Crónicas que tratam temas da cultura, da literatura, da política, da sociedade portuguesa e das realidades actuais do mundo em que vivemos. Em outros textos mais curtos farei considerações sobre temas de grande actualidade.
Crónicas que tratam temas da cultura, da literatura, da política, da sociedade portuguesa e das realidades actuais do mundo em que vivemos. Em outros textos mais curtos farei considerações sobre temas de grande actualidade.
Importa situar as formas de escravatura, a expansão marítima quatrocentista/quinhentista e o fim da escravatura em contextos históricos diversos. Temos de compreender os acontecimentos em função das diferentes conjunturas e estruturas históricas.
A antropóloga Raquel Machaqueiro afirma que o aspeto violento da História terá sido a escravatura permitir a expansão marítima portuguesa dos séculos XV e XVI, mas os historiadores e os cientistas sociais não podem ser juízes do passado. Caso contrário, tornar-se-ão meros ativistas com visões parciais da História, pois o historiador no seu ofício deve ser imparcial e não deve proceder a juízos éticos, apenas o poderá fazer como cidadão. Em termos pedagógicos, podemos fazer a distinção entre o mau e o bom em termos éticos, mas separando a análise científica da análise cívica, de forma muito transparente.
Sustenta a investigadora Raquel Machaqueiro que a História das pessoas escravizadas sejam dadas a conhecer nos manuais escolares do ensino pré-universitário. Para isso, é necessário que haja mais investigação histórica sobre esta problemática e que os conselheiros académicos das editoras escolares possam dar sugestões nesse sentido aos autores dos manuais, após existir mais pesquisa nas fontes históricas. Começa a esboçar-se alguma investigação historiográfica a este nível, mas só agora desponta uma bibliografia específica nos escaparates das livrarias.
Se nos manuais, de História do ensino básico, não aparece informação sobre as denúncias dos escravizados à Inquisição, isso deve-se aos autores, aos coordenadores académicos, às Aprendizagens Essenciais definidas pelo Ministério da Educação e não aos professores propriamente ditos.
Convém recordar que a História é uma ciência social e o seu objeto de estudo é dinâmico, em função das novas descobertas dos historiadores resultantes das investigações nas fontes históricas, daí que os manuais escolares sejam revistos periodicamente.
A tese de que as descobertas marítimas se fizeram à custa dos escravizados, da antropóloga Raquel Machaqueiro, é uma interpretação exagerada e ainda não comprovada cientificamente e que pode ser sempre suscetível de contra-argumentação, pelo que só uma investigação historiográfica mais aprofundada e mais significativa poderá comprovar esta hipótese geral de trabalho.
Se as formas de resistência dos escravos perante os seus proprietários, na época das descobertas marítimas quatrocentistas e da expansão quinhentista, não aparecem nos manuais, o ónus desta circunstância deve imputar-se aos responsáveis, já referidos, e não aos professores que estão no terreno pedagógico e são condicionados por múltiplos constrangimentos burocráticos e curriculares, que limitam as suas liberdades criativas como pedagogos.
Não devemos passar da identificação da história da expansão marítima como uma época áurea (desde a historiografia do Estado Novo e, na verdade, desde os ensaios oitocentistas de Joaquim Pedro de Oliveira Martins) para a conceção de uma época maquiavélica (tese de alguns investigadores atuais, mas não de todos os historiadores), pois este maniqueísmo ideológico é especialmente nocivo.
Os estudiosos que encaram com menosprezo a história da expansão marítima portuguesa são antropólogos, historiadores de outras paragens geográficas, investigadores em universidades estrangeiras, pelo que não devemos narrar a história a partir de uma perspetiva gloriosa, nem uma história execrável da aventura marítima dos portugueses, porquanto é preciso uma visão tendencialmente imparcial e global. Daí que alguns portugueses tenham assumido a vontade de edificar um Museu das descobertas marítimas e, de repente, se tenha passado à ideia de fazer um Museu da escravatura, como se a história fosse passível de ser vista de forma maniqueísta, entre a noção do dever de salientar heróis ou vilões.
Os apologistas da tese do lado sombrio, do imperialismo português de Quatrocentos e de Quinhentos, defendem que a aventura da expansão marítima portuguesa só foi possível devido à escravatura, o que é uma explicação bastante simplista que qualquer historiador imparcial, questiona metodologicamente. Aliás, esta perspetiva economicista já tinha sido, em parte estudada, pelo afamado historiador Vitorino Magalhães Godinho, mas, no entanto, enveredar por uma perspetiva tão limitada parece-nos claramente errado do ponto de vista epistemológico.
Asseveram-nos estes estudiosos que o racismo era um projeto político para a conquista das riquezas coloniais, esquecendo-se que por detrás dos objetivos de lucro estava uma sociedade estratificada de ordens e a discriminação do outro ser humano fazia-se em relação ao camponês e, obviamente, aos escravos. Esta realidade da mentalidade social e dos seus preconceitos é bem conhecida dos historiadores do Antigo Regime.
Referem estes investigadores disruptivos, de forma ingénua, que a falta de contabilização na historiografia portuguesa dos custos monetários do tráfico negreiro é uma “pecha” da historiografia nacional[1].
Advoga a antropóloga Raquel Machaqueiro que a base do colonialismo é a escravatura, quando as colónias africanas, em particular, foram desbravadas só no final do século XIX, pois na época da expansão marítima eram apenas interpostos comerciais, ou seja, meras feitorias, embora com a prática do tráfico negreiro. Mormente no Brasil, a escravatura foi relevante na colonização empreendida pelos portugueses nas plantações e nas minas, nos séculos anteriores ao XIX, através do tráfico negreiro do comércio triangular atlântico.
Sustenta, de forma bastante controversa, a antropóloga Raquel Muchaqueiro que faz sentido a reparação dos prejuízos económicos aos colonizados, porque quem recebeu as indemnizações foram os colonizadores. Mas ao fazer este raciocínio controverso estamos a falar de conjunturas históricas distintas da expansão marítima (referente ao Antigo Regime) e dos regimes liberais que começaram, paulatinamente, a sustentar o abolicionismo esclavagista (referente à Idade Contemporânea).
Falar em reparações coloniais é de bastante mau senso diplomático, porque abre uma caixa de pandora que não terá fim. A História é feita de vitórias e derrotas como nos frisava, lucidamente, o professor Jorge Borges de Macedo.
Os Museus da metrópole devem devolver objetos da expansão marítima aos novos países descolonizados? Raquel Muchaqueiro afirma inequivocamente que sim, mas, na realidade, este processo iria dar origem a múltiplos pedidos de devolução de bens resultantes de tantos saques que o mundo se envolveria numa disputa entre espoliados e espoliadores, como se tratasse de uma investigação e de uma “práxis” política marxista.
Só, nestes últimos anos do primeiro quartel do século XX, começam a aparecer estudos sobre a escravidão nas regiões coloniais portuguesas, exemplo disso é o estudo do historiador Arlindo Manuel Caldeira intitulado O apelo da liberdade – resistência dos africanos à escravidão nas áreas de influência portuguesa[2], com a chancela editorial da Casa das Letras de 2024.
[2] Arlindo Manuel Caldeira, O apelo da liberdade – resistência dos africanos à escravidão nas áreas de influência portuguesa, Alfragide, Casa das Letras, 2024, 428 p.
Marcelo José das Neves Alves Caetano (1906-1980) foi um proeminente jurista, académico e político português. Licenciou-se em Direito na Universidade de Lisboa em 1927 e aí se doutorou em 1931. Aderiu, desde jovem, às teses conservadoras do Integralismo Lusitano e prestou assessoria jurídica a António de Oliveira Salazar, desde 1929. Nos anos 30 começou a destacar-se pelos seus estudos jurídicos e históricos ( no âmbito da História do Direito e das Instituições, do Direito Administrativo e do Direito Colonial ) e em 1940, com 34 anos, é designado Comissário Nacional da Mocidade Portuguesa.
De 1944 a 1947 abraça a pasta das Colónias, mas assume um tom crítico em relação à política interna de Salazar. Em 1949 torna-se Presidente da Câmara Corporativa, em 1955 Salazar chama-o para o cargo de Ministro da Presidência e em 1961-1962, já afastado das lides políticas, exerce o cargo de Reitor da Universidade de Lisboa e acaba por se demitir por considerar excessiva a actuação das autoridades policiais face à agitação dos jovens universitários. Em Setembro de 1968, face à debilidade física de Salazar, é nomeado Presidente do Conselho de Ministros e ocupa o lugar até à Revolução do 25 de Abril de 1974. Perante o evento revolucionário, exila-se no Brasil até à sua morte[1].
Ao contrário do que sustenta a moderna historiografia portuguesa, Marcelo Caetano, como Ministro das Colónias de Setembro de 1944 a Fevereiro de 1947, não procurou apenas na sua política implementar os princípios da descentralização administrativa e do desenvolvimento económico das colónias[2]. Na verdade, no discurso que pronunciou no início do seu périplo africano, em Junho de 1945, preconizou a necessidade de construir um sistema federal[3], de que o Almirante Sarmento Rodrigues será um fiel continuador, que possibilitasse a correcta coordenação dos dois pólos governativos coloniais ( o metropolitano e o local ). Daí subscrever que as Conferências de Governadores e a regularidade das viagens ministeriais às colónias eram fundamentais à ajustada coordenação dos pólos decisórios.
O contexto anticolonialista que pairou na Ásia durante e após a segunda guerra mundial, o apoio declarado das superpotências ( EUA e URSS ) ao fenómeno descolonizador e a ideologia da liberdade política e social exaltada pela Carta das Nações Unidas de 1945 foram os factores históricos incitadores da necessidade de mudar a aparência da política colonial portuguesa, tendo este ambiente internacional hostil levado o Ministro Marcelo Caetano a defender a tese federalista para o império português. Foi sob a pressão internacional dos princípios enunciados na Carta da ONU, do dever das potências colonizadoras de fazerem caminhar as colónias para a autonomia administrativa, ou mesmo para a sua independência, e do dever de serem tomados em conta os interesses das populações nativas, que se constituíram o conjunto de necessidades que influenciaram a alteração estratégica da política colonial portuguesa no fim do conflito mundial.
Porém, Marcelo Caetano argumentou ser inaceitável a independência das colónias portuguesas, no contexto do pós-guerra, devido ao facto do atraso civilizacional das colónias africanas recomendar apenas a equiparação dos interesses dos colonizadores e dos indígenas e do facto das Nações Unidas aconselharem, do seu ponto de vista, o desenvolvimento da autonomia administrativa e da participação das populações autóctones no governo local, mas não recomendar a concessão da independência das colónias no caso de territórios que revelassem ainda imaturidade política, social e económica, o que a seu ver se verificava na maioria das colónias lusas.
Por conseguinte, foi perante esta conjuntura, hostil, anticolonialista que Marcelo Caetano como Ministro das Colónias sustentou retoricamente a tese federalista para o império português, com os objectivos de garantir a continuação da soberania de Portugal sobre a maioria das suas colónias por longo tempo ( dado o atraso civilizacional das mesmas ) e, simultaneamente, de dar resposta aos princípios declarados legais pela comunidade internacional, em sede das Nações Unidas, designadamente os princípios fundamentais da “descentralização administrativa” e da “dignificação dos interesses das populações nativas”[4], mas Salazar resistiu sempre a esta tese política.
Nuno Sotto Mayor Ferrão
[1] Fernando Rosas, “Marcelo José das Neves Alves Caetano”, in Dicionário Enciclopédico da História do Estado Novo, Lisboa, Bertrand Editora, 1996, pp. 110-113.
[2] Vasco Pulido Valente, “Marcelo Caetano”, in Dicionário de História de Portugal, Coord. António Barreto e Maria Filomena Mónica, Lisboa, Ed. Figueirinhas, 1999, vol. VII, p. 202. Defende o autor a interpretação que Marcelo Caetano estava não só preocupado com a simples descentralização administrativa colonial, mas essencialmente centrado em harmonizar um poder governativo das colónias reforçado com um poder central que em certas matérias deveria ser preponderante, de forma a garantir a uniformização de critérios políticos.
[3] “(...) Disse um dos maiores espíritos do nosso escol de colónias que ‘as colónias se governam nas colónias’. Não me parece o asserto de todo o ponto exacto. Muitas circunstâncias e conveniências da política ultramarina só podem ser devidamente apreciados na capital do Império, lá onde se abarcam os horizontes mais largos do futuro da Nação, se cruzam todas as informações do Mundo e se dispõe dos instrumentos de actuação diplomática e técnica para intervir no devido lugar e a tempo oportuno. A verdade é que as colónias se governam nas colónias e na metrópole, e tanto melhor quanto mais perfeitamente se consiga que sejam as mesmas pessoas a ver nos dois pólos da governação os problemas a resolver. Daí, a instituição das conferências dos governadores, a reatar brevemente, e a regularidade das viagens ministeriais às colónias. (...)” ( Marcelo Caetano, Alguns discursos e relatórios – viagem ministerial a África em 1945, Lisboa, Agência Geral das Colónias, 1946, p. 8).
[4] Das seguintes passagens se comprova a veracidade desta inédita interpretação do pensamento colonial de Marcelo Caetano: “(...) Na verdade, as populações nativas ( sic – de África ) entregues a si próprias nunca saberiam sair do estado de barbárie e de carência em que ainda se encontram, e o seu verdadeiro interesse é o de colaborar com o colonizador mesmo quando pareça não resultar para elas dessa colaboração qualquer proveito directo e imediato. ( ...) Ficou pois assente que, segundo o critério das Nações Unidas, se as potências coloniais devem sempre procurar encaminhar os territórios não-metropolitanos para um regime de auto-administração em que sejam ouvidos os desejos de todas as classes da população, não é contudo objectivo necessário da tarefa colonizadora a independência das colónias.(...)” Marcelo Caetano, “As tendências contemporâneas”, in Portugal e o direito colonial, Lisboa, s.e., 1948, pp. 217 e 221.
Verificamos que o grande debate das teses coloniais decorreu entre 1919 e 1931 na época em que se fazia sentir uma profunda crise administrativa nas colónias de Angola e de Moçambique, em que se complexificavam as instituições administrativas coloniais e em que existia uma notória instabilidade política na 1ª República e mesmo na Ditadura Militar, o que tornou possível uma discussão muito ampla e uma grande multiplicidade de teses propostas para fazer funcionar a máquina administrativa colonial em construção. Podemos detectar com base na cronologia quatro grandes fases do aparecimento das teses coloniais.
1ª Fase - De 1919 a 1923, quando se concretiza o regime dos Altos Comissários, manifestam-se sobretudo teses descentralizadoras moderadas na metrópole que visavam sugerir aperfeiçoamentos pontuais do sistema administrativo colonial e teses anticoloniais parciais ou totais que fervilharam em particular em Moçambique e em Angola. Estas teses anticoloniais foram defendidas por colonos empreendedores descontentes com as políticas laborais proteccionistas dos indígenas promovidas por José Norton de Matos e Manuel de Brito Camacho.
2ª Fase - No ano de 1924 tornou-se aguda a crise financeira em Angola e em Moçambique, o que deu lugar à destituição destes dois Altos Comissários, dando origem à prevalência conjuntural da tese heterodoxa centralizadora de fiscalização da estrutura administrativa colonial, pois os seus defensores pensavam que só assim se conseguiriam evitar novas situações de ruptura financeira. Esta tese foi especialmente ventilada no II Congresso Colonial Nacional realizado na Sociedade de Geografia de Lisboa.
3ª Fase – De 1925 a 1930 foram predominantes as teses descentralizadoras radicais ou descentralizadoras técnicas, porque começou a haver descrença no princípio da descentralização moderada que levará à mudança oficial para o princípio centralizador com a política colonial de João Belo durante o início da Ditadura Militar ( tese ortodoxa ). Assim, aquelas teses extremistas visaram aprofundar a operacionalização do mecanismo descentralizador no sentido de salvar este princípio das críticas que sofrera desde a crise colonial Angolana. Também neste período foi prevalecente no sul de Moçambique a tese anticolonial pan-africanista devido à pressão das ambições hegemónicas geo-estratégicas sul-africanas do carismático general Smuts.
4ª Fase – De 1930 a 1945 foi dominante a tese ortodoxa imperial centralizadora proposta pelo Acto Colonial em 1930 e o debate doutrinário restringiu-se praticamente ao III Congresso Colonial Nacional e a uma ou outra tese que passaram à revelia do controlo do regime autoritário. Com a institucionalização do Estado Novo em 1933 as instituições repressivas do regime e a inculcação da doutrina do regime através de fortes meios propagandísticos obstaculizaram a fácil circulação de teses coloniais heterodoxas.
Em 1930-31 duas grandes figuras do regime Republicano atacaram o espírito centralizador daquele diploma. Com efeito, o ex-presidente da República Bernardino Machado escreveu em 1930 um opúsculo afirmando que se consagrava uma “inconstitucional escravização das colónias” e Norton de Matos escrevendo no Primeiro de Janeiro propôs em 1931 a tese heterodoxa de uma descentralização federalista para o império colonial português que compatibilizasse a integridade da soberania portuguesa no ultramar com o princípio da transferência de competências para os orgãos coloniais.
Contudo, foi talvez em Moçambique de 1930 a 1945 que se manifestou a principal tese colonial heterodoxa, anticolonial pan-africanista que defendia a integração económica ou mesmo política de Moçambique na União Sul-Africana, acarinhada por alguns grupos de colonos que mantinham relações económico-comerciais com o país vizinho. De facto, o impacto que esta tese heterodoxa teve nesta colónia resultou da influência do projecto ambicioso de Smuts que pretendia que se formasse uma União Pan-Africana que ligasse economicamente os Estados livres do sul de Àfrica, daí o apoio que receberam as teses heterodoxas que pugnavam pela libertação de Moçambique da soberania portuguesa.
Por outro lado, um outro factor explica a vitalidade destas teses heterodoxas anticoloniais que circularam em Moçambique, pois o facto de existir uma mentalidade segregacionista na África do Sul[1] encorajou os colonos capitalistas a pretenderem associar-se ao país vizinho e a desvincular-se dos critérios humanistas seguidos pela metrópole portuguesa na relação laboral com os indígenas[2].
5ª Fase – De 1946 a 1961 a política colonial portuguesa foi pontuada por uma tenativa de maquilhar a estrutura imperial portuguesa para fazer face ao fenómeno da descolonização que começou a alastrar no continente asiático e à pressão da comunidade internacional impostas pela ONU e pelas duas grandes superpotências para a libertação dos povos coloniais. Deste modo, sob a orientação de alguns ministros carismáticos como Marcelo Caetano, Sarmento Rodrigues e Adriano Moreira deu-se uma mudança da aparência política da estrutura politico-administrativa do império colonial português.
Foi, neste contexto, que surgiu um grande debate na Câmara Corporativa em 1949 que dividiu os seus membros entre os adeptos da lógica imperialista e os adeptos de uma mudança formal das instituições imperiais. Dentro desta conjuntura histórica em que apareceram críticas violentas à acção colonial portuguesa, destacou-se o conhecido relatório de Henrique Galvão em 1947 denunciador dos abusos laborais sobre os indígenas de Angola à Assembleia Nacional.
Perante este contexto de agitação internacional e inquietação nacional foi possível a Marcelo Caetano, no seu consulado minsterial de 1944 a 1947, iniciar um processo de minguada descentralição administrativa do império colonial português, continuada e aprofundada pela política de Sarmento Rodrigues que esboçou uma ténue estrutura federal-lusotropicalista na revisão Constitucional de 1951 que integrou o Acto Colonial modificado no texto jurídico fundamental do Estado Novo e transformou a designação das terras coloniais em territórios ultramarinos de forma a salvaguardar a perpétua soberania do país sobre esses territórios.
Assim, consagrava-se a noção duma nação pluricontinental e plurirracial que, simultaneamente, se compaginava com algumas cedências administrativas em termos de implementação de uma descentralização e de uma tendência para a uniformização do estatuto jurídico das populações com a proclamação do fim a prazo do estatuto do indigenato (1951)[3] e com a sua abolição com o início da guerra colonial em Angola em 1961.
Foi todo este processo histórico de mudança institucional permitido por Salazar, de forma moderada, no sentido de se reagir à conjuntura internacional adversa, sem que no entanto se pusesse em causa a ideia da inalienabilidade das terras ultramarinas do país. Para o efeito chamou, para dar credibilidade a estas alterações, eminentes académicos e personalidades carismáticas[4] que dessem voz activa pelas políticas postas em curso.
Em suma, parece-nos que esta periodização histórica, que traçámos com base na nossa inovadora investigação, nos auxilia a compreender as conjunturas temporais que suscitaram o aparecimento das teses coloniais heterodoxas como alternativas às teses coloniais oficiais. Verificamos que factores internos e externos influenciaram as várias teses propostas[5]. Julgamos que esta é uma perspectiva inédita no panorama científico português ao descobrir novas teses coloniais do debate político português entre guerras.
Nuno Sotto Mayor Ferrão
[1] Não nos podemos esquecer que este segregacionismo larvar perante os negros que existia na sociedade sul-africana veio a desembocar na criação do regime do “Apparthaid” em 1948.
[2] Convém também lembrar que o auge da circulação das teses anticoloniais ( emancipalista e pan-africanista ) sucederam entre 1922 e 1924 entre grupos de colonos com interesses económicos em Angola e em Moçambi-que, na altura em que os Altos Comissários Norton de Matos e Brito Camacho procuraram proteger os indígenas dos abusos laborais dos patrões brancos.
[3] É interessante que esta medida de pôr fim ao indigenato e de consagrar a integração na cidadania de todos os povos do império faça lembrar a medida idêntica que o imperador Caracala tomou no império romano em 212 para conseguir apaziguar os conflitos sociais entre populações numa altura em que o império entrava politicamente em decadência.
[4] As mais importantes personalidades que trabalharam com esse objectivo foram: Marcelo Caetano, Sarmento Rodrigues, Gilberto Freyre, Joaquim Silva Cunha e Adriano Moreira.
[5] Afigura-se-nos que os factores que terão influenciado mais a evolução histórica do aparecimento de novas teses coloniais neste período foram os seguintes:
As cobiças estrangeiras à posse das colónias portuguesas
As críticas da opinião pública internacional à deficiente gestão colonial portuguesa
A pretensão da União Sul-Africana de incorporar a colónia de Moçambique
A crise financeira de Angola e de Moçambique de 1924
A acusação internacional da prática da escravatura por Portugal em Angola e Moçambique
O problema da desnacionalização de Moçambique devido à autoridade das Companhias Megestáticas e ao peso dos estrangeiros
O projecto megalómano do marechal Smuts de formar uma União Pan-Africana que ligasse economicamente os Estados livres do Sul de África
As estreitas relações comerciais entre a África do Sul e Moçambique devido à mão-de-obra indígena usada no país vizinho e à utilização do caminho de ferro e do porto de Lourenço Marques
A negociação em 1922 do novo Convénio entre Moçambique e a União Sul-Africana
O insucesso das missões laicas de civilização dos indígenas africanos criadas pelo regime Republicano
O II e o III Congressos Coloniais Nacionais realizados na Sociedade de Geografia de Lisboa ( 1924 e 1930)
A crise económico-financeira internacional provocada pela ruptura bolsista de Nova York ( 1929)