A FÉ E A CIÊNCIA – LINGUAGENS ANTAGÓNICAS OU COMPLEMENTARES? – UMA ABORDAGEM DO PASSADO AO PRESENTE
No Diário de Notícias, no início do século XXI, Eduardo Prado Coelho, intelectual ateu, e D. José Policarpo, patriarca de Lisboa, deram corpo e espírito a um diálogo aceso em torno dos temas da Fé nos dias de hoje, que acabou por se transformar num livro[1] que reuniu as cartas que os dois trocaram publicamente.
Num mundo em que a Ciência está em crise no seu paradigma de um conhecimento sistémico da realidade, uma vez que o “neopositivismo” nos revelou uma imensa fragilidade científica face à complexidade do mundo e do cosmo. Nesta medida, podemos compreender a abertura do genial cientista Albert Einstein ao transcendente, porque acreditou que todos os cientistas têm de perceber que só Deus, ou o Absoluto na linguagem Hegeliana, poderá ter criado a ordem do nosso universo.
Se os pensadores do Iluminismo contribuíram no Ocidente, desde o século XVIII, para o desgaste das crenças religiosas e cristãs, a verdade é que, desde a Pré-História, o Homem sentiu necessidade de criar uma linguagem religiosa, porque as condições básicas da sobrevivência eram-lhe claramente insuficientes, ou como nos diz a Sagrada Escritura na popular expressão: “nem só de pão vive o Homem”.
Terá sido Galileu Galilei, no século XVII, um dos primeiros a compreender que seria possível interpretar a Bíblia à luz dos novos conhecimentos científicos.
No início do século XX, a Ciência enfrentou uma crise de confiança ao perceber que a simples racionalidade era insuficiente para explicar a totalidade do homem e do universo, daí a valorização consequente de outros códigos de comunicação e de interpretação como as intuições, os impulsos e as emoções, ao ponto de, no final do século XX, ter surgido o conceito de “inteligência emocional” com Daniel Goleman e António Damásio.
Hoje em dia, mais do que nunca, é necessária uma frutuosa colaboração entre a Ciência e a Fé para fazer os homens apropriarem-se das suas múltiplas dimensões de sabedoria que implicam a revalorização das Humanidades, porquanto o actual Homem, “economicus” ou “pragmático”, em que se alicerça a Globalização, tem um espírito infinitamente estreito.
Por outras palavras, tanto a Fé deve estar atenta aos progressos científicos como a Ciência deve estar aberta aos postulados da Fé para que não exista uma cisão artificial dos diferentes conhecimentos.
No contexto da Revolução Científica do século XVII, não obstante a condenação de Galileu pelo Tribunal da Inquisição houve membros eclesiásticos que não o criticaram liminarmente pela sua teoria heliocêntrica. Houve, mesmo, o cardeal Roberto Belarmino que, em 1615, aceitou reinterpretar teologicamente a Bíblia à luz da teoria heliocêntrica desde que Galileu provasse com factos indesmentíveis a sua teoria. É inevitável que a polémica em torno do caso de Galileu contribuiu para o afastamento da Ciência e da Fé na Modernidade e na Contemporaneidade (do século XVII ao XX).
Foi, de facto, o paradigma racionalista do Iluminismo que serviu para alimentar, preconceituosamente, a incompatibilidade entre a Ciência e a Fé, designadamente através da corrosiva sátira de Voltaire, mas hoje esse paradigma ideológico está claramente ultrapassado.
Por conseguinte, a História evidencia-nos que os cientistas, desde Galileu a Einstein, não se sentiram inibidos pelas suas crenças ou pela manifestação explícita de Fé.
O filme “Contacto”, de 1997, baseado num livro de Carl Sagan, cientista e filósofo, e dirigido por Robert Zemeckis aborda a problemática das divergências de mentalidade entre a Fé e a Ciência e a protagonista, interpretada por Jodie Foster, após um enorme vazio existencial compensado pela sua obsessão científica encontra resposta para a sua busca incessante por algo transcendente.
Em suma, a complexidade da realidade humana e cósmica exige um saber complementar entre vários modelos interpretativos que saibam manter um diálogo ativo entre a Ciência e a Fé na senda do espírito do Concílio Vaticano II. É, pois, possível e desejável fazer dialogar estas duas formas de conhecimento e de comunicação como pretendeu o Papa João Paulo II[2], porque os modos plurais de interpretar a realidade não implicam uma incompatibilidade orgânica de formulação de novas sínteses.
[1] José Policarpo e Eduardo Prado Coelho, Diálogos sobre a fé, Lisboa, Editorial Notícias , 2004.
[2] Alfredo Dinis, “Galileu revisitado”, in Brotéria – Cristianismo e Cultura, Braga, Editora Brotéria – Associação Cultural e Científica, vol. 177, outubro de 2013, pp. 295-305.
Nuno Sotto Mayor Ferrão