AS POLÉMICAS DA EFICÁCIA DO SISTEMA COLONIAL PORTUGUÊS DO FIM DA MONARQUIA CONSTITUCIONAL AO REGIME DA DITADURA MILITAR (1909-1928) – O CASO MOÇAMBICANO
Várias personalidades, entre 1909 e 1928, defenderam a tese de que era preciso tornar eficiente o sistema adiministrativo colonial português sob o risco de potências estrangeiras, legitimadas por mandato da Sociedade das Nações com o pretexto de que o país era incapaz de administrar correctamente as suas colónias, se apoderarem das funções de soberania nas colónias portuguesas.
O ex-deputado da 1ª República José Ferreira Dinis em 1928[1] atacou a tendência centralizadora e a homogeneização administrativa impostas pelas Bases Orgânicas da Administração Colonial de 1926 incrementadas pelo ministro João Belo, assegurando que era fundamental conciliar a eficiência do sistema com o princípio republicano de descentralização administrativa.
Deste modo, propôs que fossem implementados os princípios da descentralização e da autonomia financeira das colónias, embora se devesse aplicar, para salvaguardar a eficácia do sistema, o preceito de rigorosa superintendência e de fiscalização pela metrópole.
Censurou a tese oficial que restringiu os poderes dos governos coloniais e impôs um modelo único de estrutura governativa nas diferentes colónias, o que na sua óptica contrariava os princípios de descentralização administrativa e de heterogeneidade das estruturas administrativas coloniais.
Na opinião de José Ferreira Dinis, a descentralização administrativa colonial, embora declarada na Constituição de 1911 e na Lei Orgânica das Colónias de 1914 do ministro Almeida Ribeiro, só teve expressão prática no início dos anos 20, mas acabou por falhar com a eclosão da crise colonial de 1924-1925 por não ter sido aplicado o princípio subsidiário da superintendência e da fiscalização pelo poder metroplitano[2].
De facto, Ferreira Dinis revela um juízo valorativo crítico ao considerar que o defeito não residia na doutrina da 1ª República, mas na falta da sua integral aplicação. Denunciou, assim, que o governo da Ditadura Militar embora fizesse a propaganda dos mesmos princípios, na verdade invertia de forma dissimulada a doutrina colonial que vinha sendo pregada na sociedade portuguesa desde o I Congresso Colonial Nacional em 1901[3].
Em 1922 na altura em que se discutia a Convenção comercial entre a União Sul-Africana e Moçambique, cujo representante português era Alfredo Freire de Andrade, Lourenço Cayolla[4] salientou ser necessário tornar a administração colonial mais eficaz na protecção dos interesses económicos portugueses. Na realidade, nos anos 20 Moçambique passou a depender economicamente em grande escala da África do Sul, porque se estabeleceram relações comerciais estreitas entre estas regiões devido à mão-de-obra Moçambicana a trabalhar no Estado vizinho e à utilização do porto de Lourenço Marques para o escoamento dos produtos sul-africanos.
Assim, Lourenço Cayolla preconiza a tese de que o novo acordo entre a África do Sul e Moçambique deveria ser mais equilibrado na repartição de benefícios, porque a anterior Convenção de 1909 tinha sido amplamente desvantajosa uma vez que permitiu a emigração sazonal ilimitada de indígenas moçambicanos para trabalhar no Traansvaal, saindo prejudicada a agricultura de Moçambique e o patriotismo dos indígenas. Na sua perspectiva, os malefícios deste acordo desigual faziam perigar a soberania portuguesa em Moçambique e daí a necessidade de que a nova negociação estipulasse um tratado mais justo.
Por outras palavras, na sua opinião um dos malefícios da Convenção de 1909 tinha sido a ausência da fixação de um limite ao contingente de indígenas que iam trabalhar para as minas do Rand, o que empobreceu a força produtiva de Moçambique com a perda de mão-de-obra na agricultura, e também tinha contribuído para “desnacionalizar” os indígenas que passaram a apreciar a capacidade de realização dos sul-africanos.
De facto, no seu modo ver este acordo teve para esta colónia consequências negativas, dado que a fuga autorizada da mão-de-obra indígena de Moçambique para o Transvaal provocara o declínio económico da colónia e a perda de patriotismo dos autóctones[5]. Com efeito, Lourenço Cayolla temia que a manter-se um compromisso do género do anterior com as novas negociações de 1922 se poderia encaminhar este território para o abismo da independência, quer fosse pela integração na União Sul-Africana ou pela simples desvinculação da soberania ao Estado português.
Destes autores, e dos que se seguem, subjaz a tese heterodoxa de que era imperioso tornar eficaz o sistema administrativo colonial português, porque as críticas das sumidades internacionais e da opinião pública europeia eram unânimes na reprovação desta gestão colonial. Foram, pois, estas individualidades que alertaram para a necessidade de reformar a estrutura administrativa colonial em aspectos que pensavam ser mais defeituosos. Todos fazendo críticas pontuais à política colonial executada pretendiam contribuir para aperfeiçoar o funcionamento da máquina administrativa de modo a retirar legitimidade às cobiças estrangeiras sobre as colónias portuguesas.
Estes doutrinadores chamavam a atenção para o facto da participação portuguesa na Grande Guerra de 1914-1918 ter salvaguardado a integridade do império colonial português, não obstante novas ameaças externas se fazerem sentir sobre as possessões lusitanas e, por consequência, a simples estratégia da ocupação militar das colónias ser, claramente, insuficiente.
O Professor Gonçalo Santa-Rita descreve num artigo duma publicação da Escola Superior Colonial a conjuntura de ameaças e perigos expansionistas que as colónias portuguesas sofreram de 1884 a 1919 e alerta no sentido de prevenir novas ameaças externas que podiam manifestar-se se não soubessemos salvaguardar os nossos interesses de soberania nas colónias. Exemplificando, afirma que no Congo na década de 80 do século XIX o nosso país foi esbulhado pela Bélgica da margem norte do Zaire, que de 1894 a 1915 a Alemanha colocou em perigo territórios de Moçambique e de Angola e que na época, não obstante as garantias recebidas com a colaboração na vitória na Grande Guerra, potências como a Bélgica e a África do Sul pretendiam anexar áreas do norte e do sul de Angola e do sul de Moçambique.
O general Alfredo Freire de Andrade, chefe da delegação portuguesa que presidia às negociações de 1922 de Moçambique com a África do Sul destinada a actualizar a Convenção de 1909, tinha a opinião heterodoxa de que não se devia impôr à União Sul-Africana um limite máximo de recrutamento de trabalhadores moçambicanos, porque isso poderia levar o país vizinho a exigir nas negociações contrapartidas demasiado elevadas e incitar à fuga ilegal de indígenas[6]. Tem, pois, uma posição contrária à expressa oficialmente pelo titular do poder executivo, o Alto-Comissário Manuel Brito Camacho[7], que considerava importante impôr um limite máximo de recrutamento de trabalhadores moçambicanos, dado que estes eram necessários ao desenvolvimento agrícola de Moçambique. Não se deveria, por isso, dispensar um número ilimitado de trabalhadores à África do Sul.
Freire de Andrade, em correspondência oficial trocada com Brito Camacho nesta data, assume como negociador-chefe do processo destinado à actualização da Convenção com a União Sul-Africana posições políticas concretas e não apenas atitudes doutrinárias. Numa carta que envia a Brito Camacho a 16 de Maio de 1922 constatam-se pontos interessantes da sua opinião em relação ao modo de administrar Moçambique[8]. Em primeiro lugar, reputava que o Banco Nacional Ultramarino devia ajudar a regularizar a situação monetária em Moçambique, mas não deveria introduzir na circulação fiduciária do território notas da União Sul-Africana. Em segundo lugar, considerava que era desejável pedir um empréstimo em Londres para a colónia, fazendo crer ao país vizinho que o importante era este dinheiro emprestado e não tanto as verbas que entravam da União. Em terceiro lugar, concordava com Brito Camacho que a emigração indígena para as minas do Rand devia provir dos distritos do Sul do Save[9], uma vez que nesta região a mão-de-obra era menos necessária à produção agrícola.
Por conseguinte, constata-se que os debates da eficácia do sistema colonial português perpassam por estas primeiras décadas do século XX, uma vez que o aparelho Estadual estava a ser montado. O exemplo de Moçambique é bem emblemático das problemáticas que foram debatidas.
[1] José de Oliveira Ferreira Dinis, “A evolução da política colonial portuguesa”, in Boletim da Agência Geral das Colónias, nº 34, Abril de 1928, pp. 3-13.
[2] As seguintes citações fundamentam estas análises: “(...) Perfeitas que fossem [ as leis coloniais ], não podiam elas dar-nos resultados apreciáveis, com a crise que as colónias atravessam, quando em execução, e pela maneira como a metrópole se desinteressou da fiscalização que a lei lhe impunha. A metrópole, representada pelo poder executivo ou pelo Ministério das colónias, não exerceu, durante a sua vigência, a menor fiscalização, nem orientou como igualmente lhe competia a política colonial. (...) No entanto, as bases orgânicas de 2 de Outubro de 1926 não estão dentro daqueles princípios, excedem-nos e atraiçoamo-nos, não realizando o que eles exprimem. Excedem e atraiçoam o objectivo de uma maior eficácia na superintendência e fiscalização da metrópole, porque substituíram a superintendência e a fiscalização, por uma intervenção directa que tolhe os movimentos das colónias e embaraça a acção dos governadores, absolutamente contrária aos princípios de descentralização administrativa e autonomia financeira. (...)” Ibidem, pp. 10 e 12.
[3] Por outras palavras, Ferreira Dinis criticou a reforma orgânica de 1926 de proclamar a descentralização administrativa colonial e de na prática através dos mecanismos institucionais se consagrar um reforço da centralização e da homogeneização da estrutura administrativa colonial.
[4] Lourenço Cayolla, “Moçambique e a África do Sul”, in Revista Colonial, Ano X, nº 9, Março de 1922, pp. 263-264.
[5] Estas afirmações podem inferir-se das seguintes passagens deste artigo de Lourenço Cayolla: “(...) Bastam estas palavras para se ver que (...) ainda nos sugeitavamos em 1909 a novas imposições e concordavamos com novas clausulas que feriam profundamente os nossos interesses e direitos. (...) Devido às facilidades que mantivemos para a emigração dos indígenas, esta, a não ser com uma ligeira inflexão nos anos da guerra, não deixou de seguir uma linha ascensional, do que tem resultado a diminuição e a degenerescência duma população que tanto precisavamos desenvolver para assegurarmos a prosperidade daqueles territórios e evitar a desnacionalização daqueles povos, desnacionalização agravada ainda pelas alterações das suas instituições, usos e práticas tradicionais e que já se reflecte gravemente na sua atitude para com os representantes da mãe-pátria. (...) Precisamos ainda acentuar mais nitidamente as desastrosas consequências que desse abuso nos tem resultado e referimo-nos a outras cláusulas da Convenção que se vai substituir, no desejo de acautelarmos os nossos representantes para que estes evitem a sua repetição. (...)” Ibidem, p. 263.
[6] Documentos trocados entre o general Freire de Andrade e o Alto Comissário da República Brito Camacho, datados de 17 de Abril a 21 de Julho de 1922, Confidencial, 1923, 44 p.. Estes documentos tratam-se de uma avolumada correspondência entre Freire de Andrade e o Alto Comissário de Moçambique Brito Camacho referentes ao processo de negociação com a África do Sul com vista a actualizar a Convenção que tinha sido estabelecida em 1909. Estes textos servem para dilucidar as posições administrativas que o lúcido Freire de Andrade aconselhava ao governante Brito Camacho, tanto mais que ele já tinha sido governador geral de Moçambique e conhecia em profundidade a sua realidade empírica.
[7] Brito Camacho temia as ambições imperialistas do General Smuths, primeiro-ministro da União Sul-Africana, cujas expectativas consistiam em anexar territórios moçambicanos. Na renegociação da Convenção foram tratados essencialmente dois assuntos: o contingente de mão-de-obra indígena fornecido às minas do Rand e a pretensão sul-africana de arrendar o porto de Lourenço Marques e a linha férrea de Ressano Garcia. Ele encarava as ambições hegemónicas da União sobre os territórios vizinhos, designadamente Moçambique, como uma ameaça real à integridade da colónia, daí as cautelas que demonstrou em aceitar arrendar essas infra-estruturas de transporte à soberania da União, quiçá temendo que isso pudesse suscitar o início dum processo de transição da soberania sobre esses territórios. Todavia, outro dos interesses portugueses nesta negociação era o de regular a emigração sazonal de indígenas para a África do Sul de modo a não prejudicar os lucros económicos da colónia, portanto talvez as intenções planeadas por Camacho fossem diminuir o volume emigratório ou aumentar as contrapartidas financeiras dadas pela União a Moçambique. ( in João Fernandes, Brito Camacho – algumas reflexões acerca da sua obra colonial, Lisboa, Edição da Seara Nova, 1944, pp. 26-27 ).
[8] Freire de Andrade não estava de acordo neste momento com a “expropriação” ou a venda do Caminho de Ferro e do Porto de Lourenço Marques à África do Sul, como o aspirava o general Smuts, mas contudo julgava conveniente investir no seu aperfeiçoamento e na sua dinamização desde que esta suscitasse algumas contrapartidas económicas, que tornassem rentáveis os investimentos e as melhorias a implementar.
[9] É interessante salientar que Brito Camacho se opôs tenazmente às ambições anexionistas da União Sul-Africana sobre o sul de Moçambique, daí as negociações sobre a Convenção nesta data terem sido infrutíferas, pois só se chegou a acordo em 1933. Por seu turno, o governante da potência vizinha, general Smuths, achava inevitável que, mais cedo ou mais tarde, Moçambique se tornaria independente de Portugal, porque esta sujeição política atrasava o seu desenvolvimento. Camacho considerava esta argumentação sofística e inaceitáveis as pretensões da União, uma vez que por detrás escondiam ambições futuras mais vastas. Deste modo, opinou que se devia acabar com a exportação de trabalhadores para o Transvaal rentabilizando-os antes na produção agrícola moçambicana. “(...) O general Smuths pretendia o arrendamento do porto de Lourenço Marques e da linha de Ressano Garcia, por noventa e nove anos, e de resto nada lhe interessava a mão de obra indígena a fornecermos ao Rand. (...) Quando nos convencermos de que vale mais trabalhar a terra que alugar trabalhadores; (...) quando assim fôr, nem sequer o tráfego do Transvaal nos fará falta, porque viveremos muito bem sem ele. (...)” ( in João Fernandes, Brito Camacho – algumas reflexões acerca da sua obra colonial, Lisboa, Edição Seara Nova, 1944, pp. 26,27 e 31 ).
Nuno Sotto Mayor Ferrão