuga da prisão ducal de Veneza, as missões diplomáticas, as conversas filosóficas que manteve que lhe aprofundaram a capacidade de ação e a acutilância crítica do seu pensamento contra-revolucionário, moldado pelos pressupostos políticos do Antigo Regime quando se afirma de forma inequívoca contra os princípios democráticos: “(…) O povo, enfim, não passa de um animal de enorme tamanho que não raciocina. (…)”[2].
Em síntese, este livro de Memórias de Giacomo Casanova é uma inestimável obra-prima literária que vale bem a pena ler, nesta grande antologia que a Editora Divina Comédia com muita felicidade nos apresenta, neste ano de 2013, em língua portuguesa. A mentalidade racionalista e epicurista sobressai nos ideais Iluministas, expressos nos diversos filósofos que cita (Voltaire, Rousseau, Montaigne, etc) e nas aventuras libertinas que protagoniza, que está bem patente na discussão mantida com Voltaire, a propósito do modelo de governação e da liberdade dos cidadãos, que nos descreve no final deste primeiro volume. Aguardamos, pois, com infinda curiosidade a saída do segundo volume desta magnífica antologia das Memórias de Casanova.
[1] Giacomo Casanova, História da minha vida, vol. I, Lisboa, Divina Comédia Editores, 2013, p. 373.
A exótica beleza da cidade de Veneza (Venezia) reside no facto de estar construída sobre bancos de areia desde a Idade Média. Como contrariedade cíclica é afetada por inundações recorrentes (como as que se verificaram na primeira quinzena de novembro de 2012) que têm aumentado de volume com o degelo do “aquecimento global”, decorrente das alterações climáticas.
Não obstante, o ritmo Veneziano está, ainda hoje, cadenciado pelas travessias dos “vaporettos”, dos barcos e das gôndolas que atravessam o grande canal e, no caso destes, os pequenos canais, não sendo muito diferente do ritmo de vida do século XVIII, com exceção feita aos magotes de turistas que acorrem à cidade e, em especial, à “Piazza San Marco”. Contudo, nos locais mais interiores da complexa e labiríntica rede urbanística, andando a pé ou de gôndola, pode sentir-se o ritmo tranquilo do romantismo que pulsa por toda a urbe, fazendo convergir para este local muitos casais de apaixonados.
O romantismo é potenciado pelos monumentos e momentos artísticos que nos atropelam em muitas esquinas da cidade, com edifícios antigos de rara beleza e com músicos espontâneos que surgem na “Piazza di Roma” ou a bordo de alguma gôndola. Os transeuntes revelam uma simpatia “sui generis” para com os casais apaixonados, que não se sente com facilidade em outras paragens turísticas, porque o tempo está mais ajustado aos batimentos sentimentais do coração. Nas suas ruelas castiças pode ouvir-se o chilrear dos pássaros, o movimento das águas, o sussurrar do vento nas árvores, mas, seguramente, a chinfrineira urbanística, insuportável das buzinas das grandes metrópoles, está arredada para a parte nova da cidade - Veneza Mestre.
Veneza teve historicamente o seu auge no tempo dos Doges (magistrado supremo do Estado), mormente na Idade Média, quando foi capital da “Sereníssima República de Veneza” que conseguiu expandir um vasto império comercial sobre o Mediterrâneo oriental, controlando as rotas do Levante que traziam as riquezas do oriente, antes dos Descobrimentos Marítimos dos Portugueses terem inaugurado a rota do Cabo. Símbolo desta abertura cosmopolita ao oriente foi a famosa viagem, de reconhecimento da rota da Seda, do Veneziano Marco Polo, que deu nome ao aeroporto da cidade.
No decorrer desta dinâmica histórica, a cidade foi perdendo o seu estratégico poder de charneira Civilizacional entre o Ocidente e o Oriente, que se plasma em muitos pormenores da arquitetura religiosa veneziana marcados pelo bizantinismo decorativo. Esta degenerescência da antiga opulência aristocrática, dos múltiplos palácios que se espraiam ao longo do grande canal, levou a que Napoleão Bonaparte (1769-1821) a conquistasse no fim do século XVIII e no terceiro quartel do século XIX tenha sido integrada no reino de Itália.
O patrono da cidade é São Marcos, pois as suas relíquias trazidas de Alexandria permitiram edificar a grandiosa Basílica que constitui um dos “ex-libris” da “citá”. O “Palazzo Ducale”, residência oficial dos Doges, apresenta em muitas das suas pinturas referências ao santo e uma monumental pintura Renascentista de Jacopo Tintoretto, ao mesmo tempo que o chão estremece ao ritmo dos passos do visitante. É, pois, um monumento recheado de obras de arte que embasbacavam os diplomatas estrangeiros. Deste modo, percebe-se, em função de todo este manancial de bens culturais que pululam na cidade, a sua classificação pela UNESCO de Património Mundial da Humanidade.
Na atualidade, Veneza é famosa pelo seu Carnaval aristocrático, com as suas máscaras luxuosas feitas por artífices especializados, pelo seu Festival de Cinema onde a cinematografia de Manuel de Oliveira tem ecoado pelos argumentos poéticos. A Bienal das Artes é, também, um certame que tem dado projeção mediática à cidade, porquanto os motivos artísticos e os cenários estéticos, de inigualável beleza, interpelam os visitantes a cada recanto da cidade. Uma outra marca forte da urbe é o conjunto de sinais de uma imensa religiosidade, com as suas múltiplas igrejas e nichos exteriores de santos, que comunica serenamente com os passeantes que sentem ter todo o tempo do mundo e se escapam da fúria competitiva, da Globalização desregulada, centrada no fazer e no ter do produtivismo imoderado.
Algumas figuras históricas, naturais de Veneza, concorreram para projetar internacionalmente a singularidade desta povoação pela forte marca identitária das suas ruas serem tracejadas pelas águas do Adriático. Destacam-se nesta panóplia de personalidades de renome mundial os Papas Gregório XII e Pio X (1876-1958), os pintores Jacopo Tintoretto (1518-1598) e Giovanni “Canaletto” (1697-1768), o galanteador Giacomo Casanova (1725-1798), o viajante Marco Polo (1254-1324) e o prodigioso compositor António Vivaldi (1678-1741).
Em suma, trata-se de uma cidade que permite usufruir aos seus utentes uma inexcedível qualidade de vida, pelas suas abundantes obras de arte e locais pitorescos, apesar dos incómodos frequentes das cheias que provocam aos seus habitantes e turistas algum receio. É, pois, um bom modelo para se repensar o paradigma de Globalização, em que vivemos, e “ipso facto” recomendo vivamente uma visita a todas as pessoas de coração romântico que se afastam do ritmo tecnocrático imposto pela ideologia ditatorial dos mercados (“teologia de mercado” na expressão justa do pensador Adriano Moreira).